Somewhere I Belong escrita por Akasha Korhinny Aylam


Capítulo 2
Capítulo Dois: Era Uma Vez




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/433908/chapter/2

Somewhere...

À luz de velas se encontrava o recinto onde despertou. De teto baixo, esculpido em rústicos blocos de barro-escuro, o lugar tinha um aspecto humilde e funesto. Talvez tanto quanto às vestes acastanhadas e pesadas do homem que se assentava à beira da cama, velando seu sono com os olhos de um cobalto-anis jamais visto nos arco-íris e cabelos paz-platinados como chuva que batalha com o Sol. Era o interminável inverno buscando pela primavera eterna.

– Vous vous êtes réveillé... – sussurrou ele, provavelmente em francês, ocultando os olhos com uma mão e simulando um pequeno sorriso. – Dieu merci.

– Me desculpe – começou, tentando se sentar, no entanto desistiu ao ter as vistas escurecidas –, não entendi o que disse.

– Apenas um pequeno agradecimento ao Altíssimo – esclareceu o homem, agora em inglês, retirando a mão que escondia os fragmentos do arco-íris ideal, e os cravando nos seus olhos. – Passei o dia inteiro bastante preocupado com seu estado.

– Peço perdão por isso – voltou a desculpar-se e finalmente conseguiu sentar-se, apoiando a cabeça com a mão direita à testa. E um dia inteiro?! Dormira por um dia inteiro? –, mas quem é você?

O desconhecido deu um encorajador sorriso, e se apresentou:

– Sou Minos, o capelão de Mermaid Imamculée. Como se sente?

– Com dor de cabeça – confessou, retirando o apoio e recostando-se nos travesseiros.

– Fico aliviado em ouvir isso – afirmou o clérigo com um sorriso de canto de boca. – Depois de ser atropelado daquele jeito, era de ser esperar algumas fraturas no melhor dos casos. Mas tudo o que possui é uma dor de cabeça...

Atropelado? Tudo do que lembrava era dos faróis indo a sua direção. Disso, e do sangue no para-choque, no chão, e na lã. Olhou para as próprias mãos, podia jurar que as vira vermelhas por um instante. Falou, tentando apartar aquela sensação desagradável.

– O senhor disse Mermaid Imamculée, né? Esse lugar fica na França?

– Sim – assentiu o capelão, dirigindo o olhar para o chão –, mas, às vezes, quase me esqueço disso. Somos uma pequena vila praieira sem ligações estreitas com gente de fora.

Aquele pobre animal... Provavelmente, era dessa vila. Pensou, mordendo o lábio. Não devíamos nem mesmo estar aqui. Não depois do que aconteceu...

– Não incomodaremos mais – quis tranquilizá-lo, já saindo da cama. – Nem deveríamos estar aqui.

– Refere-se a quem, além de si mesmo?

– Aos meus amigos – respondeu, voltando a visão para a face do padre que lhe pareceu desconcertada e cortante em seu silêncio. Por que será que estava assim? Um pensamento impensável passou por sua mente e indagou descrente. – Eles estão aqui, não é?

A expressão de Minos fez-se grave, seus olhos tornaram-se mais metálicos, seus cabelos ficaram álgidos. Totalmente inverno.

– Não havia nenhuma alma viva contigo. Sinto muito.

And I've got nothing to say

I can't believe I didn't fall right down on my face

No silêncio, o virginiano pode ouvir novamente os diminutos punhos do céu, sofrendo contra o telhado da residência sacra. E a sensação estranha de antes agitou-se em seu interior, como um delírio de febre terminal.

– Tudo bem... – Shun tinha impressão de que deixara algumas lágrimas escaparem, mas sorriu com doçura. – Eles devem ter pensado que eu... Que eu... – Não conseguia completar a ideia. Havia sangue em suas roupas e não era seu. Fazia uma boa ideia de onde viera, ainda que não o quisesse acreditar. – Tudo bem...

– Não pense nisso, criança. Apenas descanse – aconselhou-o Minos, erguendo-se. Tinha um olhar agitado em cólera, ainda que a face seguisse comedida. – Trarei um chá para livrar-lhe da dor de cabeça. E saiba que mesmo este sendo um vilarejo recluso, sua presença é bem-vinda.

(I was confused)

– Arigatou – balbuciou e baixou a cabeça.

Depois que o capelão se foi, permitiu que as lágrimas rolassem com fartura.

Seu lugar é com a gente. Como sempre foi. Disse Hyoga. Estou vendo que é... Meditou com seca ironia nem lhe um pouco natural. Pelo menos tive uma resposta verdadeira em anos... Isso é bom. Eu acho.

looking everywhere only to find that it's

Not the way I had imagined it all in my mind.

