Eu já não estou entendendo mais nada do que Liz fala. Como assim "para eu viver, algo terá que se perder"?

– Será que daria para você explicar? - peço, meio exasperado.

Ela olha para frente, pensando se deve mesmo falar. Ou talvez eu acho que seja isso.

– É uma história longa. Mas a Lua é sempre justa - ela diz.

– Tudo bem. Adianta alguma coisa se eu perguntar o que seria?

– Não.

Olho para o diário aberto em minhas mãos. Esse pequeno poema inicial já deixou Liz bastante aflita. E se o que há dentro for pior?

– Acha que devemos ler? - pergunto.

– Sim, acho.

Então passo a página e leio em voz alta:

"11 de abril de 1804, 03:36 pm.

Querido diário,

Hoje eu a vi, pela manhã. E como ela estava linda! Não acho que exista mulher mais linda que Camila. Seus olhos verdes, tão vibrantes, suas vestes combinando com a cor de seus olhos, seu cabelo preto e longo, caindo pelos ombros em ondas... Acho que estou terrivelmente apaixonado. Esta mulher, este anjo, porém, é também a minha perdição.

Seus olhos, diário... Ah, seus olhos... Verdes como o mar... Eu poderia me afogar neste mar... E, no entanto, é por causa deles que não posso amá-la. Meus olhos dourados a encaram, maravilhados, mas também são a prova do meu amor impossível. Por que, seres superiores, eu não tenho também olhos verdes? Ou que os dela fossem dourados!

Quando éramos crianças, brincávamos juntos. Nossos olhos, do azul límpido do céu, não refletiam o abismo que se abriria entre nós aos dezesseis anos. Na minha décima sexta lua, quando eu tive que me invocar, senti que pertenci às Trevas. Nesta noite, meus olhos se tornaram dourados e eu descobri meu verdadeiro nome, descobri o auge do meu poder como Cataclista. Eu não deveria lembrar dela, mas, ao abrir os olhos, ela foi a primeira pessoa a quem procurei.

Duas semanas depois, chegou a décima sexta lua dela. Eu a observava, com expectativa. Estranhei este sentimento, no instante em que a luz banhava seu corpo. Seres das Trevas não amam. Mas por que eu estava ali, ansioso pelo resultado daquilo? Disse a mim mesmo que apenas esperava que ela se tornasse minha seguidora. Que conquistássemos o poder juntos. Depois de um tempo, percebi que o pensamento de poder era só estar enganando a mim mesmo. Os olhos dela se tornaram verdes. E ela se revelou uma Natural.

Meu pai quer me impedir de sair. Diz que, se eu amar Camila, será o meu fim. Seres como eu não devem amar alguém. Eu, um Cataclista, um espécime raro no mundo Conjurador, deve possuir poder. Apenas isso: amar somente o poder.

As Trevas vivem dentro de mim, mas por Camila, eu seria Luz. Eu lutaria contra o que sou, por ela. Faria qualquer coisa se ela desejasse meu amor...

Preciso falar com ela, diário. Preciso me declarar. Este amor em meu peito já não suporta ficar escondido.

É isso. Irei mandar um bilhete para ela, pedindo para que se encontre comigo.

...

~~

Pelos nossos velhos tempos, aceita se encontrar comigo, à meia noite?

Esperarei sob a sombra do velho carvalho da praça.

Preciso dizer algo importante.

Victor.

~~

Claro que aceito! À meia noite.

Camila.

~~

...

Tempus peregrinatione, in umbra cucurrerit.

Verba hæc, et testimonium,

Verbum quod factum est, et nemo est qui nesciat.

Hic et nunc, et usque in sæculum.

..."

– É isso? O que é isto escrito aqui? É latim? - pergunto, confuso.

– Sim, acho que sim. - responde Liz, aproximando-se mais para ler. - Acho que posso traduzir...

– Você pode? Então!

– Sim, sim, posso traduzir. Mas é perigoso. Isso é um Conjuro.

Olho para ela, sem entender. Balança a mão, em desdém.

– Um feitiço, se você entende assim - diz.

– E por que é perigoso?

Ela olha para mim, cética.

– Sério que não sabe isso? Obviamente porque se eu falar em voz alta, estaria Conjurando, não é?

– Ah - é a única coisa genial que falo.

Liz ainda encara as palavras.

– Provavelmente nos levará para algum lugar. Uma visão talvez - fala. - Mas por que alguém colocaria um Conjuro tão fácil de ser visto?

