Devil Hunter E - A inspiração de ChrysopoeiaRPG escrita por Cian


Capítulo 24
Hunt 23 - Hate




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Era noite. Uma noite calma e silenciosa. Nas ruas daquela cidade pequena, apenas um homem andava calmamente. Passos tranquilos. Era uma visão um tanto quanto incomum. Carregava atrás de si uma espécie de cruz. Não se desvencilhava de seu caminho, andando, como que procurando algo, ou alguém. Olhava discretamente para as ruas e becos que se estendiam ao seu redor. Parou alguns passos à frente. Chegou aonde queria. Uma creche abandonada. Sua entrada estava arruinada, embora parecesse algo recente, trazia um ar de abandono enorme. Suspirou. O ar estava bem frio, e Bran trajava roupas de inverno, pesadas. Adentrou o local, olhando ao redor para ver se não era seguido. Ao adentrar, ouviu um leve barulho. Seu olho treinado logo se dirigiu ao local do movimento. Algo pequeno tratou de correr para mais a fundo do local. Bran então continuou a andar. Não havia sequer retirado sua arma das costas. Tinha uma segurança e uma confiança estáveis naquele momento. Ou pelo menos era o que aparentava. Poderia ser apenas o peso daquilo que carregava.

Continuou a vagar pela creche abandonada. Olhava ao redor, e em alguns momentos, coisas se moviam. Brinquedos antigos, largados lá, além de alguns móveis. Outro barulho. Lá fora, alguns corvos. O silêncio só era quebrado por essas criaturas e por um ou outro eventual rato que cruzava rapidamente por entre as pernas de Bran. Não havia nada lá. Continuou focado na pequena criatura que tentava o despistar. Seguiu-a por entre corredores. Portas fechando, coisas caindo em sua direção para atrapalhar o caminho. Tudo só o fazia ir mais rápido atrás do que quer que fosse que fugia dele. Tomou um corredor à esquerda. Uma estante caiu em sua direção, bloqueando o caminho. Bran tomou distância e correu, chutando-a para fora. Derrubou a estante e passou para o outro lado, mas não antes de ouvir um pequeno grito abafado, como que de surpresa. Vinha do final do corredor à direita. Finalmente podia vê-la claramente. Em farrapos que sequer podiam ser considerados roupas, uma pequenina garota se encolhia, demonstrando um medo e um receio enorme em relação ao visitante. Olhou-o. Olhos arregalados, de uma coloração clara. Ela tinha um cabelo dourado, mas no estado em que se encontrava, estava sujo e desarrumado. Tinha pedaços do que parecia ser comida espalhados ao seu redor. Suas mãos, trêmulas e magras, procuravam algo a se apegarem. Estava com medo. Era uma moradora de rua, talvez. Na verdade, ou sabia o quê tinha acontecido. Tratou de confirmar as informações que recebera. Falou, num tom levemente acolhedor.

– Emma? É esse seu nome?

– Quem é você? O que faz aqui? Como sabe meu nome?

– O quê faz num lugar como esse?

– Você já sabe, não é?! Você sabe o porquê de eu estar aqui, o porquê de eu estar sozinha, o porquê de todo mundo ter se afastado de mim!

– Hm, então estou certo, não é? Qual o problema? O quê fez com que isso acontecesse?

– Me deixe em paz! Já não basta todos eles me perseguirem o tempo todo! Saia daqui, antes que aconteça algo com você também!

– Hmph. Está com medo de quê, garotinha?

– Eles, os homens maus! Eles... Eles não me deixam em paz... Eles... Pediram-me pra fazer aquilo! Eu não queria fazer aquilo!

A garota se encolheu ainda mais no canto. Chorava muito, parecendo sentir-se culpada por algo. Bran então se aproximou da garota, abaixou-se. Segurou sua cabeça, e a fez olhar diretamente em seus olhos. Disse então, com uma voz séria, e pesada, como que se carregasse o mundo em suas costas naquele momento.

– Todos já fizemos algo que não queríamos. Temos que lidar com isso. Ao que parece, pelo menos não foi sua culpa totalmente. Não seja imbecil ao ponto de se culpar então, garota idiota. Se não foi sua culpa, não carregue algo que não é seu. Deixe esse peso para quem deve carregar de verdade.

