O Garoto Que Tinha Medo De Amar escrita por Gin


Capítulo 14
As Lágrimas Invisíveis


Notas iniciais do capítulo

Para Elysa

Por ter retomado minha coragem e confiança

Tenho uma dívida eterna com você



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Ícaro

A luz do sol já raiava fortemente pela janela do quarto de Ícaro, quando ele acordou. Era um dia de sábado, o que significava que ele teria de ir para casa, ou falar o motivo de querer ficar ali.

Ícaro se levantou da cama, e a arrumou, depois deu uma volta em seu espelho e penteou seus cabelos pretos totalmente bagunçados, tirou seu pijama e vestiu uma blusa preta listrada, e uma bermuda azul. Decidiu que não iria voltar para casa, e sim ficar na escola por aquele dia. Olhou pela janela do seu quarto e viu a pista de atletismo, Jocelyn estava correndo ali, graciosa como sempre. Foi até o banheiro do dormitório e escovou seus dentes, depois pensou em ir falar com Jocelyn, mas sua fome matinal o impediu de fazer isso.

Ícaro subiu até o quinto andar do prédio da escola, o último andar com exceção do terraço, e onde ficava a sala do diretor e dos professores. Ele nunca havia falado com o diretor antes, o que o deixou meio nervoso, além disso, as suas roupas não pareciam adequadas para se referir a um superior, Ícaro se xingou mentalmente por não ter pensado nisso antes de ir até lá.

O último andar, parecia mais um salão do que um andar de uma escola, tudo era brilhante e harmonioso, as janelas pareciam ter sido limpas há alguns segundos, o chão estava limpo e um pouco liso. Por mais que fosse grande e bonito, não havia muitas salas ali, apenas um depósito, a sala dos professores, a enfermaria, uma sala que Ícaro achou que deveria ser a de reunião, e por fim, a diretoria. As paredes da sala da diretoria foram pintadas de azul e branco, talvez para lembrar o céu e as nuvens, havia desenhos de livros e de lápis, de certa forma infantil, mas bem desenhado e destacado, como se houvesse sido pintado há apenas alguns dias. Ao se aproximar do local, Ícaro escutou uma conversa de dentro da sala, com a porta fechada, ele se aproximou e tentou quem estava conversando com quem, sem sucesso. Esperou por alguns minutos do lado de fora, sabendo que não seria nada bom para ele se interrompesse algo que o diretor estaria falando.

Depois de um tempo, ele se sentou, e esperou. Quem quer que estivesse lá dentro, deveria estar levando grandes broncas, para demorar tanto assim. Quando Ícaro cansou-se de esperar e ia bater na porta para entrar, alguém a abriu por dentro, era Daemon, seu professor de Física. Ele vestia um terno como de costume, e usava longas calças, Ícaro observou assustado, seu professor teve a mesma reação.

— Ícaro? O que está fazendo aqui? – Perguntou o homem.

— Eu... Eu vim falar com o diretor, pedir autorização para ficar o dia aqui.

Daemon assentiu e abriu mais a porta para que ele pudesse entrar. Ícaro, antes de olhar para a sala, deu uma última olhada em Daemon, e percebeu que seus olhos estavam baixos, de tristeza, o que será que teria acontecido? Em todos os casos, não poderia ser nada bom.

A sala da diretoria era ainda mais incrível que todo o corredor do 5°andar. Havia estantes e estantes, todas cheias de pastas e arquivos, com grandes panfletos indicando o que cada um significava, o cheiro da sala era de perfume floral, havia um ar-condicionado no fim dela. O chão tinha azulejo azul e branco, as paredes eram completamente brancas, sem nenhum risco sequer, nada para achar de defeituoso. Sentado em seu gabinete, ele viu o diretor, um homem que aparentava ter por volta dos 34 anos, usava um corte de cabelo curto, o que deixava em destaque de que ainda não havia nenhum fio branco. Na sua mesa estavam vários papéis e pastas, a qual o seu rosto não parecia nenhum pouco animado em ter que resolver, ele encarou Ícaro com uma cara pálida, respirou fundo e deu um sorriso.

— Entre, jovem.

Ao escutar isso, Daemon assumiu sua deixa e fechou a porta após a entrada de Ícaro. O mesmo se dirigiu até a cadeira próxima do gabinete e se sentou.

— Então, você quer autorização para passar o sábado aqui não é? Por que?

A voz do diretor era calma, mas ao mesmo tempo determinada, o que fez com que Ícaro tivesse que ser rápido e mostrasse firmeza.