Fugiu das dolorosas divagações ao escutar uma tênue canção ecoar ao longe, como que acompanhando os punhos da chuva. E dando um ritmo harmonioso e melódico a eles. Transformando-os em um constituinte de uma linda canção. Cuidado! Tal aviso foi cantando por sua memória, junto à melancolia daqueles olhos beijados pelo relâmpago. Manteve-se imóvel, ouvindo aquela melodia, deixando que ela preenchesse parte de sua vastidão de areias secas.

(So what am I)

O jovem padre retornou algum tempo depois, trazendo o chá e roupas limpas. E notando as linhas de tristeza no rosto do japonês, convidou-o para ouvir uma história junto aos demais moradores. O virginiano fez menção de recusar a oferta, porém o clérigo argumentou que era costume local que o povo se reunisse no início de certas datas especiais para escutar os dizeres dos mais sábios. E que, devido a sua presença, o encarregado do conto desta noite até mudara o roteiro. Logo, sua presença era imprescindível. Sob tal afirmação Shun não teve saída e concordou em se juntar as pessoas na capela.

Enquanto o guiava até a capela, Minos explicou-lhe que como Mermaid Imamculée é uma terra de pescadores e agricultores pouco entendidos na arte de discursar, geralmente, Dégel, um historiador que pesquisava sobre as raízes da vila, ficara encarregado de narrar às histórias, saídas diretamente dos escritos antigos que ele encontrara.

Quando chegou à capela – que nada mais era do que um espaço amplo dotado de compridos bancos de madeira amontoados em ambas as paredes laterais e de aspecto semelhante ao quarto no qual estivera. Lúgubre, humilde e funesto –, enrolado num coberto para espantar o frio, viu que alguns falavam sobre o cordeiro que morrera.

What do I have but negativity

Cause I can't justify the way

everyone is looking at me

Sentiu-se mal e responsável por aquela perda. Mesmo que não estivesse guiando, estava no carro e vira todo aquele sangue. Quis se desculpar, mas desistiu ao ser abordado por uma senhora e uma menininha, que perguntaram se queria sentar-se com elas. A menina disse que tinha trazido um pouco de caldo de beterrabas, um cozido de peixe e abóboras e pão. Que poderia dividir com ele. Pelo menos foi o que o capelão da vila lhe repassou. No fim das contas, desculpar-se não traria aquele pobre ser de volta a vida, então somente agradeceu e deixou-se conduzir para a roda. Muitos foram os que o abordaram para saber se estava bem. Aquilo o chocou. Nunca ninguém se importara tanto.

(Nothing to lose)

Num dado momento, todos silenciaram. O crepitar do fogo a queimar nos braseiros e nas velas pareceu encher os ouvidos do rapaz. E seu calor pareceu abraçar-lhe, acolhedor com um carinho fraternal que poucas vezes experimentara. Era quase como se Ikki tivesse regressado dos mortos. Um homem de óculos com um grande livro de capa dura escarlate nas mãos adentrou o antro comunal. Ao fitar o vívido e cáustico castanho de seus olhos, Shun sentiu como se toda a dor que lhe acompanhava fosse expulsa para bem longe. Por não suportar seu calor. E ao observar o ondular rubro de suas madeixas, teve a impressão de que voltara a ser criança, a brincar na companhia do irmão pelo jardim do orfanato aonde foram criados. Mais quente que o verão que não chegou; tão nostálgico quanto o outono que lhe escapou. Esse deve ser Dégel, o historiador... Ponderou, vendo-o pôr o livro sobre o púlpito de pedra. Perguntava-se como poderia compreender o que ele iria dizer, já que mais ninguém ali, além de Minos, parecia saber inglês, quando o estudioso começou a falar:

Nothing to gain, hollow and alone

– Muito boa noite, meus concidadãos! Espero que este Dia das Bruxas que inicia-se seja tão calmo quanto pode-se esperar que o seja – todos murmuraram algo que o japonês não foi capaz de compreender. – Não irei me demorar nesse discurso. Como bem o sabem, logo mais o reverendo Minos nos pastoreará com a sábia palavra do Pai. A mim, só resta encher seus ouvidos de história antiga e empoeirada. Espero que possam apreciar este ciclo que inicia-se com o último badalar do pêndulo, e com a presença dos espíritos hereges.

Um som mudo de expectativa ouviu-se e Dégel desceu do altar, começando a narrar seu conto.

