As Crônicas Dos Malditos escrita por Ju The Ligthening Chaos


Capítulo 5
O Herói - parte III


Notas iniciais do capítulo

Aqui está a terceira parte da aventura de Duruka, DIVIRTAM-SE o/



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O caminho até o Vale da Sabedoria não era longo, e mesmo assim Duruka foi capaz de alcançar seus companheiros antes de percorrerem metade do percurso. Ele posicionou-se logo atrás do velho Traigar e de Hirbag que corriam ombro a ombro pelas estreitas ruas de terra da cidade fortificada, acompanhando sem nenhuma dificuldade o avanço dos dois soldados à sua frente, apesar da carga que ele transportava sob seu ombro direito como um animal abatido em uma caçada.

– Olha essa mão boba aí! – mas a carga em questão era muito mais barulhenta do que um animal morto deveria ser.

Traigar olhou rapidamente por cima de seus ombros ao ouvir a voz da humana que se encontrava sob a custódia de Duruka. “Seu idiota! Por que trouxe a garota com você!?”, o olhar do velho caolho parecia dizer-lhe. Mas Traigar simplesmente voltou a olhar para frente concentrado apenas no objetivo adiante.

Enquanto corriam em direção ao monumento fantasmagórico que se erguia sobre a cidade, Duruka pôde ver alguns soldados, antes ocupados em sua patrulha noturna, caídos pelo chão. Ele permitiu-se parar brevemente para checar um ou dois guerreiros abatidos. Não estavam mortos, apenas dormindo exatamente como Gramak e Hirbag haviam relatado. E ao ver tal cenário com seus próprios olhos, o jovem orc se viu forçado a dar algum crédito as palavras de Anna.

Não adiantaria de nada perder mais tempo checando outros soldados adormecidos. Duruka prosseguiu com sua marcha enquanto a pequena humana que carregava parecia ter se cansado de reclamar e dado início a um novo passatempo. Fazer perguntas idiotas.

– Oh, o que é aquilo? – Anna repetiu várias vezes, e em cada uma delas apontando para algum objeto ou estrutura por onde passavam.

– Aquilo é uma forja – Duruka respondeu na primeira vez.

– Aquilo é uma estalagem – respondeu na segunda vez.

– Aquilo é um estábulo – e na terceira vez.

– Vocês montam em lobos!? – Anna indagou após ver de relance os enormes animais de pelagem negra que dormiam tranquilamente no estábulo.

– É claro que montamos em lobos, nós somos orcs! Todos nesse mundo, especialmente os humanos, sabem disso.

– Eu já disse que não nasci nesse mundo! – a garota rebateu.

– Ah, é mesmo. Eu tinha esquecido disso – Duruka disse ironicamente – Então, em que mundo você nasceu afinal?

A garota hesitou, como se Duruka tivesse feito uma pergunta realmente difícil.

– Eu não sei – ela admitiu com uma inesperada melancolia.

E por um momento ela ficou surpreendentemente calada.

– Então, você sabe o que aquele desgraçado está procurando? – a garota tentou mudar de assunto. Mas dessa vez foi Duruka que hesitou em responder.

– O que foi? Isso é algum segredo que você não quer que seus inimigos humanos descubram? – Anna provocou-lhe.

– Você descobrirá em breve – foi a única resposta que Duruka deu.

– Ah, deixa de ser chato! – ela protestou – Para de ficar fazendo mistério e me conta logo, por favor.

O falatório irritante de sua prisioneira fez a breve corrida parecer uma marcha de várias horas. Mas então a corrida acabou. Eles haviam chegado ao seu destino.

Diante de Duruka estava o distrito de Orgrimmar conhecido como Vale da Sabedoria. A área mais antiga construída na cidade fortificada costuma ser frequentada por toda espécie de filósofos e peregrinos que buscavam esclarecimento ou qualquer tipo de experiência espiritual. Duruka nunca demonstrou muito interesse por aquela parte de Orgrimmar pois meditações e infindáveis discussões filosóficas causavam a ele o mesmo efeito que o feitiço do sono. Como os xamãs e druidas que habitavam o distrito tentavam levar uma vida sem qualquer apego material, o Vale da Sabedoria era uma área humilde sem grandes construções e de habitações simples. E em meio a casas construídas sem qualquer esmero e tendas espalhadas as margens da única estrada de terra que cortava o distrito, apenas duas estruturas chamavam a atenção de todos que por ali passavam. Uma delas era o Castelo de Grommash, a imponente fortaleza onde Thrall, o chefe-guerreiro mantem constante vigilância sobre o seu povo. Mas, infelizmente, parecia que nem mesmo o líder de Orgrimmar havia escapado da praga do sono que se abateu sobre a capital.