— Bom, é que não tenho nada para fazer em casa, então...

O diretor olhou Ícaro, analisando o garoto.

— Como é seu nome, rapaz?

— Ícaro, Ícaro Arnetold, senhor.

O diretor fez uma cara de “Ah, agora entendi”.

— Ah sim, Ícaro, o aluno transferido. Achei que tivesse acontecido algum problema com sua matricula, pois você não veio me procurar desde o dia que chegou, como soube a forma que cada coisa funcionava aqui dentro?

— Eu fui perguntando aos estudantes e eles foram me respondendo.

O diretor assentiu, se levantando.

— Henry Alexander, prazer em conhece-lo. – Estendeu a mão.

— É um prazer senhor. – Tocou a mão de Henry.

— Sua mãe então estava errada, ela me disse que era para ajudá-lo a interagir com os outros, mas parece que você está indo muito bem nisso.

Ícaro deu um sorriso meio torto.

— Está tudo bem, você pode ficar aqui hoje. – Henry abriu uma gaveta e tirou um papel, pegou uma caneta e assinou. – Pegue, é a autorização, se algum vigia lhe parar, mostre-a.

Quando Ícaro pegou a carta de autorização, e seu nervosismo passou, ele se deu conta do quanto estava com fome, e sua expressão foi bem forte, pois Henry riu ao vê-la.

— Pode ir, parece que está com fome mesmo, se precisar de mais alguma coisa ou tiver alguma dúvida, pode vir aqui, sua mãe pediu para eu lhe ajudar no que precisar.

“Sua mãe”, ele havia dito. Essa palavra fez ele sentir saudade dela por um momento. Mas logo se levantou, cumprimentou o diretor em um gesto de despedida e desceu.

Enquanto descia as escadas, Ícaro pensou no que Henry havia dito para Charles, o que teria acontecido? O diretor estava de bom humor quando falou com ele, mas antes disso... De qualquer forma, ele apagou o pensamento e respirou fundo, agora com a cabeça doendo e meio triste, ao pensar em seus pais.

Os pais de Ícaro, por mais que nunca estivessem totalmente presentes, não eram maus pais. Eles tinham seu jeito de agir, e isso as vezes machucava o garoto, mas ele, nunca teve coragem de dizer isso.

Ao chegar no refeitório, respirou fundo e tentou esquecer essas coisas, pelo menos momentaneamente. Foi até o balcão e pediu um pão e um copo de café, mostrou a autorização ao pedir. Olhou para as mesas vazias, com exceções de algumas, a quais havia pessoas conversando, menos uma. Sentada em uma mesa no fim do local, estava sentada sozinha, uma pequena garota de cabelos vermelhos ondulados, usava uma jaqueta amarela, com apenas um braço colocado, o outro pendia de seu ombro, usava óculos escuros, encostado em sua cadeira havia uma begala e Ícaro reconheceu-a imediatamente, Lara.

Sentou-se próximo dela e sorriu, mas logo se deu conta de que ela não podia enxergar.

— Bom dia Lara, tudo bem com você? – Ícaro deixou seu tom animado, para que Lara pudesse se sentir bem.

Lara balançou a cabeça, meio sem entender, mas sorriu ao reconhecer a voz.

— Ícaro? – Disse ela, dando um sorriso.

— Sim, sou eu. – Ícaro deu uma risadinha e acariciou os cabelos da garota.

— Eu estou bem, e você? Por que está passando o sábado aqui? – Perguntou ela.

— Estou ótimo, eu estou aqui, porque não tenho nada pra fazer em casa, então ficarei sem nada pra fazer no colégio, já que estou aqui.

Lara riu, e mostrou seu belo sorriso, a garota era adorável em todos os sentidos.

— Onde está Louise? Ela foi há algum lugar? – Perguntou Ícaro, sabendo que as duas jamais estariam longe uma da outra por muito tempo.

— Louise não pôde ficar hoje, os pais dela tiveram que leva-la. – Seu sorriso desapareceu e ela abaixou o rosto, enquanto pegava lentamente na madeira da mesa, em busca de um pão a qual estava em seu prato.

Ícaro pegou a mão dela e a colocou até o pão, Lara sorriu agradecida. Ele assentiu, mas novamente se deu conta de que ela não viu. Então pensou o quão ruim seria não enxergar, não ver as coisas belas e feias do mundo, não poder olhar para algo e dar sua opinião, o quanto isso devia ser horrível.