Ela fez uma expressão vazia, quase que como quem acaba de ter uma revelação. Eram palavras rudes, ao mesmo tempo, ela se sentia aliviada. Lágrimas caíram de seus olhos. Incontroláveis. Ela não parecia saber o que fazer. Era algo que precisava escutar de alguém. Não queria mais ser culpada por ninguém. Finalmente, alguém não foi estúpido com ela sem sequer tentar entender o quê se passara. Ele era diferente, o quê a fez se abrir um pouco com o rapaz. Falou com uma voz trêmula. Seu olhar estava focado em algo atrás de Bran, ela mal piscava sem retirar por um momento sequer os olhos do que estava ali, fosse o quê fosse. Lágrimas ainda caíam.

– Mas... O culpado... Ninguém o vê, ninguém sabe dele! Ele está aqui, e está rindo de você, moço. De mim e de você!

– Tsc. Ele que ria. Ele não pode fazer nada comigo.

– Moço... O quê é isso nas suas costas?!

– O quê está falando?

– Essas... Pessoas... Tem muitas pessoas atrás de você, moço! Será que são como quem me persegue?

– Espere, Emma. Conte-me exatamente o quê aconteceu? Eu quero tentar entender.

– Tudo começou quando...

E ela começou a relatar tudo que acontecera. Nascera em uma família rica, importante na região, e sempre teve tudo em suas mãos. Era muito querida por todos ao seu redor, mas tinha uma característica única. Ela enxergava coisas que os outros não sabiam. Ela era capaz de enxergar coisas que muitos não conseguiam. Com o tempo, esse dom foi ficando mais forte, até o momento em que atingiu a idade atual, algo em torno de 10 anos. Um dia, quando ia para a escola, sentiu um arrepio diferente, algo que a assustou por dentro. Ninguém foi capaz de compreender o quê acontecera, inclusive ela. Logo após isso, chegando à escola, sentiu a mesma sensação. Vira alguma coisa passar do seu lado, indo como que para trás de si própria. Andou um pouco, e chegou à sala. Os arrepios se mantiveram constantes daquele dia em diante, até o momento em que, num dia comum, ela não aguentou. O arrepio foi fora do comum. Ela perdeu o controle de seu corpo. Em um movimento absurdamente estranho, agarrou uma das mochilas. Enrolou a alça no pescoço de uma amiga, e a estrangulou. Causou a morte de outra garota, e sequer se deu conta disso.

Retornou à normalidade logo em seguida, mas não antes de ouvir uma risada estranha ecoar em sua mente. Todos a abandonaram eventualmente. Ela acabou apanhando de seus colegas, que a ofenderam e machucaram. A escola foi fechada, e ela foi retirada do contato com o mundo. Até o dia em que fugiu. Não aguentava mais esse isolamento. Sua família não olhava mais nos seus olhos. Tinham medo dela, tinham receio, e por isso, a rejeitavam. Ela estava sozinha. Fugiu então para o local em que se encontrara agora. A antiga escola, que abrigava também uma creche. A escola foi demolida, restando apenas a creche, que é onde a garota passou a viver. Para se alimentar, ela roubava dos lixos das casas ao redor. Não tinha mais com quem falar. Estava literalmente só. Compreendera finalmente o quê acontecera. Bran a explicou em instantes.

– Você é uma médium. E acaba atraindo espíritos ao seu redor. O problema é que começou a atrair espíritos ruins. Espíritos do pior tipo. Que se acumularam, até o ponto de te possuir. Pobre garota. Você foi privada de uma vida por causa de um dom. Na realidade, para você, é uma maldição.

– Você... Você carrega muitos espíritos ruins com você. Atrás de você... Eu vejo muitos, vejo suas faces... Eles estão com um ódio enorme, uma dor, com uma vontade de vingança... Como você é capaz de aguentar isso?!

– Eu fiz coisas que deixaram esses sentimentos em mim e neles. Não posso fazer nada. Só posso carrega-los. Eles são minha cruz. É minha maldição. Assim como você tem a sua. Temos que carrega-los, não?

– Como consegue dizer isso com essa calma?!

– Simples... Eu fiz algo que me arrependo até hoje. Fiz algo que me trouxe todos esses sentimentos. Todo esse ódio. Toda essa espiral de ódio que não tem fim. Foi minha culpa. Eu não posso fazer nada além de suportá-la agora. Seria muito hipócrita ao rejeitá-la. Eu... Eu não vou ignorar o que eu sinto, mas é meu peso a carregar.

– Mas... Mas... Eu... AAARGH!

Nesse momento, ela saiu do chão. Os espíritos que Bran trouxera consigo se apoderaram dela. Ele não havia pensado nisso. Sequer antes dessa conversa imaginara que a situação atrás de si fosse tão crítica. Ela levitava suavemente, e sua boca se movia lentamente. Balbuciava algumas palavras.

– Assassino... Assassino... Não perdoo... Ódio... ÓDIO!