E a segunda estrutura, que para o horror de Duruka provou ser a causa de toda essa loucura, tratava-se de uma imensa e sinistra árvore morta e retorcida onde estava amarrado o pedaço de uma armadura grande demais para que qualquer criatura mortal pudesse usar, e coroando o tronco seco e sem vida estava um gigantesco e deformado crânio no qual se projetavam um medonho par de chifres que se curvavam com as presas de um mamute. E como se o monumento já não fosse apavorante o suficiente, ele estava naquele momento rodeado por um verdadeiro turbilhão luminoso feito de fogo verde, ou pelo menos algo que se parecia com fogo. A imensa fogueira sobrenatural erguia-se em direção ao firmamento formando o nada discreto sinal que os três guerreiros seguiram até o responsável pelo ataque a cidade.

– Ali está ele – a garota encima do ombro de Duruka apontou desajeitadamente para a forma escura que se destacava diante do sinistro fenômeno luminoso. – Aquele é o meu alvo. É ele que eu tenho que matar.

O jovem orc contemplou aturdido o incrível cenário diante de seus olhos até que se lembrou de que não havia tempo para ficar aturdido.

– Pois espere a sua vez – Duruka respondeu enquanto soltava a menina no chão sem muito cuidado. Ele então levou sua mão direita ao cabo do machado atado em suas costas, sacando-o quase no mesmo instante em que o velho Traigar urrou:

– Armem-se!

Duruka brandiu seu machado, Hirbag ergueu seu monstruoso martelo de guerra e Traigar desembainhou duas espadas curtas cujas lâminas estavam marcadas pelo choque contra inúmeras espadas inimigas no passado. Os três orcs avançaram furiosamente contra o vulto diante das chamas infernais diante deles.

– Esperem! – o tom de urgência na voz de Anna fez Duruka e Traigar se deterem. Mas Hirbag continuou sua investida, até que seu corpo parou bruscamente e então caiu desajeitado no chão como se tivesse colidido contra uma muralha invisível.

– Mas que ardil é esse!? – o orc descuidado exigiu enquanto se levantava o mais rápido que conseguia.

– Uma barreira – o velho respondeu esforçando-se para se mostrar calmo – Estou correto?

Demorou um pouco para Anna perceber que o orc caolho fez a pergunta para ela.

– Está certo, é uma magia que protege a área ao redor de quem a conjura – a garota confirmou a hipótese de Traigar.

– Sem tempo para explicações – Duruka exclamou, ele só tinha uma questão em mente – Como podemos passar por essa barreira?

– Não podemos – ela respondeu com seu irritante tom despreocupado – A menos que um de vocês sabia como anular uma barreira mágica.

Duruka não sabia. E aparentemente nenhum dos outros guerreiros tinha qualquer conhecimento sobre as artes místicas o que ficou claro quando o velho Traigar praguejou com uma fúria reprimida:

– Magia. Eu odeio magia.

– Mas não precisam entrar em pânico. Esse feitiço de proteção se desfaz sozinho uns cinco minutos depois de ser invocado – Anna revelou.

– E como você....

– Esse covarde já usou esse feitiço para escapar de mim enquanto eu o caçava naquela tal de Terrálem – ela respondeu à pergunta de Duruka antes que ele a terminasse.

– Então, até que esse feitiço se desfaça, nós não podemos fazer nada? – Hirbag perguntou rangendo seus enormes dentes.

– Podem sim – Anna respondeu amigavelmente – Vocês podem me ajudar a entender melhor o que está acontecendo aqui.

Antes que qualquer um deles pudesse protestar a garota apontou para o lúgubre monumento envolto pelo fantasmagórico redemoinho de luz, a árvore morta coroada pelo crânio monstruoso, que era obviamente o artefato que seu alvo estava tão determinado em obter.

