A vendedora de guarda-chuvas e o filho do coveiro escrita por tamirsalem


Capítulo 10
Capítulo 9 - Amigos certos em horas incertas




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Mors omni aetate communis est.(A morte não poupa ninguém)  Omnia cinis aequat. ( As cinzas tudo nivelam.)

“Isaías? Venha, Isaías.”

“Eu não sou Isaías; eu sou Hannah.”

“Omnia cinis aequat, Hannah. As cinzas tudo igualam; a morte tudo nivela. Ele não é pior que você, apesar de tudo que fez.”

“Isaac? É você?”

“Por que haveria ele de saber? Ele só sabe sobre tu, Hannah. Ame-o.”

“Não é o que ele quer; ainda não, ao menos.”

“Mors omni aetate communis est; a morte é para todos, Hannah; nem um milhão de pobres coitados a adiarão.”

“Eu sei.”

“E mesmo assim insistes em adia-lo? És uma idiota.”

“Nunca disse o contrário.”

“Correm ambos riscos extremos; amam-se loucamente e um sem o outro desmoronar-se-à; por que contra isso insistes em lutar?”

“Ele ainda não sabe o que é amar, infelizmente.”
“Ensine-o.”

“Isso não se ensina, se cura.”

“Então cure-o logo; adie-o e adiar-se-à tua salvação.”

“Não posso curá-lo sem antes conhecê-lo.”

“E amá-lo.”

“Eu...”
“Não o ama.”

“Eu não sei.”

“Mentes.”
“Todos mentem.”

“E tu matas.”

“E também salvo.”
“É realmente nisto que acredita? Assassina!”

“Eu sei quem tu és.”
“Teu algoz, assassina!”

“Socorro, Isaac!”

*~~~~~~*

Os olhos subitamente avermelhados, ela abraçou Isaac; ofegante, seus movimentos claudicantes entregavam o extremo nervosismo que sentia após aquele terrível pesadelo.

“O que houve?”Isaac perguntou, seus olhos semi-cerrados, desperto pela força com que Hannah o abraçou, desesperada.

Haviam tomado a sopa insossa que Hannah havia preparado, esfomeados; revigorados, foram até onde estava sepultado Jacó, o cárcere de Isaac, para prestar-lhe homenagens em um ato que, mal sabia Hannah, era totalmente despido de propósito e era quase uma afronta ao morto, devido à ofensiva ironia que carregava.

“Quer ficar sozinho?” perguntou-lhe Hannah, compreensiva, enganada pela suposta bondade que prestava Isaac ao pai.

“Sim, por favor.” Respondeu Isaac, irresoluto, sem muita certeza sobre o que exatamente pretendia lá fazer que não poderia ser feito com Hannah por perto.

“Eu estarei próxima quando quiser ir embora. Meus pêsames, Isaac.” Avisou-lhe, disposta a usufruir do tempo que passaria esperando o pobre rapaz tocando seu melancólico violino, que havia rapidamente pego em seu casebre miserável, despido de qualquer riqueza material fora o que lhe havia sido, de certa forma, dado sem consentimento. Era aquele casebre um local de lucubração quase santa para ela e lhe era imprescindível que nele nada houvesse, para que pudesse manter total concentração; era um símbolo de miséria, uma casa que podia muito bem ser de um padre que houvesse levado a sério o voto de pobreza e era o violino a única posse com algum valor material que tinha, sendo ele, fora seus guarda-chuvas praticamente inúteis, a única posse a que realmente dava algum valor; era seu elo com o exterior, e parte irremovível de seu ser, ainda que não o carregasse todo o tempo consigo como fazia com a carcaça de seu primeiro guarda-chuva, aquele memento triste e patético. Absteve-se de beijar Isaac, querendo deixá-lo na mais absoluta paz possível e foi-se vazio adentro, em um caminho incerto; a sua frente, montes intermináveis de arbustos mortos e neve; andou até que chegasse a um local suficientemente distante para que o som de seu violino fosse quase que totalmente inaudível para o supostamente enlutado Isaac.

Despido de toda a sua tristeza, havia conhecido o maravilhoso paraíso que era a convivência com os outros, aquele pecado proibido que, a todo custo, seu pai tentara, com certo sucesso ocultar-lhe; e agora, despedir-se-ia definitivamente do pai, expurgando seu fantasma e não tomando-o como peso insuportável que atormentar-lhe-ia a mente, mostrando-lhe, desdenhoso, como agora era feliz sem ele e que belos frutos havia dado a sua árvore maléfica de isolamento forçoso, nascida após seu tremendo e arrasador fracasso emocional.