– Conta-se que há muito tempo atrás essa terra foi governada por um grande rei, cuja personalidade era revoltosa, mas o coração era fraco. Que em sua viuvez possuía oito filhos: seis príncipes, uma princesa e um nascido bastardo. Certa vez o rei disse: “Por Deus, eu fui honrado com os sete espíritos dos céus. Enquanto, os sete estiverem ao meu lado, nada hei de temer.” Os salões de seu castelo eram repletos de resplendor, suas colheitas eram bem servidas, seus cavaleiros eram leais, e seu povo vivia em paz. Pelo menos até que a guerra, sedenta como quem toma água salgada de uma boa golada, chegou a seus domínios, apagando o brilho de seus salões, destruindo suas plantações, bebendo do sangue de seus cavaleiros e, voraz de nula piedade e sem nunca saciar-se, provando de seu povo, instalando o mais belo terror.

“Diz-se que em meio ao tormento o príncipe mais velho, em sua juventude impetuosa, pegou em espadas e conduziu seus irmãos legítimos à batalha, respondendo com terror ao terror e com sangue ao sangue. Fazendo chorar e sofrer os amados de seus inimigos. Todavia, sua impetuosidade não era dotada de prudência e sensatez. E foi assim que perdeu a vez, e junto dela, a vida sua e a de dois de seus cinco irmãos reais.”

“A dor de perder parte de seus bens, vassalos e servos era fatigante, mas a perda de três de seus herdeiros dos quais seu primogênito acometeu brutalmente o coração do rei, que caiu doente. O quarto príncipe assumiu a regência e o comando de guerra, porém este não era um guerreiro como os falecidos irmãos nem tão impetuoso nem tão mordaz. Em sua infantilidade, fez suas tropas recuarem, esperando que o pai melhorasse e desse um rumo àquela situação sofrida. Entretanto, a situação do rei só piorava, era como se morresse junto com cada pedaço de terra manchado de rubro, a cada vida ceifada. E em sua ociosa espera o quarto príncipe perdeu a vida pela ponta da adaga de uma espiã dos adversários. Deixando a coroa nas mãos do sexto príncipe, pois o quinto, tendo escolhido o caminho do Altíssimo, não podia assumir tal fardo. O novo príncipe regente, que não passava de um rapazote, ainda menino, só sabia chorar ao pé da cama do pai, junto da irmã. E a terra continuou a sangrar e sangrar. A pequena resistência se encontrava nas mãos dos vassalos.”

“Sentado no telhado da torre mais alta do castelo, o nascido bastardo pensava nas palavras do pai. Sobre os sete espíritos dos céus e seu poder de afastar os males. Se o pai tivesse razão em suas palavras, nada mais se poderia fazer para remediar a criação daquele rio, aberto numa ferida da terra. Lágrimas de desilusão brotaram de seus olhos ao ver a fumaça que escapava das lareiras da vila, aquecendo aquele início de noite. Pois o tempo que tinham, não era tempo algum. E a morte chegaria pela manhã.”

“Não era um príncipe e desde pequeno aprendera que aquele era o povo de seu pai. Com os lábios vetados por severas lições, não lhe cabia palavra alguma, senão “sim, meu senhor” e “não, meu senhor.” Não era um guerreiro e nem tinha liberdade para ser o que quisesse. Era apenas uma corda trazida para enferrujar junto do sal do mar. E, mesmo que quisesse, nada poderia fazer pelo povo de seu pai. Nada, além de dar-lhe seus sentimentos, como o fazia todos os dias de sua vida para com seu rei. Levou a única recordação da terra de sua mãe aos lábios e deixou que dela desprendessem-se as notas da última sinfonia. Deixou que por elas vazassem os pedaços de seu coração. E ao fim da música, ouviu os aplausos de poucas palmas a seu redor.”

“Três figuras adornadas de negro cercavam-lhe. Uma vestida de gelo, uma trajada de fogo e folhas e uma moldada em pétalas de vida. Três Magos Hereges. Cada um lhe direcionava um olhar diferente, contudo igualmente admirado. E em sua mudez, ecoaram:”

“Todo humano que presenteamos pode obter três coisas de nós, uma de cada um de nós – disseram as três figuras negras. – No entanto, porque tu nos trouxeste grande felicidade, conceder-te-emos quatro coisas.”

“De mim, poderá conseguir a libertação de um infortúnio – disse a vestida de gelo.”

“De mim, poderá conseguir um laço de alma – disse a trajada de fogo e folhas.”

“De mim, poderá conseguir uma profecia e uma proteção – disse a moldada de pétalas de vida e acrescentou: - Deverá desejar nesta ordem e assim vossos desejos serão realizados.”

“Não deves falar. Era isso o que sempre escutara, mas era sua chance, não é mesmo? Talvez a única que seu rei e o povo dele viessem a ter. O que poderia perder com isso? “Tudo o que eu quero é...”