– O que, diabos, é aquilo? E por que vocês ficaram tão assustados quando perceberam que era isso que o meu alvo estava querendo? – ela perguntou firmemente.

Duruka nem sequer considerou responder as perguntas da invasora, ele decidiu ignorá-la para dar atenção ao problema mais urgente. Ele se aproximou do ponto em que Hirbag havia se chocado com a parede invisível. Tomando cuidado para não cometer a mesma gafe de seu companheiro, o jovem orc aproximou seu rosto da barreira para enxergar melhor o que ela estava protegendo.

Era exatamente como Anna descreveu. A criatura diante do fogaréu sobrenatural vestia uma túnica esfarrapada tão curta que não cobria seus braços e pernas esqueléticos, escuros e retorcidos que mais lembravam os membros de um inseto. A cabeça da coisa estava coberta por um capuz e, como o ser não se deu ao trabalho de virar-se para verificar seus agressores, Duruka não consegui ver a face do inimigo.

– Aquele crânio preso a árvore – a voz grave do velho Traigar soou pelo distrito adormecido – Pertencia a uma criatura conhecida como Mannoroth.

– Mannoroth! Ah, não! Não o Mannoroth! Tudo, menos o Mannoroth! – Anna disse com espanto – Espera aí, quem é Mannoroth?

Ao ouvir a dúvida da garota, Duruka ficou tão impressionado com a ignorância dela que virou-se para encará-la com indignação. Mas assim que ele desviou seu olhar o vórtice de chamas místicas explodiu em um clarão tão intenso quanto o sol do meio-dia nas terras de Durotar. Duruka viu o mundo ao seu redor ser engolido pelo clarão fantasmagórico. Cego, atordoado e diante de uma batalha iminente, o jovem orc achava que sua situação não poderia piorar. Mas a súbita perda de visão foi seguida por uma perturbadora perda de gravidade.

Sem qualquer aviso, um impacto poderoso como a queda de um meteoro arrancou o corpo de Duruka do chão e o arremessou como se não fosse nada. Ele levantou-se rapidamente, antes mesmo de recuperar completamente a sua visão, tentando se encontrar num mundo que havia sido reduzido a um monte de borrões claros diante de seus olhos.

– Mas o que acontec... – a débil voz de Hirbag fez-se ouvir em meio ao cenário medonho. Interrompendo-se com soluço de pavor.

A medida que a visão de Duruka retornava, e o enorme vulto a sua frente ganhava mais detalhes, o terror no jovem orc ficava cada vez mais intenso. Diante dele estava o horror sobre o qual seu pai lhe contava durante sua infância.

Diante dele estava o senhor do abismo Mannoroth, o destruidor.

Mesmo depois de tudo que Duruka havia visto e ouvido naquela estranha madrugada, para ele era quase impossível acreditar que estava encarando o demônio que havia assolado seu povo décadas atrás em carne e osso.

Bem, não exatamente em carne e osso. Olhando mais atentamente, o jovem orc percebeu que o suposto Mannoroth a sua frente parecia-se mais com uma paródia bizarra do dito senhor do abismo. A criatura ainda tinha a mesma silhueta dos pavorosos senhores abissais, algo parecido com um centauro, a parte superior de seu corpo era vagamente humanoide, mas da cintura para baixo possuía uma forma bestial, robusta e com quatro patas atarracadas. Mas seu corpo era feito de uma substancia rígida entrelaçada em várias camadas e havia pequenas chamas verdes percorrendo toda a extensão de seu corpo fazendo-o parecer uma imensa fogueira moribunda. E por cima de toda essa forma confusa estava o colossal crânio chifrudo que parecia ser a única parte daquele corpo que realmente fazia parte da abominação original.

– Mas... Como... Como ela fez...? – a voz aturdida do velho Traigar chegou aos ouvidos de Duruka, que percebeu o veterano caído a poucos passos da figura demoníaca olhando fixamente para as patas dianteiras do suposto Mannoroth.