“E no fim, morreu feliz, sorrindo. Jamais se recuperou após a saída dela e queria fazer-me uma cópia tua, miserável, um miserável carente que espera a piedade dos outros por ser ‘ eternamente leal a esposa’, mesmo quando esta o deixou. Será que no outro mundo, no fogo tortuoso do inferno ou no paraíso ambrosíaco descansará finalmente?” indagou, sua fronte erguida orgulhosamente em direção ao céu, comunicando-se pela primeira vez com o pai de igual para igual, pois jamais suas palavras carregaram para o pai tanto significado como carregavam as de Jacó para ele. “Por que, pai? Para que não seguistes em frente? O que diabos ganhaste ao tentar me transformar nisto que por sua própria decisão tornou-se? Por que?” continuou, começando a chorar copiosamente. “Sou feliz agora, sem tua mágoa eterna, sem o fardo que forçou-me a carregar. E tu também deveria ter sido, pai. Sabes disso. E que tu sejas, se é que algum dia realmente soube o que isto é, feliz, pai, feliz. Adeus.” Concluiu, emocionado porém verdadeiramente aliviado, cravando no pinheiro palavras adicionais ao lado do ‘Adeus’ que havia escrito no momento imediatamente após o enterro de seu pai:
‘Finalmente, adeus, Jacó.’

O melódico e melodramático som do violino ecoou pela planície desértica. Seus finos dedos seguravam o arco de seu instrumento, enquanto cantava, sorridente, sua doce e mesmerizante voz entoando uma bela canção; sentia-se leve e completa, pronta para acolher Isaac, que provavelmente estaria em prantos, em seus calorosos braços alvos.

Senhor Inverno, não morra quando a primavera chegar. Senhor Inverno, não nos odeie quando o amor que sentimos pelo verão perceber. Senhor Inverno, por favor, venha logo quando teu irmão Outono seus ventos refrescantes soprar. E, se algum dia, de ti esquecermos, Senhor Inverno, nos faça de frio queimar e de calor congelar.” Cantava, compenetrada, em perfeita sintonia com a melodia etérea que do violino emanava.

“Já é hora.” Disse de si para si repentinamente, levantando-se e interrompendo sua prática habitual e bastante revigorante, conformando-se com o fato de ter de ir ao encontro de Isaac, que, naturalmente, jamais encontrar-lhe-ia em meio aquela vasta planície isolada caso ela mesma não fosse ao seu encontro, fora que, ao aceitar ir com ele e ficar somente o estrito tempo de que fosse precisar Isaac para realizar as exéquias incorpóreas de Jacó, sabia ela que muito provavelmente teria de se interromper para ir-se com ele.

Ela andou em direção ao túmulo improvisado de Jacó, esperando encontrar-se com Isaac no meio do caminho ou ao menos ouvir sua voz chamando-lhe, tristonha, porém assustando-se ao chegar próxima ao pinheiro, onde avistou Isaac sentado, melancólico como sempre fora, aparentemente esperando-lhe.

“Você não ia ao meu encontro?” perguntou-lhe, bastante confusa porém desafiada, sentindo que, afinal, havia muito que não conseguiria decifrar tão facilmente no coveiro e que exigiria dela muita perseverança e vários meses de convivência constante com ele para que pudesse ao seu âmago chegar e finalmente entender-lhe por completo.

“Eu tinha certeza de que viria me procurar.” Respondeu-lhe, com um ar que lhe era bastante incomum, um ar de certa presunção, porém de forma alguma um ar arrogante; era o aspecto de alguém que, pela primeira vez, começa a realmente entender como funciona certa máquina antes indecifrável perante seus olhos e orgulha-se de sua descoberta.

“Está começando a me entender, pelo visto! Quanto mais cedo, melhor.” Disse-lhe, bastante satisfeita, sentando-se ao seu lado.

“Você pode...?” perguntou-lhe Isaac, desajeitado porém encantadoramente envergonhado e triste.

“Beijar-te? Além de melancólico também é carente?” respondeu-lhe Hannah, entendendo-lhe mal.