Um pequeno borrão surge na página. Aos poucos, vai se transformando em um rabisco. Uma letra.

– Olha - apontei.

– Lucis et Tenebrarum una aestate– ela lê. - Luz e Trevas juntos verão. Acho que é isso.

– O que significa?

– Não sei... Talvez seja preciso um Conjurador das Trevas e um da Luz para realizar o Conjuro. Isso explica o motivo de ele estar tão acessível. Seus antepassados não gostavam de Conjuradores da Luz. Então seria impossível realizar...

– O que temos que fazer? - indago. A ansiedade está me deixando nervoso.

– Repita essas palavras comigo:

Viagem no tempo, viagem nas sombras.

Que estas palavras guardem e testemunhem

O que aconteceu e ninguém sabe.

Aqui, agora e para sempre.

– É a tradução?

– Sim. Irei pronunciar em latim primeiro. Depois repetiremos em inglês/português. Me dá sua mão.

Estendo a mão para ela. Um choque passa por onde nós nos tocamos. Encaro seus olhos, tão verdes, e lembro-me da descrição de Camila.

Tenho a sensação de De'javú. Uma imagem vem rapidamente até a mim. Uma mão escrevendo rapidamente. Parece ser a minha mão, mas...

Liz começa a pronunciar as palavras em latim, e logo estamos dizendo juntos...

~~

Estou muito ansioso. São 23:57 agora. A qualquer momento, Camila chegará. Ensaio mentalmente o que irei dizer. Devo observar cada reação dela, mesmo que seja uma sutil mudança em seu olhar.

Ouço o som suave de passos na grama. Seu perfume chega até a mim antes mesmo que eu possa vê-la. Jasmim. Ela tem cheiro de jasmim. Então viro-me.

Camila está ainda mais deslumbrante. Não que esteja usando roupas de festas nem nada disso. Ela apenas usa um vestido simples, branco, que vai até os pés. Se anjos existem, arriscaria a dizer que ela era um. As mangas rendadas cobrem os seus ombros e o seu busto de forma delicada, enquanto o tecido se ajusta a seu corpo, destacando sua cintura. Posso sentir a inocência dela. Posso ver isso, quando ela sorri.

– Victor! - exclama, jogando os braços ao meu redor.

Eu a abraço, afagando seu cabelo que desce em ondas por suas costas. Ela aninha seu rosto em meu pescoço e eu fecho os olhos. Só gostaria de poder parar o tempo neste exato instante.

– Camila - digo suavemente o nome dela.

Ela levanta o rosto para encarar meus olhos, mas não se solta dos meus braços. Toca a minha face e eu relaxo sob seu toque.

– Estive preocupada - diz. - Você sumiu, nunca mais o vi. Está bem?

– Estou. Meu pai me proibiu de sair.

– Mas por quê?

Encaro-a, observo a pergunta se estender em seus olhos.

– Ele me proibiu de ver você... - murmuro, com medo da reação dela.

Camila não fala nada, apenas me observa. Continuo:

– Estou apaixonado por você, Camila. Acho que sempre estive. Antes e depois da minha décima sexta lua, amei e amo você. Não me importo com Trevas e Luz, porque o que sinto é maior que isso. O amor é maior que isso. Não pode ser definido, não pode pertencer a somente um lado, porque ele é apenas magia. Nem Luz, nem Trevas.

Calo-me. Meu coração está disparado, e o medo que ela me rejeite cresce a cada segundo em que ela permanece em silêncio.

– Eu não iria conseguir viver com este segredo - digo, baixinho. - Só quero que aceite o meu amor... Mas, se não aceitar, não morrerei amargurado, porque pelo menos saberei que tentei e...

Interrompo-me quando noto uma lágrima escorrendo por sua face.

– Camila?

– Sabe quanto tempo esperei para ouvir estas palavras? Sabe quanto tempo desejei dizê-las a você? - pergunta, em resposta.

Enquanto nos encaramos, a verdade chega aos poucos até a mim. Nosso amor é real, é recíproco. Olho para seus lábios, desejando beijá-la. Camila ergue o rosto e sorri, aproximando-se de mim.

– Eu amo você, Camila.

– Eu te amo, Victor.

Então finalmente a beijo.

~~

A visão se vai e agora eu encaro os olhos verdes de Liz. Os olhos exatamente idênticos aos de Camila. E, como Camila, Liz também está chorando.