Então ele notou uma pequena silhueta logo abaixo de uma das monstruosas patas do demônio. Duruka não se permitiu sentir muita simpatia pelo filhote de humano irritante que agora jazia esmagado aos pés da monstruosidade diante de seus olhos. Ao lembrar-se do estrondo que ocorrera há pouco tempo ele achou que a garota havia simplesmente tido o azar de estar no lugar errado no momento em que o senhor do abismo aterrissou, ou se materializou, ou sela lá qual foi o método que a criatura usou para surgir do nada.

Mas sua teoria do azar foi desmentida quando Mannoroth levantou sua pata gigantesca que estava em cima da invasora, permitindo que Duruka pudesse ver de relance o corpo estirado de bruços logo abaixo. E então o gigante pisou nela novamente com a força de um terremoto, afundando seu pé grotesco contra o solo que rachou-se com a incrível pressão. A criatura então levantou seu pé novamente e, com a mesma força assombrosa demonstrada anteriormente, levou-o ao chão de novo, e de novo, e de novo.

Duruka permaneceu paralisado enquanto a criatura pisoteava mecanicamente sua vítima. Então uma faísca de indignação reluziu no fundo de sua mente obscurecida pelo pavor. Como qualquer orc, Duruka aprendeu desde cedo a importância da honra, e ficar de frente com um inimigo que não só atacava seu adversário mais fraco primeiro mas também abusava covardemente de seu corpo abatido causou-lhe um desprezo que aumentava a cada pisada que o demônio desferia em sua vítima. Por fim o desprezo tornou-se fúria, e a fúria cresceu a ponto de superar seu medo infantil. Duruka tentou firmar suas mãos em seu machado e só então percebeu que a arma não estava em suas mãos mas jogada no chão a vários passos a sua esquerda. A frustração por não ter notado que estava desarmado aumentou ainda mais sua raiva. Ele olhou ao redor para encontrar qualquer coisa ao seu alcance que pudesse ser usada como arma, e ele encontrou. Agarrando uma pedra maior que sua cabeça que estava próxima aos seus pés, Duruka avançou com um urro e após percorrer boa parte da distância até seu inimigo, arremessou para o alto com toda sua força a pedra em suas mãos que se chocou violentamente contra o crânio de Mannoroth.

– Recomponham-se! – Duruka exclamou para seus companheiros que ainda olhavam em choque para o senhor do abismo que se erguia entre eles – O que estão esperando? Ataquem!

Mas o surto de coragem de Duruka passou no instante em que a abominação que ele acabara de atacar parou de pisotear o chão. O crânio monstruoso moveu-se lentamente para encará-lo como se tivesse acabado de notar a existência do jovem orc. E quando as grandes órbitas vazias miraram Duruka, ele sentiu um calafrio subir sua espinha até congelar seu crânio.

Então Mannoroth começou a mover-se em sua direção.

Mas antes que cérebro de Duruka pudesse descongelar-se, a massa retorcida e incandescente que se aproximava dele inclinou subitamente pra frente como se tivesse tropeçado em algo.

– Seu pirralho idiota! – uma voz familiar invadiu seus ouvidos – De que adianta bancar o valente se sua coragem dura tão pouco!?

O jovem orc procurou o dono da voz enfurecida e o encontrou erguido ao lado do gigantesco corpo do senhor do abismo, com suas espadas cravadas em uma das patas dianteiras da criatura e com cada músculo de seu corpo trabalhando para evitar o avanço do demônio.

Percebendo que o velho Traigar lhe ganhara um tempo precioso, Duruka recuou percorrendo o caminho até sua arma abandonada. Ele alcançou seu machado e voltou sua atenção para onde pretendia cravá-lo, e deparou-se com a visão de Mannoroth erguendo sua mão decrépita para agarrar o orc que o atrapalhava. Mas Traigar não se intimidou, assim que as monstruosas garras se aproximaram o suficiente, o orc caolho puxou suas espadas da estranha carne de Mannoroth e com um único movimento cortou fora dois de seus dedos esqueléticos. O som feito pelo corte não parecia o de carne sendo cortada, parecia mais o som de madeira estalando em uma fogueira.

O senhor do abismo não pareceu notar as feridas em sua mão pois tentou fechá-la mesmo assim em volta de Traigar, o que teria conseguido se Duruka não tivesse afastado a mão mutilada com um golpe de seu machado. Depois de dar o golpe, Duruka percebeu que havia uma boa razão para o novo corpo de Mannoroth parecer-se tanto com uma montanha de madeira queimada.