Com um súbito, porém amável movimento,envolveu o pescoço de Isaac com seu encasacado braço esquerdo e lentamente, de forma tentadora e naturalmente lasciva, aproximou seu rosto do de Isaac lateralmente, de forma que seus lábios aproximaram-se gradualmente, sem que seus narizes se tocassem; o coração de Isaac recomeçou a palpitar rapidamente, e as fauces de ambos enrubesceram quase que completamente. Provocava Isaac como havia feito antes, porém, diferentemente de como antes havia sido, algo movia-lhe, uma idéia transcorria sua mente e transparecia através de seu rosto vermelho; por um longo momento, paralisada como alguém que leva um susto ao ouvir um baque surdo na madeira, considerou amavelmente a idéia de acabar logo com seu pequeno jogo de tentação beijando os lábios de Isaac e jogando-se em seus braços, porém foi logo demovida deste pensamento pela constatação de que não era, de forma alguma, o momento propício para beijá-lo, visto que lutava, inclusive com a ajuda dela, para lidar com a recente morte do pai.

“Eu te adoro, Isaac.” Disse-lhe, compassiva e afável, beijando-lhe a bochecha, o calor incandescente de seus lábios inundando Isaac.

Sôfrego, ele abraçou Hannah desajeitadamente, com seu braço direito, dominado por emoções conflitantes.

“Obrigado, Hannah, porém só queria que... cantasse para mim.” Pediu, olhando para seus pés, encabulado.

Se não se tratasse de Isaac, o rapaz que irremediavelmente havia cativado-lhe e cuja profunda candura havia tornado impossível qualquer tentativa de desfeita dos laços que agora os uniam, ter-se-ia subitamente ido embora ou, ao menos, estapeado lhe o rosto fortemente. O pobre rapaz obviamente não sabia como se comportar com uma dama, talvez nem com cavalheiros, especialmente nesta desconfortável situação de forçosa e rápida olhadela em sua intimidade após o mero convívio de somente dois intensos dias de incertezas, sangue, e carícias perdidas, despropositadas e ambíguas. De forma alguma, porém, significava sua estúpida reação que não procurasse desesperadamente tal convívio; só não estava preparado para tal.

“Como sabe que canto?” perguntou-lhe Hannah, desapontada pelo belo momento que ele acabara por arruinar, porém certa de que, em algum momento próximo, estaria Isaac curado de seus males e poderia apreciar seu gesto com muito mais delicadeza e gratidão.

“Eu ouvi um pouco. Era muito bonito, Hannah.” Respondeu, tristonho, incapaz de entender a súbita reação de Hannah.

“Eu...Obrigado, obrigado! Claro... eu canto para você!” Agradeceu-lhe, um grato sorriso abrindo-se em seu rosto, feliz pela oportunidade de, a sua maneira, reconciliar-se com Isaac, as marcas do seu breve ressentimento se esvaindo.

Afagou-lhe o cabelo e, com um gentil movimento, indicou seu colo.

“Deite aqui.” Pediu, sorridente, levando a cabeça de Isaac até seu colo.

Pegou seu violino, e, com toda a serenidade deste mundo, a cabeça de Isaac em seu colo, dedilhou-o cuidadosamente. Um sentimento maravilhoso tomando conta de si, o rapaz inocente literalmente jogado a seus pés, preparou seu instrumento e começou outra canção, bastante diferente da que antes cantava.

Isaac, confortavelmente apoiado, suava loucamente, somente consolado pela bela canção que executava a vendedora de guarda-chuvas e, apesar de pouco entender das pessoas em geral, algo nele, muito mais profundo do que outrora, dizia-lhe constantemente que, de forma alguma, era apropriada a posição em que ambos se encontravam, e envergonhado, procurava manter-se paralisado.

Dê-me um morango, senhor coveiro, que lhe dou um beijo; tímido e sonso és, mas a doce senhorita Primavera ira curar-te. Cava, cava, senhor coveiro, pois embaixo da terra quero deitar-me contigo algum dia; mas por hora, mas por hora, não me deixe ir embora.” Cantou, a letra que havia primordialmente surgido em sua mente sendo desenvolvida com base no improviso, seguindo sempre uma melodia um pouco mais animada, em meio ao fustigante vento invernal, que chicoteava a planície sem misericórdia alguma.

