Herança escrita por Janus


Capítulo 14
Capítulo 14




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     - Haruka... correndo o risco de levar um belo de um soco na boca... você está louca? Tem idéia de como as crianças podem reagir a isto?
     - Claro que tenho – ela permanecia impassível – e, na verdade, estou contando com isto. Já lhe disse o que pretendemos.
     Ele se sentou, esgotado demais para prosseguir com a discussão de pé. Achava curioso a rainha não ter se pronunciado nem por um instante a respeito. Na verdade, não fosse por ela piscar os olhos ocasionalmente, acharia que ela estava dormindo. E onde estava o rei? Será que ambos já tinham previamente aceitado aquela proposta insana, e, apenas esperavam que ele, sendo um súdito fiel, também o fizesse?
     - Você faz a menor idéia do que vai acontecer? Não tem acompanhado a evolução delas? – ele pôs-se de pé novamente, erguendo o punho direito cerrado, como para dar mais ênfase – ELAS PRATICAMENTE ESTÃO NO NÍVEL DAS INNER! Podem devastar todo o local do teste, e até se ferirem assim.
     - Não concordo – disse ela calmamente com um sorriso um tanto irônico – acho que você as está superestimando. Eu as tenho acompanhado sim, e reconheço que elas estão mesmo próximas dos níveis das inner... de dez anos atrás. As coisas mudaram muito agora. Mesmo você pode dar conta de todas elas sozinho, ou acha que não percebi o quanto você se desenvolveu?
     - Você não entende... – murmurou ele sentando-se novamente a mesa redonda – acho que nunca entendeu... é uma sailor e ainda é incapaz de aceitar que o seu poder não é simplesmente uma questão de mero treinamento.
     Ela o olhou interrogativamente, seu rosto uma clara evidência de que não estava entendendo absolutamente nada.
     - O que quer dizer com isso?
     Ele a ignorou. Não estava mais disposto a prosseguir. Se ela, Michiru e Setsuna não tinham entendido aquilo até hoje, não seria ele que poderia convence-las do contrário. Já estava desistindo de tentar tirar o corpo fora. O que eles pretendiam fazer era interessante do ponto de vista técnico. Enganar as crianças para que entrassem em desespero tentando vencer um inimigo invencível. Ele cuidaria do aparecimento deste formidável oponente. O problema era que não estavam contando com a determinação das crianças. Ele as conhecia. Tinha acompanhado alguns de seus treinamentos, ficando surpreso em como Sohar conhecia os poderes delas e como as ensinava a controla-los, como se... bem... realmente soubesse como tais poderes eram manipulados. Que tipo de teste era este que ela tinha pensado?
     - Majestade... o que a senhora acha a respeito disto?
     Pôde ver ela esboçar um fraco sorriso, mas não era de alegria. Era mais o tipo de sorriso de alguém que foi vencido em algo, muito provavelmente na argumentação de Haruka.
     - Eu não vou interferir nisto. Eu disse que Haruka iria determinar como seria o torneio, e, por enquanto, isto ainda está a cargo dela. Você é quem tem de decidir se aceita participar ou não.
     Mas que maneira educada de dizer que aquilo não era problema dela... ele é quem tinha de decidir se participava ou não. Por isso que Haruka estava tão educada! Em uma situação normal já estaria gritando e exigindo que cumprisse com suas obrigações de guardião.
     - O que você realmente pretende, Haruka?
     - Avaliar as crianças – respondeu ela mantendo aquele mesmo sorriso de ironia – fui encarregada disto. Se é para serem sailors, melhor que provem agora de que são capazes.
     - É bem mais do que isso. Muito mais. Se eu for mesmo fazer isso, elas não vão ter a mínima chance. Vão apenas lutar contra fantasmas, até ficarem esgotadas.
     - Como eu já disse, a idéia é essa. Não quero que elas achem que possam vencer. Já tive muitas situações em que não havia meios de vencer, e continuei assim mesmo. Até... – ela apertou os lábios – ser totalmente derrotada.
     - E quer fazer o mesmo com elas? Bela avaliação vai ser esta.
     - Eu estou fazendo a avaliação, lembre-se disto. Afonso... afinal, você aceita ou não? Eu podia tentar com o Sume, mas os poderes psíquicos dele não seriam tão eficientes quanto sua telecinésia. Elas poderiam perceber se alguém começasse a manipular as suas mentes. Além disto, Suzette é imune ao pai.
     - Tudo bem Haruka – desistiu ele de vez – eu vou fazer minha parte. Mas só para mostrar a você o quanto está subestimando as crianças. Só uma pergunta... porque a Sailor Moon e a Chibi Moon tem que participar também? A baixinha é muito jovem ainda, e a Sailor Moon já provou o seu valor há tempos.
     - Minha filha não é baixinha! – disse a rainha sem disfarçar uma risada.
     Aquilo quebrou um pouco o clima um tanto tenso que tinha se instalado na sala. Tanto Afonso quanto Haruka riram um pouco daquilo.
     - Quanto a sua pergunta... eu quero que elas participem. Simplesmente isso. Sailor Moon porque, apesar de, como você disse, já ter provado o seu valor, ainda é tão jovem quanto as outras crianças, e a Chibi Moon simplesmente para que ela tenha uma idéia do que vai ter que enfrentar se decidir continuar metendo o nariz nas brigas das outras.
     - Haruka... – chamou a rainha – pode ser um pouco mais educada com a sua escolha de palavras? Sei que ela andou atrapalhando vocês ultimamente, mas ela tem boa intenção.
     - Majestade – até que era divertido ver Haruka tentando ser educada – eu... vou tentar.
     - Mais alguma coisa ou já estou dispensado? – perguntou Afonso sem disfarçar a irritação.
     - Não guardião. Era só isso mesmo. O torneio é daqui a cinco semanas. Talvez seja bom você já ir treinando um pouco em como fazer o nosso invencível oponente.