Era uma montanha de madeira queimada.

O suposto senhor do abismo lembrava mais os restos de um ent que sofrera uma combustão espontânea. Essas foram as conclusões que passavam pela mente de Duruka enquanto o velho Traigar o agarrava pela ombreira de sua armadura para puxá-lo para longe da palma estendida que o demônio levou ao chão para esmagá-los.

Os dois orcs rolaram para longe do impacto que levantou uma nuvem de poeira entre eles e o inimigo.

– Hirbag! – Duruka clamou – Por quanto tempo você vai aí parado? – questionou enquanto procurava o guarda careca.

Mas Hirbag não estava mais lá. Duruka olhou rapidamente por todas as direções que podia, mas não encontrou ninguém mais. Onde aquele vigia idiota havia se metido? Haveria fugido? Haveria morrido? Duruka não tinha tempo para pensar naquilo. O crânio de Mannoroth projetou-se para fora da cortina de poeira mirando com olhos inexistentes os dois orcs a sua frente. Duruka e Traigar ergueram suas armas novamente mas, como um gesto de zombaria, a criatura estendeu a mão que o velho orc havia mutilado para mostrar que os dedos que lhe haviam sido tirados estavam agora intactos como se jamais tivessem sido removidos.

Duruka olhou estupidamente para o seu machado. A paródia de Mannoroth não era feita de carne de osso, não sangrava, não parecia sentir dor, e os danos que lhe eram feitos pareciam desaparecer como se jamais tivessem existido. Como se mata um inimigo assim?

– Você tem alguma ideia? – Duruka questionou o veterano sem tirar os olhos do suposto senhor do abismo.

– Por sua causa – Traigar rosnou – Eu perdi tudo por sua causa.

– Como é? – Duruka viu de relance o olhar de puro ódio que o guerreiro a seu lado enviava para a coisa que se erguia sombriamente diante deles – Isso não é Mannoroth, não pode ser ele. Mannoroth está morto. Sabe disso não é, velhote? – ele disse temendo que a fúria motivasse Traigar a fazer algo estúpido.

Um sorriso lúgubre brotou nos lábios do orc caolho.

– É, você tem razão. Essa coisa não pode ser Mannoroth – disse com uma fúria mal disfarçada de zombaria – Mannoroth está morto, todos sabem disso. Então eu pergunto, se ele está morto, como podemos matá-lo?

Duruka procurava a resposta para a mesma pergunta. O monstro arrastou seu corpo carbonizado cada vez mais próximo dos dois. Sem nenhum plano, sem nenhuma alternativa, Duruka e Traigar reergueram suas armas. Lutar era a única opção. Ganhar tempo para os reforços chegarem era a única opção.

A paródia de Mannoroth cessou sua marcha há poucos passos de distância dos dois orcs dando a Duruka uma boa visão de sua forma estranha. A madeira carbonizada da qual era feito o fazia parecer uma sombra rajada de verde pelas chamas sobrenaturais enfraquecidas que corriam por todo seu corpo. Cada passo, cada movimento que fazia criava estalos como os de uma fogueira ardendo. E lá estava, cobrindo seu peito largo e negro, a enorme placa de aço que era a única peça da armadura de Mannoroth que haviam preservado. Estava suja, enferrujada, mal tratada pelo tempo e pelos ventos do deserto, mas as formas horrendas que haviam sido gravadas em alto relevo em sua superfície ainda estavam lá, encarando Duruka e fazendo-o desejar que tivesse sido ele a fazer a corrida até Monte Navalha.

E coroando todo aquele espetáculo sinistro, o crânio do demônio caído os fitava tão branco quanto a lua. Sua superfície parecia lisa com mármore, mas Duruka pôde notar as rachaduras e remendos próprios a um osso quando o monstro se inclinou para mais perto dele a de Traigar. Mannoroth continuou se inclinando, se aproximando, até seu rosto descarnado estivesse a pouco mais de um metro de Duruka. As duas enormes presas estavam tão perto que pareciam braços prestes a dar-lhe um abraço mortal. E no meio daqueles braços, Duruka teve pela primeira vez em sua vida uma visão detalhada daquele crânio maldito, seus imensos e tortos dentes, sua fenda que um dia foi o nariz de Mannoroth exalando pequenas chamas em intervalos como uma respiração, os dois abismos negros que tinha no lugar dos olhos e pareciam querer sugar tudo em sua volta, o punhal cravado ao lado da sua órbita direita...