“Só consegui fazer isso, por enquanto. O que achou?” perguntou Hannah, esperando a provavelmente positiva avaliação de Isaac.

Sorridente, suas dores completamente atenuadas e, ao menos durante aquele incrível instante, esquecidas, hipnotizado estava Isaac; quão apaziguadora fora tal canção para ele, que efeito teve sobre seu antes melancólico ânimo!Sua letra, alegre e referente a ele, o deixou jubiloso e, tão calmo estava, que, sentia, poderia muito bem dormir ali mesmo,se ela continuasse a cantar.

“De perto é ainda melhor! É tão incrível!” elogiou Isaac, levantando-se.

Levantando-se e ajudando Hannah a fazer o mesmo, Isaac voluntariamente abraçou-lhe, carinhoso, como que movido por algo que soprou a bruma de apatia e tristeza para longe. Hannah recostou confortavelmente a cabeça no peito de Isaac, abraçando-o com mais força.

“Para casa?” perguntou docemente, secreta e inconscientemente omitindo o derradeiro pronome, considerando-se, realmente, moradora do casebre de Isaac.

“Não tenho dinheiro para chocolate, então, sim.”respondeu ele, brincando como raramente fazia.

“Não se sente culpado por ganhar dinheiro com o sofrimento dos outros? Não lhe reprimo, pelo contrário, me interesso.”
“Não sou um assassino, só os enterro. Ganho o mesmo independentemente do número de pessoas que enterro, não tenho razão para sentir-me culpado.”

“E os salva.”

“Não sou pago para tal.”

“Verdade. E como conseguiram o piano?”

“Herança. Tudo que temos, por mais patético que seja, é herança. Por isso, esculpimos lápides para ganharmos um dinheiro extra.”

“Sei como é. Mas o dinheiro que ganha com as lápides, esse sim aumenta ou diminui conforme o número de mortos.”

“Pessoas nascem e morrem. Mortes podem ser trágicas, porém que posso fazer? Morreria eu também de fome se meu trabalho não fizesse. Além disso, se todos os que merecem, ou seja, aqueles que merecem preocupação, irão para junto do Senhor, não há razão para que eu me entristeça.”
“É um ponto de vista bastante racional. Se acredita na vida após a morte, então vais a Igreja todo domingo, naturalmente.”

“Sempre que posso. Nenhum padre é, na verdade, mais do que um mero padre. Não duvido de que sejam emissários de Deus, porém...”

“Acha que podem muito bem pecar, como todos.”

“É. Ir à missa de domingo é uma formalidade e sua presença lá não deve ser sua única participação religiosa, como muitos, de fato, fazem. Se tenho um enterro, não vou. Não é a minha presença em um domingo que determinará meu destino.”

“Entendo.”

“Nunca vai nos domingos, não?”

“É. Não que não acredite em Deus completamente, só julgo desnecessário, como você mesmo disse, ir a Igreja todo domingo.”

“É agnóstica?”

“Acho que sim.”

“É bastante natural. Você vive sozinha?

“Sou órfã.”

“Ah! Desculpe, não fazia a menor idéia-”

“Relaxe, Isaac! Minha mãe morreu no parto, nunca a conheci. Sempre foi só uma memória ínfima, um fantasma solitário, sabe?”

“É natural; triste, porém natural.Se me permite, o que aconteceu com seu pai?”

“Sou bastarda. Foi um mero caso, uma idiotice momentânea, com conseqüências desastrosas, mas, quer eu queira, quer não, é graças a esse acesso de luxúria que cá estou.”

“A vida é assim; há males que vem para o bem.”

“Há bens que vem para o mal. Não sinto ressentimento, só pena. Pelo que me contaram, sei que minha mãe não era uma senhora promíscua; por razão que desconheço, deixou-se seduzir e deu em mim. Não se casou com ele, sequer namorou-o.”

“Todos somos fracos, em determinado momento. Ela foi fraca e, por desejo carnal, pagou com sua vida; é isto que lhe causa pena?”

“Não só isso; mesmo que ela não tivesse morrido, eu ainda teria nascido. É, na verdade, o problema maior; para toda ação há uma reação e sua gravidez e, indiretamente, sua morte foi o preço que teve de pagar. Se tivesse sobrevivido, ambas sofreríamos, provavelmente; e ambas pagaríamos mais caro; tudo seria penhorado e, claro, trabalharíamos em uma fábrica cada mísera hora de nossas vidas. Morrer ao lado de seu bebê recém-nascido é infinitamente menos torturante do que ter de viver como uma escrava e ter de ver, todos os instantes de sua vida, sua própria filha pagando pelo seu pecado. Se eu soubesse por que vivíamos desta forma...”