Essas palavras feriram Bran de uma maneira que ele não podia entender. Eram as palavras de seu amigo. Eram as palavras de todos que matara inocentemente naquele fatídico dia. Eram as palavras de seus pais.

– Não adianta me culpar... O quê foi feito, não tem como voltar atrás! Eu só posso rezar por vocês, e tentar viver. Viver com esse peso, com esse meu erro! Desculpem-me. De verdade. Fui fraco, fui covarde! Nessa covardia, cometi esse crime!

– Não... Importa... Morrer... Morrer... Sofrer! Você... Sofrer!

E nesse momento, algo aconteceu. A espada de Bran se abriu sozinha, revelando suas duas espadas internas. Elas voaram em direção à garota. Atravessaram Emma. Bran entrou em choque. Ele não fizera isso. Não queria isso. Gritou.

– POR QUE!? POR QUE ISSO!? NÃO! EMMA, NÃO!

Ela não estava mais possuída naquele momento. Iria morrer em breve. Bran não conseguia entender. Ele não era mais capaz de perdoar quem fizera isso com a garota. Ela sorriu, mesmo empalada na parede.

– Eu... Pude... Libertar-te... Pelo menos... Você sabe que eu... Não fiz aquilo de propósito... Eu vou te ajudar... Obrigado por ter me ajudado a entender...

– O quê você está dizendo!?

– Eu... Deixei que isso acontecesse... Não tenho mais nada nessa vida... Pelo menos... Pude tirar esse peso de você...

– COMO ASSIM!?

Ela faleceu naquele instante. Algo incrível aconteceu. As duas espadas voltaram à sua posição. Ele ouviu uma voz em sua mente. Era a voz de Emma.

– Eu consigo entender agora... Têm-se tantas coisas te perseguindo... Eu vou te ajudar. Eu sei como é sofrer com isso, e eu não quero que essa corrente de ódio pegue mais alguém... Se não se importar, eu vou ficar aqui. Aqui, com você. Já não tinha aonde ir. Pelo menos, agora, eu sei que alguém me aceitaria do jeito que eu sou. E esse alguém é você, moço. Vou cuidar de você, e te livrar desse mal como você fez por mim.

– Emma! Não fale besteiras! Você merecia viver!

– Viver para quê? Para sofrer mais? Para aguentar mais dessa corrente? Agora eu estou livre, e posso ajudar alguém. Posso estar do lado de alguém. Só te peço que cuide de mim...

– Sua IDIOTA! Você tem noção do quê está fazendo?

– Eu não tenho outra escolha agora, não é? Eu acho que posso te ajudar... Comigo aqui, essa sua cruz... Não vai mais pesar. Você viu o quê todos se tornaram. Você tem algum arrependimento com relação a eles, do jeito que estão agora?

– Eu... Não... Eles não podem fazer isso! Pode ser quem for, ninguém tem o direito de fazer isso! Eles são monstros, não pessoas! Não é dessas pessoas que eu tenho arrependimentos. É das pessoas que eu conheci! Não posso ficar assim... Você... Está certa. Você me ajudou. Você me livrou desse peso. Eu... Posso me sentir livre agora.

Bran chorava. Seu olho lacrimejava muito. Ele entendeu finalmente. Aquela garota, aquele encontro que era para ser apenas um trabalho, se tornou uma espécie de redenção. Aquelas lágrimas estavam guardadas há muito tempo.

– Eu me tornei sua cruz agora. Não é uma cruz de pessoas más. É uma cruz de alguém que quer seu bem agora. Eles não vão deixar de tentar se aproximar de você, mas agora... Você tem alguém para te proteger também. Eu sou sua cruz agora, Bran.

– Como você sabe meu nome, Emma?


– Eles me falaram. Eu sei de tudo. E eu te entendo. Você vai ficar bem, Bran. Você carrega um peso que ninguém é capaz de mensurar. Você é muito forte. Eu agradeço por ter te conhecido. E por ter essa oportunidade. Obrigado.

E depois dessa longa conversa, as espadas voltaram à sua área original, dentro da grande cruz que ele carregava. Algo ocorreu naquele momento. A cruz agora tinha um escrito em vermelho, em no centro.

“A corrente do ódio deve ser quebrada. A liberdade agora é sua. A corrente acabará.”

E assim, Bran enterrou o corpo da garota próximo à creche. Agora voltava para a base, em uma viagem longa, que o fez pensar o tempo todo. Derramou lágrimas no percurso inteiro. Estava lavando sua alma. Por dentro, podia sentir um sorriso da pequena garota que agora, vivia com ele.


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