Punhal? Duruka pensou, aquilo não estava ali até um instante atrás.

Então a imensa sombra recuou abruptamente, faíscas irromperam de todo seu corpo enquanto Mannoroth debatia-se, sacudindo sua cabeça com violência, com pálidas chamas azuis explodindo para fora de suas órbitas vazias.

– Afastem-se! – uma voz rugiu atrás deles. Duruka virou-se para o orc careca com uma orelha mutilada e olhar estúpido.

– Hirbag! – ele gritou – Onde você se meteu?

O recém chegado demorou um pouco para responder.

– Eu... Perdi meu martelo... Mas encontrei ele... – disse erguendo o imenso martelo de batalha. Duruka sentiu vontade de esmagar a cabeça do companheiro com sua própria arma, mas lembrou-se de que ele mesmo havia soltado seu machado quando foi arremessado do ar, cego e desorientado.

Duruka e Traigar aproveitaram o estado de agonia do demônio para reagruparem com o terceiro orc.

– Como você sabia? – Traigar gritou com Hirbag, agarrando-o pelo manto vermelho dos soldados de Ogrimmar. O jovem Duruka não precisou pensar muito para entender sobre o que o veterano estava falando. Voltou a olhar para Mannoroth que se debatia furiosamente por causa de uma simples faca espetada em seu crânio.

A boca de Hirbag abriu e fechou com a de um peixe fora d’água, e com uma expressão tão idiota quanto.

– Ela... A humana... Ela disse... Um artefato para usar magia... Uma fonte de poder... Por isso eu... eu... a faca...

Duruka não havia entendido nada, mas a expressão do orc caolho mostrava que ele parecia ter entendido.

– O feiticeiro veio até aqui procurando uma fonte de poder, o crânio é a fonte... – Traigar ergueu suas espadas – O crânio! Destruam o crânio!

Duruka não sabia o que era mais estranho, o velho Traigar ter entendido tão rápido a explicação balbuciada de Hirbag, ou o fato do simplório do Hirbag ter chegado a uma conclusão tão brilhante sozinho.

Mas a montanha de madeira queimada mostrou-se bem mais inteligente do que uma simples montanha de madeira queimada, pois assim que o velho Traigar rugiu sua estratégia Mannoroth livrou-se de sua agonia e avançou em fúria contra eles.

Logo a avalanche de fogo e fumaça estava sobre eles.

– As pernas! – o grito de Traigar se misturou com o rugido das labaredas que explodiam das órbitas vazias do crânio do senhor do abismo.

Depois disso não houve mais ordens, não houve mais instruções. Pois em uma batalha real, onde tudo pode acontecer em um piscar de olhos, um guerreiro deve manter os olhos abertos e entender por si só o que deve fazer e quando deve fazer. E mais importante, deve confiar que seus companheiros saibam o mesmo.

E quando o velho Traigar disparou em direção ao gigante, Duruka soube imediatamente que devia fazer algo quanto ao imenso punho em chamas que arremetia em direção ao velho. Seu machado cravou-se no pulso de Mannoroth ao mesmo tempo em que o martelo de Hirbag esmagou as costas da mão da criatura, impedindo-o por muito pouco de atingir um soco gigantesco no orc caolho. Traigar nem demonstrou notar que quase havia sido esmagado, avançou por entre as patas dianteiras do monstro e continuou em frente até suas patas traseiras.

Duruka tentou puxar seu machado de volta. Tentou. E enquanto lutava com a madeira enegrecida para libertar sua arma, a outra mão do senhor do abismo moveu-se para agarrá-lo e a única coisa entre ele e a morte era Hirbag com seu martelo erguido contra as garras incandescentes. Houve um longo som de estalo e repente o corpo de Mannoroth pareceu tombar para trás fazendo fagulhas caírem como neve sobre eles. O velho Traigar surgiu de trás do gigante, com suas espadas em mão.