“Iria decidir por abandonar-se, por assim dizer.”

“Iria odiar minha mãe, no mínimo; sentiria tanto ódio que, muito provavelmente, eu fugiria; de casa e, talvez, da vida.”

“Então, abominas teu nascimento?”

“É, acho que pode dizer que sim, na falta de termo melhor.”

“Mas não seria isso tomar, de forma muito mais branda, o castigo pelo pecado de sua mãe? Se acha que seu nascimento seria um peso para ambas, está, automaticamente, tomando este peso que, supostamente, não existe com a morte de sua mãe!”

“É verdade! Isso quer dizer que, na realidade, não gosto tanto de mim.”

“Mas por quê?”

“Me sinto, como posso dizê-lo... um fardo; sim, um fardo, um fardo que ninguém suportou carregar sendo deixada para trás; ela morreu e ele sumiu assim que soube sobre a gravidez e fez a óbvia conexão. E, depois de ser criada, me largaram por aí.”

“Não se sinta assim, Hannah! Sua mãe não cometeu o suicídio!”

“Talvez isso tivesse sido o certo, pois ela pretendia que vivêssemos ambas naquela miséria por culpa dela.”

“Mas ela morreu! E, por causa disto, você pode ser feliz e livre.”

“Ela teve o que, por mais triste e amargo que possa parecer, o que mereceu. Ela teve de pagar involuntariamente com sua própria vida para que outros, não relacionados a sua vergonhosa falta, não tivessem de sofrer. O âmago de todo este dilema é sua total falta de vontade na hora de pagar o preço devido; queria arrastar-me para o buraco com ela, Isaac. Não sou livre, muito pelo contrário; eu sou uma escrava da minha própria escravidão. Eu não tenho família alguma; não tenho amigos nem ninguém. Sou raramente feliz, Isaac e somente nestes árduos dias invernais posso eu fazer o que quero. E é culpa dela.”

“Não, não; você tem a mim. E você pode- digo, nós podemos ser felizes. E dar o troco.”

“E algum de nós sabe realmente o que é ser feliz?”

“Se soubéssemos, perderia a graça.”

“Eu te curo e você tenta nos fazer felizes, é nisso que basearemos nossas vidas?”

“Não, porque se somos amigos, nossas próprias presenças acabam por nos satisfazer; o que buscaremos é mais complexo que mera felicidade momentânea.”

“E o que é?”

“É aí onde mora a nossa raison d’etre.”

“Então viveremos somente em busca disso?”

“Talvez; viveremos como quisermos, salvando quem precisa.”

“E isso trará a felicidade?”

“Somos primitivamente felizes um com o outro. Será nosso alicerce.”

“Eu não sabia que era tão pensativo assim.”

“Sem amigos, a única coisa que fiz foi pensar.”

“E foi feliz.”

“Fui satisfeito.”

“Se isso não é felicidade, o que seria, Isaac?”

“Repito-me se for preciso: se soubéssemos, perderia a graça.”

“Isaac?”

“O que foi?”

“Não sei se percebeu, mas em momento algum fomos para a tua casa; estamos rodando por aí há horas.”

“É.” Disse, finalmente demovido de seu acesso de inspiração que moveu-lhe a falar com Hannah com articulação que não lhe era, de todo, característica, notando finalmente aonde estava. Sua mão lentamente tocou uma lápide desgastada, que repousava debaixo de uma árvore morta; seus dedos percorreram involuntariamente toda a sua extensão, como se fosse um cego que tentasse identificar o que era tal objeto que se erguia a sua frente.

“Venha, Isaac, não fique aí parado.” Chamou Hannah, puxando-lhe pela mão, para tirá-lo do instável transe em que entrara assim que percebeu que estava passeando pelo cemitério ao invés de ir para casa como planejara.

“Desde quando estamos nessa parte do cemitério, Hannah?”

“Não sei, por quê?”

“Não sei, esse lugar me é familiar.”

“Você é um coveiro, Isaac; o cemitério todo lhe é familiar.”