“Que os pais que gastam dia e noite com os olhos pregados no horizonte, e as mães que tanto rezam e choram, tenham seus filhos sãos e salvos na segurança de seus lares quando esta guerra acabar;”

“Que a alma que pode dar fim a esta guerra e trazer paz ao povo de meu pai se ligue àquela que tiver sua coroa para que assim o seja feito;”

“Que vossa profecia me seja entregue no momento de minha morte, pois alguém como eu, que não é rei e nem episcopado da Igreja do Senhor, não pode querer saber do futuro que nem mesmo os reis e os clérigos sabem. Que quando eu tiver de partir, possa saber se fui capaz de honrar meu pai e seu povo mesmo tendo nascido bastardo. Que eu possa saber se usei os privilégios que me deram de forma útil a eles.”

“E se não o tiveres os usado com sabedoria? E se teus pedidos levarem a danação de teu pai e da casa dele? Ainda assim irá querer sabê-lo às portas da morte? – questionou-o a figura trajada de fogo e folhas. – Poderia submeter tua alma a um tormento eterno.”

“Sim, assim o prefiro – respondeu sem demora e com toda a convicção.”

“Ainda resta a proteção – lembrou-o a moldada de pétalas de vida. Abriu a boca para falar, mas foi interrompido. – Pede em teu nome. Afinal, estamos aqui por apreciar a tua música e não a de teu pai e do povo dele. Queremos agradecer-te pela melodia e agora que já gastaste teus demais desejos, só nos resta proteção para dar-te. Então, pede criança.”

“Eu... – E as figuras viram pela primeira vez sua hesitação. Era como se não soubesse o valor da própria vida. – Eu nunca tive nada que fosse meu... Desejo que vós sejais a lança e o escudo de quem me fizer sorrir por amor. Por toda a minha vida, sempre pensei em meu pai e em seu povo. E mesmo no amor, não o deixarei de fazê-lo. Nunca deixarei de fazê-lo. Tenho certeza de que essa pessoa quererá bem ao rei e ao povo, por isso a presentearei com tal proteção. Presentearei o povo de meu pai com vossa proteção.”

“Tens noção do que pedes? – quis saber a figura de vestida de gelo. – Como sabeis que chegará a amar alguém e que tal ser será capaz de fazer-te sorrir por tal sentimento?”

“Deu um sorriso triste aos três. Não o sabia, mas queria acreditar nisso.”

“Pobre criança. Tudo o que desejas é o amor de teu pai – disse a moldada em pétalas de vida, recebendo a confirmação dos olhos do bastardo. – Se assim o que queres, assim o será. De quem for teu sorriso de amor, será nossa fiel proteção.”

“Que assim seja – repetiram os outros dois e desapareceram todos.”

“Só que... O bastardo, o pobre bastardo na cegueira de seu amor não pode ver o que estava ali, bem diante de seus olhos.”

– Ce qu'il a vu? – Shun viu a menininha que o acompanhava perguntar.

– Que, por mais nobres que seus desejos fossem, nunca se realizariam como queria – respondeu Minos com pesar na voz. – O terceiro mago disse que ele deveria pedir na ordem que os desejos lhe foram apresentados e que assim também o seriam concedidos. Seu sorriso de amor... Aquele que guardava a proteção para seu pai e o povo... Nunca chegou a se realizar, pois sua morte chegou antes, graças à profecia que só lhe seria entregue antes de seu último sopro.

– Então... O que aconteceu? – dessa vez foi o virginiano que perguntou.

– Bem – Dégel retomou a palavra –, sem poder deixar de cumprir com aquilo o que prometeram, os magos aguardaram. Aguardariam até que o último desejo do bastardo fosse realizado.

– Mas, ele morreu! – protestou Shun. – Não pode mais sorrir por amor!

– Talvez seja por isso que ele não consegue descansar em paz.

E novamente àqueles olhos afogados em tristeza e aquele fraco aviso lhe assaltou a mente. O historiador continuou com o discurso.

– Sua alma ainda vagueia por esses campos, pelos bosques, pelas areias da praia e pelas ruínas do castelo à beira-mar. Sempre, durante essa data, pode-se ouvir seu lamuriar ecoar pelas ondas do mar e pelas paredes de nossas habitações. Os magos nunca o deixarão ir, não enquanto não entregarem seu último desejo.

And the fault is my own

And the fault is my own

Shun se levantou e Minos o advertiu:

– A história ainda não acabou.

– Para mim, sim. – E se apressou para fora do templo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Vous vous êtes réveillé... Dieu merci = Do francês, "Você acordou... Graças a Deus".
Ce qu'il a vu? = Do francês, "O que ele viu?"
Arigatou = Do japonês, "obrigado".