– As pernas! Acerte as pernas! As pernas, idiotas! – urrou enquanto corria de volta aos companheiros.

Duruka cerrou seus dentes e pôs toda a força que tinha nos braços, finalmente arrancando o machado do pulso do monstro. Mas Hirbag tomou a dianteira, arrematando seu imenso martelo de guerra contra a perna direita de Mannoroth. A madeira explodiu com o impacto fazendo o gigante desabar para frente como uma torre em chamas. Mannoroth só não estatelou seu crânio contra o chão pois conseguiu apoiar-se levando as mãos ao chão.

Uma das mãos foi ao chão bem ao lado de Duruka, e mais uma vez ele sabia o que fazer.

Mesmo com toda a sua força, o machado não foi capaz de cortar o braço do senhor do abismo, parando após atravessar um pouco além da metade da espessura da madeira em chamas. Mas mesmo assim o dano foi o bastante para fazer o membro quebrar-se sobre o peso do corpo de Mannoroth. O gigante tombou mais para frente, dessa vez tentando evitar sua queda apoiando-se sobre o cotovelo do braço arruinado.

Mas lá estava ele, havia descido o suficiente para ficar ao alcance de suas mãos, o crânio de Mannoroth inclinava-se um pouco acima de Duruka. Chamas exalavam de suas órbitas.

– Rápido! Acabem com isso rápido, antes que ele se recupere! – Traigar agarrou a enorme presa curvada do lado direito do crânio. Duruka fez o mesmo com a presa esquerda, e juntando esforços com o velho, puxaram a cabeça da criatura até quase tocar o chão.

Cada músculo do corpo de Duruka estremeceu quando Mannoroth começou a tentar se debater para libertar-se. Estava cerrando os dentes com tanta força que achou que iriam se estilhaçar, enquanto Hirbag se posicionava frente a frente com a face do senhor do abismo com os dedos apertando-se no cabo de seu martelo.

Duruka firmou seus pés no chão da melhor forma que podia, forçando o monstro a manter-se imóvel, ou o mais imóvel possível. Do outro lado Traigar fazia o mesmo, as veias no pescoço do velho estavam tão grossas quanto seus dedos, parecendo prestes a explodirem.

Só mais um golpe e tudo estaria acabado. Hirbag ergueu o martelo acima de sua cabeça, preparando-se para pôr um fim aquele terror.

Só mais um golpe, Duruka pensou quando reparou Traigar agarrando o cabo do punhal que Hirbag havia arremessado no crânio de Mannoroth, puxou-o e o lançou no ar com um único movimento. Nem teve tempo de pensar sobre aquilo quando uma intensa luz verde explodiu ao seu lado. Houve um grito de dor e então viu Hirbag caindo de joelhos com fumaça saindo da lateral de sua barriga, o cheiro de carne cozinhando encheu as narinas de Duruka.

Mannoroth sacudiu a cabeça novamente, e Duruka sentiu seus dedos escorregarem pelo osso liso quando o gigante se libertou. O monstro tentou erguer-se com Traigar ainda agarrando a ele, Duruka tentou segurar o gigante novamente mas a longa presa avançou sobre ele como uma lança forçando-o a recuar. Conseguiu evitar ser empalado, mas então o braço de Mannoroth que ele mesmo havia quebrado golpeou-o de lado. Sentiu como se tivesse sido atingido por um aríete, rolando várias vezes pela terra arenosa após ser arremessado uma boa distância no ar.

Caído de bruços, com areia na boca e dores por todo corpo, Duruka ergueu a cabeça no momento certo para ver Traigar soltando-se da presa de Mannoroth antes que a criatura reerguesse seu corpo em frente ao velho e seu companheiro ferido. Chamas irrompiam furiosamente de todo seu corpo quando o senhor do abismo levantou seu punho e Traigar só teve um instante para empurrar Hirbag antes e ambos fossem esmagados. O guarda ferido conseguiu escapar, mas o punho em chamas acertou o velho Traigar em cheio com um golpe que sacudiu toda Orgrimmar.

Quando Mannoroth ergueu seu punho novamente, Traigar estava grudado dele. A criatura sacudiu debilmente sua mão até o velho caolho soltar-se e cair inutilmente no chão.