“Pois é.”

Entraram finalmente no casebre de Isaac e tomaram o resto da sopa que havia feito Hannah, que, com o frio, tornara-se insossa e desgostosa. Uma estranha perturbação não largava mão de Isaac e não tinha ele mais fôlego para conversar sobre qualquer coisa que não lhe fosse essencial.

“Hannah?” perguntou,entre uma colherada e outra, rompendo o natural silêncio que se instaurara durante a terrível refeição.

“Sim?” respondeu, interrompendo sua aparentemente estúpida forma de meditação, onde ficava rodando incessantemente o conteúdo de seu prato com a colher antes de tomar a próxima colherada; já havia se acostumado ao silêncio sepulcral e a súbita mudez contrastante que Isaac havia adotado sem qualquer razão prévia.

“Por que me adoras?”

“Sentimentos são irracionais.”

“Não, as pessoas o são. Sentimentos tem razão para existirem; as pessoas os interpretam mal e os levam a sério demais.”
“Eu adoro-te, Isaac, porque tu és, por mais que despropositadamente não o demonstre, uma boa pessoa; és cândido e tua alma é pura e bela; és encantador e doce, um doce, doce rapaz, que, quando está na situação adequada, sabe demonstrar seu carinho infindável.” Explicou-lhe, naturalmente calma, estendendo-lhe a mão.

“Obrigado, Hannah.” Respondeu Isaac, embaraçado, sem a mínima ideia sobre o que fazer em tão estranha situação, simplesmente segurando-lhe a mão e acariciando-a despropositadamente.

“Peço-lhe com carinho: vamos dormir; não me aguento em pé.” Pediu-lhe após um momento de estranhamento entre ambos, onde nem Hannah sabia o que dizer, levantando-se, suas pálpebras pesando-lhe.

“Tudo bem.” Respondeu, igualmente exausto, também se levantando.

Largaram-se desajeitadamente na cama de Isaac, cansados e com frio, como dois mendigos.

“Não tem como nos aquecermos, Isaac?” perguntou Hannah, jogando-lhe a deixa certeira.

“E era eu o carente, Hannah?” perguntou Isaac, zombeteiro captando o pedido de Hannah, abraçando-lhe fortemente e, como que para satisfazer-lhe do melhor jeito que pudesse, cobrindo-os com sua retalhada colcha, lentamente reiterando aquilo que moveu-lhe a discursar com tanta fluência poucas horas antes.

“Só estou com frio, Isaac, não vá pensar besteira!”

“Como quiser, então. Boa noite, Hannah.”

“Boa noite, Isaac.”

Após longo silêncio perturbador, que parecia absorver todas as palavras, tanto as ditas quanto as que ainda ficaram por dizer, inexplicavelmente percebeu que Hannah não havia ainda conseguido dormir, cedeu Isaac a pressão da concisa porém carinhosa declaração que queria dar à Hannah:

“Eu te adoro.” Disse, beijando-lhe a bochecha candidamente.

“Eu te adoro mais.” Respondeu ,sorridente, deliciando-se com as súbitas mudanças de humor de Isaac, que o tornavam momentaneamente indecifrável, aconchegando-se em seus receptivos braços, caindo num sono profundo, assim como Isaac.

*~~~~~~*

“O que houve, Hannah?” perguntou novamente Isaac, consternadíssimo com o desespero aparentemente inexplicável que Hannah apresentava, sem saber o que fazer naquela inversão de papéis, onde deveria ele ter a valiosa resposta para tudo e a incrível habilidade para consolá-la e acalmá-la.

“Eu...tive um pesadelo.” Admitiu ela, sua cabeça de encontro ao pescoço de Isaac, suas lágrimas caindo na pele dele.

“Eu estou aqui, não te preocupes. Amicus certus in re incerta cernitur, Hannah.”

“Amigo certo se conhece na hora incerta? Que bonitinho, Isaac.” Elogiou Hannah, beijando-lhe a bochecha, escondendo o tremor que lhe tomou quando ouviu palavras em latim.

“Está melhor, afinal?”

“Eu preciso ir a um lugar antes.” Pediu Hannah misteriosamente, a imagem da pedra fria transpassando sua mente por um instante.

“Qual?”

“A igreja.”


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Notas finais do capítulo

Gostaria de anunciar que já comecei o projeto de remodelar esta história para melhor!



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