— Lara... Por que você está aqui? Não seria melhor um colégio especial... – Ícaro falou, mas logo depois desejou não ter dito. Não era simples a história de um colégio para pessoas com deficiência, principalmente se você não aceita que aquilo está acontecendo com você, de todas as maneiras, a pessoa deseja estar entre as normais, porque ela sabe que é normal, então o orgulho supera a ajuda. – Desculpa. – Ele se retratou. – Não deveria ter perguntado.

Lara baixou a cabeça e comeu um pedaço do pão, mastigando pouco a pouco, depois assentiu.

— Não, tudo bem. Geralmente as pessoas me fazem esse tipo de pergunta, já me acostumei a responde-la. Louise também me recomendou muitas vezes que eu fosse, mas... – Ela balançou a cabeça em sinal de negação. Eu simplesmente não consigo.

— Mas e seus pais?

Lara deu um sorriso que pareceu um pouco forçado.

— Depois do incidente... Eles tem praticamente feito tudo o que eu peço...

Ícaro sabia que perguntar além dali, era forçar a barra, com certeza Lara ficaria triste, então ele se calou.

— Bom eu acho que você precisa de alguém hoje, estou certo? Eu me ofereço para esse cargo, vossa senhoria. – Brincou Ícaro.

Lara levantou a cabeça e sorriu fortemente.

— Eu não preciso de ajuda é apenas auxílio, meu servo! – Ela disse, brincando e sorrindo.

— Apenas auxílio. – Repetiu Ícaro.

— Acredito que Louise já tenha lhe dito cada canto daqui e que você saiba andar por todo colégio, estou certo? – Ele perguntou.

Lara assentiu firmemente.

— Com toda certeza capitão! Mas onde estamos?

Isso fez Ícaro rir um pouco e Lara compartilhou o sorriso.

— Estamos no campo de atletismo. Até alguns minutos havia uma garota correndo aqui, mas ela não está mais.

— Uma amiga sua?

— Não é o que posso chamar de amiga, mas é uma garota que corre bastante. – Ícaro sorriu levemente.

— Ah, é a Jocelyn?

— Você a conhece?

— Sim, Louise fala dela o tempo todo, é uma grande fã.

Ícaro se pegou pensando naquela garota rabugenta vendo uma corrida de atletismo, e de que maneira isso seria possível.

— Deixando a corredora de lado, para onde você quer ir?

— Acho que minha jaqueta está faltando um braço. – Falou Lara, ignorando a pergunta de Ícaro.

Ícaro olhou para a jaqueta mal colocada e riu um pouco, ele havia se esquecido desse detalhe. Colocou o braço dela na jaqueta.

— Pronto, agora ela está com o braço no lugar.

— Você é um bom servo, lembre-me de depois contrata-lo para tempo integral. – Disse ela sorrindo, aparentemente estava se divertindo com isso.

— Bom, mas a vossa senhoria ainda não respondestes minha pergunta, onde deveríamos ir?

— Eu acho que tenho que ir ao meu quarto, não tive a oportunidade de tomar banho ainda. – Disse ela cheirando sua roupa, por mais que não estivesse com mau cheiro algum.

— Tem um banheiro no seu quarto?

— Tem sim, até porque seria meio difícil eu usar o banheiro de dormitório comum não acha? – Ela deu um sorriso.

Lara dormia em um quarto compartilhado. Esses quartos eram oferecidos somente em causas especiais, ou se estivessem faltando espaço nos dormitórios comuns. Os dormitórios compartilhados, ficavam dentro do prédio, no salão térreo, geralmente era para dois alunos, mas podia caber até mais. Lara, divida o quarto com Louise.

Ícaro chegou até a porta do quarto de Louise que pegou em seu bolso a chave, tocou a porta até achar o buraco da fechadura, colocou ela e abriu.

— É... Eu não posso te acompanhar mais que isso. É proibido entrar no quarto de garotas.

— Ah, isso é verdade, então você pode me esperar até eu terminar?

Ícaro acariciou a cabeça de Lara.

— Vai lá, vou me sentar aqui na porta.

Lara sorriu e entrou no quarto, deixando a porta aberta, talvez por esquecer de fechar, ou talvez por ter a esperança de que Ícaro a acompanharia. Ele fechou a porta.

Ícaro então pensou na dificuldade de fazer tudo, quando estivesse sozinha. Como ela se viraria, se derrubaria alguma coisa, se acabasse caindo, tudo isso era complicado demais e ele não conseguia entender como alguém fazia isso. Depois pensou se Lara já havia nascido cega ou perdido a visão durante a vida. Ambas as coisas eram horríveis, mas perder algo que você já tinha, acaba se tornando pior ainda.