 

-x-

 

     A torre mais alta do castelo de cristal. Praticamente inatingível, a não ser que se chegue lá por meio de um flutuador ou com equipamento de alpinismo – ou se tiver asas. Algumas vezes, as pessoas da cidade diziam que podiam ver um pequeno ponto ali em cima, um pequeno ponto que podia se mover. A maioria achava que devia ser um pássaro grande, ou, quem sabe, algum criado fazendo limpeza lá em cima – o que gerava uma boa pergunta: Como diabos ele chegou lá? – ou ainda uma das sailors que podiam voar, já que haviam duas destas.
     Não que fosse muito importante, pois as pessoas quase não se incomodavam muito com isso. Mas, aqueles que eram curiosos, notaram que, desta vez, haviam dois pontos naquele lugar. Talvez um casal de cegonhas tenha escolhido a torre para fazer um ninho, ou quem sabe as duas sailors voadoras estavam lá em cima para bater papo. Qualquer que fosse a resposta, os poucos que notaram os pontos logo se esqueciam deles, preferindo aproveitar o sábado. Com certeza todos eles mudariam de idéia se soubessem quem eram os que formava aqueles pontos...
     - Ainda vai me dizer como você consegue chegar aqui em cima.
     - Conto no dia em que me falar a sua forma de chegar aqui também, majestade.
     - Sohar – o rei Endymion sentou-se ao seu lado – sabe que não precisa ser tão formal para comigo. Estou aqui como amigo, e não como seu soberano.
     Ele não se moveu. Preferiu continuar sentado, as pernas perigosamente próximas da borda da torre cristalina, observando a vista estupenda da cidade. O rei conhecia aquela posição, bem como o motivo dele estar ali em cima. Ele queria isolamento. Queria pensar tranqüilamente. Seria uma boa idéia deixa-lo ali – afinal, era o que ele queria – mas, ele também sabia que, o único motivo dele querer isto, era por estar profundamente incomodado com algo.
     - Não estou em um dia bom para conversar – disse ele distante – na verdade, nesta semana inteira eu estou no esquema de dar patada em todo mundo.
     - Eu sei. Lita andou comentando comigo que você anda um pouco seco. – ele olhou de lado para ele - Desde a noite em que esteve na casa de Haruka e Michiru...
     Nenhuma resposta. Tinha acertado em cheio! Aquela devia ser a sua atual ferida. Não era para se espantar, considerando o quão conturbado era o relacionamento entre eles. Ambos se respeitavam muito, mas, todos sabiam que, se os deixassem sozinhos em uma sala, era melhor ficar bem distante. Coisa de dois ou três anos luz deviam ser o suficiente.
     - Vocês não entraram em guerra, não é? – perguntou ele, mais para puxar conversa.
     - Ainda não – respondeu ele naquela sua voz que raramente usava. Fria, distante, impessoal. As vezes, causava calafrios – na verdade, ela foi incrivelmente educada. Ela, Michiru e Hotaru. Todas educadas, pacientes e sem fazer perguntas do tipo: "como você sabe disto?". E, se quer saber, é isto o que me deixou incomodado.
     - Como era mesmo a expressão? Esmola demais deixa o santo desconfiado? – riu ele.
     Sohar continuou em silencio, e, até o momento, sequer teve a educação de lhe dirigir o olhar. Desta vez, ele estava incomodado mesmo. Demais! Talvez fosse melhor mesmo deixa-lo só desta vez.
     Mas sua esposa insistiu em que ele fosse falar com ele. Há... Serena... como você consegue? Como sempre consegue convencer os outros a fazer o que quer?
     - Sohar... o que realmente o incomoda tanto?
     - Darien... há dois anos, todos descobriram que eu podia usar o cetro solar. Foi a única forma que encontrei para conseguir sair vivo da Lua. Eu me lembro da expressão de seus rostos então... todos atônitos e impressionados. Todos com diversas perguntas veladas e que estavam com medo de faze-las – ele olhou para cima, em direção ao céu já sendo pontilhado de nuvens. Talvez chovesse a noite – mas não perguntaram nada... nada mesmo. Apenas Setsuna pegou o cetro e entregou a rainha, cochichando algo para ela. Horas depois, quando as crianças chegaram, fui selecionado para treina-las, pois, segundo as palavras da rainha, eu conhecia os poderes delas – notou que ele fechou os olhos e abaixou a cabeça, de uma forma solitária – cortesia da Setsuna. Desde então, ninguém tem me feito mais muitas perguntas, principalmente a única pessoa para quem eu iria responde-las – finalmente, olhou para ele, com uma certa dureza e melancolia no olhar – quando eu conversei com Hotaru na casa dela, me perguntaram sobre o broche estelar... eu falei algumas coisas, e, ninguém aparentemente se incomodou em questionar o meu conhecimento do assunto. Porque? O que foi realmente que Setsuna lhes contou?