Hirbag gritou pelo velhote, o que fez Mannoroth lembrar-se de que ele estava lá. O guarda tentou rastejar para longe enquanto uma mão negra descia sobre ele.

– Não! – Duruka rugiu enquanto se levantava para ajudar seus companheiros, mas só conseguiu cair de novo. Dor explodiu por sua perna esquerda enquanto dava de cara no chão. O gosto de areia e sangue misturaram-se em sua boca. Grunhindo de dor, Duruka tentou virar-se para ver o estado de sua parte. Mas os gritos por socorro de Hirbag roubaram sua atenção.

O guarda debatia-se enquanto os dedos ossudos do demônio se apertavam em volta do tronco de seu corpo, erguendo-o lentamente até ficar frente a frente com o rosto descarnado de Mannoroth. A criatura estudou Hirbag com suas órbitas vazias pelo o que pareceu uma eternidade, então moveu a mão que continha sua presa lentamente para trás. E depois arremeteu-a rapidamente pra frente lançando Hirbag em direção as estrelas do céu, seus gritos ecoaram por Orgrimmar antes de serem engolidos pela noite.

Estava com frio. Mesmo tão perto da imensa fogueira viva, Duruka tremia sem controle. Estavam ganhando, estavam mesmo, tão perto de vencer a batalha... E agora estavam todos mortos. E Duruka sozinho com o pesadelo vivo a sua frente.

Como isso aconteceu? Ele se perguntou, e a resposta surgiu em sua vista caminhando calmamente em direção a montanha de fogo e sombras que matará seus companheiros. O manto esfarrapado com capuz escondia quase todo seu corpo, exceto seus braços e pernas que eram negros e retorcidos como as patas de um inseto. Mas agora, uma adaga que Duruka reconheceu imediatamente jazia espetada no ombro esquerdo do feiticeiro, ou seja lá o que aquela coisa fosse.

Traigar o viu! Duruka soube quando lembrou da bola de fogo verde que atingiu Hirbag nas costas. O velho caolho viu o feiticeiro se preparando para atacar e tentou protegê-los.

Duruka deve ter feito algum barulho qualquer, pois quando se deu conta o vulto encapuzado virou-se para ele. Tudo o que o jovem conseguiu ver no rosto da criatura foram os olhos que brilhavam verdes como dois vagalumes parados nas trevas abaixo de seu capuz. Assim que o feiticeiro o notou, Mannoroth também se volto para ele. Os paços do gigante ecoavam como trovões enquanto se aproximava de Duruka.

O desespero o engoliu. Duruka virou-se esquecendo da agonia em sua perna, tentando rastejar para longe da morte. Foi só por acaso que vislumbrou seu machado fincado do chão há poucos metros de distância. O machado! Se estava gritando em pensamento ou em voz alta, não sabia dizer. Preciso do meu machado!

Também não sabia dizer o que faria com a arma no estado em que estava, mas o medo embaralhava seus pensamentos. Fazendo crer que estaria são e salvo se chegasse até o machado que lhe tinha sido dado pelo pai. Mesmo rastejando até sua arma, de alguma forma Duruka viu. Ele viu quando Mannoroth caminhou pelo vale até chegar perto de um dos vários totens que os Taurens erguiam nos arredores. O pilar de madeira tinha uns cinco metros de altura, mas o senhor do abismo o libertou facilmente do solo, brandindo-o como um martelo de guerra. O topo do totem fora esculpido na forma de uma águia, e seu bico parecia horrivelmente afiado.

De repente, o machado parecia estar mais longe de seu alcance, enquanto os passos do demônio soavam cada vez mais próximos. Mesmo assim Duruka não parou, não tirou os olhos do machado. O machado que estava destinado ao irmão dele. Mas o irmão estava morto. Morto.

Duruka afastou os pensamentos do irmão, do pai, de tudo. O machado era tudo o que importava, mesmo quando os passos trovejantes pararam e a sombra do gigante pairou sobre ele. Mesmo quando o totem começou a se erguer lentamente até que a águia parecia bicar a lua, Duruka continuou rastejando, rastejando e rastejando.

O totem subia, e Duruka rastejava.

O totem parou.

Os dedos de Duruka roçaram no cabo do machado.

E o totem desceu...


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