Vários minutos haviam se passado, sem nenhuma resposta ou som de Lara. Ícaro passou a ficar preocupado, e bateu na porta, chamando pelo nome dela, mas não obteve nenhuma resposta.

— Lara, está tudo bem? Lara?

Ícaro chamou e chamou, mas novamente, ninguém respondeu. Ele olhou para os lados, a procura de alguém vigia que estivesse por ali, e não avistou ninguém. Respirou fundo e entrou no quarto.

O quarto era gigante, havia alguns quadros, dois armários, duas camas, dois criados-mudos e diversas outras coisas as quais Ícaro não se deu ao luxo de reparar. Sentada em uma das camas, estava Lara, de cabeça baixa, sem os óculos, de seus olhos esbranquiçados, desciam lágrimas e lágrimas, e mesmo que fosse silenciosa, o seu choro era intenso. Ícaro ficou paralisado ao ver ela daquele jeito, até pouco tempo atrás ela estava alegre e sorridente, mas então...

Ele sentou-se do seu lado na cama, e acariciou os cabelos dela.

— Me conta o que aconteceu. – Falou ele em um tom calmo.

Lara passou a mão por entre a barriga de Ícaro e o abraçou, ele retribuiu, enquanto ela caía em lágrimas.

— É difícil... É difícil aguentar isso o tempo todo... De que preciso de alguém pra fazer tudo.

Ícaro reparou que ela ainda estava com a jaqueta, só que dessa vez, estava sem o braço do outro lado e logo percebeu que Lara não conseguiu nem mesmo tira-la.

— Eu... Eu tive câncer ocular quando tinha oito anos... Desde então... Tudo se tornou um inferno. – Ela gaguejava e fungava. – Eu tinha sonhos todas as noites, de que não estava cega de verdade, que eu havia sido curada, que eu não precisava passar pelos tratamentos...

Ícaro então pensou em tudo que Lara devia estar passando. Na dor, nas pessoas do seu lado, sua família, Louise também. Não era algo que afetava somente ela, afetava todos os próximos.

— Olha... – Ícaro pensou em dizer algo, mas nada veio à mente dele. – Eu sinto muito, suas lágrimas são pesadas e de quem sofreu bastante, parece que você as esconde, são basicamente lágrimas invisíveis. Ninguém as vê.

— É que... Não quero que as pessoas me achem fraca, que não posso suportar isso... Por mais que eu realmente não consiga... – Lara soluçou e se perdeu na última frase.

Ícaro respirou fundo e beijou os cabelos de Lara.

— Eu entendo, até pouco tempo atrás eu encontrei a mesma pessoa com um problema assim, por mais que não fosse tão sério. Mas sabe de uma coisa? Você é a pessoa mais forte que já conheci. Não é fácil conseguir ter o carisma que você tem, ficar sorrindo toda hora e ainda tentar se divertir quando se tem um problema assim tão grande. Não é fácil, não é mesmo. Não tem problema em chorar um pouco de vez em quando, as pessoas fazem isso, e como dizia minha mãe: “Faz bem para a alma”.

Lara parou de soluçar um pouco.

— Sabe, não é fácil depender dos outros, na verdade é algo bem ruim mesmo. Mas enquanto você tiver força de vontade, logo, logo, você vai ver que consegue se superar, acredite em si mesma! Eu acredito em você. – Ícaro sorriu para ela.

Lara então abraçou Ícaro mais forte, se livrando das lágrimas, depois acariciou o rosto de Ícaro.

— Obrigada...

E depois disso, houve um silêncio constrangedor.

— Ah, olha só o horário, é melhor a gente sair daqui, antes que um vigia perceba que eu invadi seu quarto. – Ele riu.

— É mesmo, ou nós... Nós estamos encrencados não é!? – Lara tirou um pouco das lágrimas do rosto e deu um sorriso crescente.

Ícaro então, esperou Lara acabar o banho, e até a ajudou a se vestir, quando ela já estava com as roupas intimas. Depois ele olhou pelo corredor para ver se não havia nenhum vigia, felizmente não tinha.

— Caminho livre, capitão? – Perguntou Lara.

— Sim senhora, maruja. – Respondeu Ícaro.

E pelo resto do dia, aqueles dois caminharam e cantaram. Não poderia ter sido mais gratificante para Ícaro, não poderia ter sido mais alegre para Lara. Aproveitar o tempo é algo que eles sabiam fazer, bom, pelo menos um deles soube, já o outro, nem tanto...


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Notas finais do capítulo

O tempo, o orgulho, ambos passageiros, um se cura com o outro.



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