     Era raro ele o chamar de Darien. Praticamente era o único que ainda mantinha este hábito. Só o fazia quando estava tendo uma conversa de amizade, do tipo que se espera uma resposta sincera, sem rodeios, sem proteção.
     - Não pense que foi muita coisa – respondeu ele de uma forma calma – de uma forma resumida, ela apenas disse que você, Gammy, Serenity, Kronos e ela própria tiveram suas parcelas de aventuras, antes de surgir o primeiro Milênio de Prata. E que você é parente de Kronos. Mas ela não disse o grau de parentesco.
     - Só isso? E foi o bastante para não ficarem mais curiosos?
     - Claro que ficamos. Mas ela também nos lembrou que todos nós temos nossos segredos, e que devíamos respeitar os seus – ele abaixou os olhos e completou – ela também disse o que aconteceu com Gammy. Deve ser por isso que sua esposa não lhe fez mais perguntas, mesmo sabendo que você as responderia.
     Ele voltou a olhar para a vista da cidade, praticamente esquecendo que ele estava lá.
     - Gostaria de saber, se não for algo muito pessoal, o porque que de se sentir torturado sempre que é forçado a se lembrar de seu passado.
     - Já matou alguém Darien? – disse ele como se as palavras fossem punhos cerrados dando socos para todos os lados - Não estou falando de coisas do calor de uma luta. Já sentiu vontade de matar alguém? Perseguir esta pessoa pelos confins da galáxia unicamente com este objetivo? – ele começou a arreganhar os dentes a partir deste ponto - Já teve o desejo supremo de jogar na lama tudo o que acreditou e defendeu apenas para sentir a satisfação de ver uma criatura agoniar até a morte? Por puro ódio? Apenas para saciar a sede de vingança?
     - Não... – respondeu ele encabulado e assustado com a súbita mudança de humor dele. Por alguns instantes, ele parecia ser outra pessoa.
     - Tem mais alguma pergunta?
     Ele estava calmo agora. Calmo, controlado e, quase, o velho Sohar de sempre.
     - Desculpe... – ele realmente ficou incomodado com aquilo - vou te deixar em paz.
     - Obrigado – disse ele distante novamente.
     Não era o que esperava. Por séculos, tinha ficado curioso com Sohar. Hoje, pela primeira vez, ficou ressentido de ter descoberto algo a seu respeito. Ressentido e até mesmo perturbado. Se Sohar era mesmo o tipo de pessoa que ele, sua esposa e todos os outros confiavam que era, tal lembrança era muito mais do que uma simples mácula em sua alma. Não importa se a pessoa a quem ele se referiu merecia todo este ódio, ou este destino – se é que ele o completou – isso não é desculpa ou justificativa para cobrar na mesma moeda.
     Se Sohar era a pessoa que imaginavam, tal coisa seria uma dolorosa agonia. E era unicamente dele. Não podia compartilha-la ou atenua-la. Sua esposa não podia ajuda-lo nisto. Era apenas e tão somente sua única e exclusiva agonia. Sua agonia!
     Sua dor!
     Sua vergonha!
     A eterna lembrança de que, talvez, por algum tempo, ele se tornou igual àqueles que tinha enfrentado por toda a vida. E ele conhecia esta dor. Ainda a tinha, da vez em que Metália o tinha obrigado a atacar sua própria amada. Talvez, de todas as criaturas do planeta, ele fosse o único a entender como ele se sentia, ao ter que se lembrar desse momento tão tenebroso de sua vida.
     E também, justamente por isso, ele sabia que, ninguém, seja quem for, seria capaz de saber exatamente o que ele estava passando ao ter de pensar nisto.
     Ele mesmo não sabia.


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