Ad Limina Portis escrita por Karla Vieira


Capítulo 8
Fraco




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Ethan Williams POV – Entardecer de 06 de Novembro.

- Não quero dizer nada, mas, pelo visto, teremos que passar a noite ao ar livre. – Eu disse, dirigindo. – Faz quilômetros que não vemos cidade alguma, e pelo mapa, vai demorar muito até chegar até Blackpool.

- Não me anima muito, mas se é o jeito... – Comentou Marie, baixinho. – Podemos improvisar barracas e essas coisas todas com magia. O problema vai ser se algum monstro aparecer nesse meio do nada.

- Caralho, quanta neblina! – Exclamou Harry. – Mesmo com a luz do sol fica difícil enxergar muita coisa ao longe.

- Nem me diga, Holmes, nem me diga... – Murmurei, apertando os olhos para ver ao longe. Posso ser um bruxo, mas não tenho o dom da super visão ou algo do tipo para poder enxergar claramente o caminho.

- Galera, aquilo ao longe é uma cidade? – Perguntou Fred, apontando mais adiante. Apertando os olhos, pude enxergar o contorno de uma torre de igreja e outros prédios menores. De fato, era uma cidade.

- Ué, mas não tem nenhuma cidade marcada aqui no mapa. – Disse Kensi, com Andrew olhando por cima de seu ombro. - Isso é estranho.

- Deve ser uma vila pequena, essas coisas não colocam em mapas, eu acho. – Disse ele. – Podemos parar ali e ver se conseguimos algum lugar para passar a noite. Não aguento mais ficar sentado dentro desse carro. Pode ter sido aumentado com magia, mas ainda está apertado demais pro meu gosto.

Ri levemente e concordei com um aceno de cabeça. Vínhamos revezando na direção, mas continuava cansativo. A paisagem durante o dia todo foi agradável, conversamos bastante e pudemos relaxar. Mas agora estávamos cansados, e muito. Precisávamos de um lugar para nos aquecer, comer, e ter uma boa noite de sono. E uma pequena vila poderia funcionar.

Uns dois quilômetros depois, entrávamos na vila. Tinha um aspecto bem medieval, com as ruas de ladrilhos, casas que lembravam o jeito germânico, uma praça larga com uma fonte de pedra no meio, sem água corrente. O estranho é que a vila estava completamente vazia. Não havia uma única alma nas ruas. Não havia sequer luz acesa nas casas. Nem o som de um ser vivo além de nós.

Descemos do carro e olhamos ao redor.

- Onde está todo mundo? – Perguntou Marie, baixinho. Segurei a mão dela por instinto. Aquilo não me parecia algo bom. Começava a ventar forte e, olhando para o céu, constatei que logo choveria.

- Sinistro. – Disse Andrew. – Será que não tem ninguém, mesmo? Ou a cidade tem algum tipo de toque de recolher?

- O que é ridículo, considerando que estamos no século 21 e sem nenhuma ditadura no país. – Comentou Harry.

- Ali parece ser uma hospedaria. – Apontou Kensi para um edifício com uma placa meio ilegível. – Vamos bater na porta, quem sabe alguém abre.

Todos nós concordamos. Fomos até lá, batemos na porta, inclusive a abrimos, e encontramos o local vazio e poeirento. Estranho. Eu ainda estava olhando o hall de entrada da hospedaria quando Harry soltou uma exclamação, assustado. Virei-me e quase tive um ataque cardíaco junto com ele.

Havia um menino pequeno parado diante dele. Era baixo, magricela, por volta dos seis anos de idade. Tinha cabelos cacheados e bagunçados, como se tivesse corrido. Seus olhos eram esverdeados e carregavam uma preocupação angustiante. O pior é que parecia uma miniatura do próprio Harry. Mais novo, mais baixo, mais pálido. E usava roupas que não pareciam da nossa época.

- Por favor, moço, me ajuda a achar meu pai. Ele foi trabalhar na mina e não voltou! – Disse o garotinho, para Holmes, que se abaixou e olhou para o garoto.

- Qual o seu nome? – Perguntou. – Onde está sua mãe?

- Eu me chamo Henry. – Respondeu o menino. Notei que Holmes ficou tenso, mas tentou disfarçar. – E minha mãe tá morta. Por favor, moço, me ajuda achar meu pai! Eu não tenho mais ninguém!

- Tudo bem. Onde você viu ele pela última vez? – Disse Holmes, determinado, levantando-se. Além da determinação, havia algo em seu olhar que eu não soube definir. Marie segurou seu pulso.

- Harry, pode ser perigoso. – Disse ela, baixinho. – Não sabemos nada sobre esse lugar.

- Não se preocupe, Marie, eu sei me cuidar. – Respondeu ele, sussurrando, e se virou para o garotinho. – Vamos lá, me mostre onde você viu seu pai pela última vez.

Harry estendeu a mão, e o garotinho a segurou. Os dois começaram a andar, e começamos a ir atrás deles. De repente, o menino virou a cabeça para trás e sorriu. Um sorriso macabro e assustador. Os olhos do garotinho estavam vermelhos. Paralisado, não consegui ir adiante, nem a mim, nem os outros.

O menino era um demônio. E tinha Holmes em suas mãos.

Harry Homes POV – Noite de 06 de Novembro.

O garoto me levou até fora da vila, que ficava no começo de uma montanha. Estranho. Eu não me lembrava de minas nas montanhas por ali. No pé da montanha, havia uma entrada para a mina de carvão: um túnel escuro parcamente iluminado com lâmpadas de querosene. Alguns vagões estavam soltos do lado de fora do túnel, alguns virados, e outros cheios de sacos brancos grandes, sujos de carvão.

De repente, ele parou.

- O que foi? – Perguntei.

- Eu não consigo entrar lá. Eu tenho medo... Minha tia me contou histórias de monstros que vivem dentro da montanha, e papai trabalha lá para tirar os monstros e pegar o tesouro deles...

Fiquei estático e uma visão passou diante dos meus olhos. Uma lembrança. Minha tia me pegando no colo quando eu tinha quatro anos, e dizendo que meu pai trabalhava tirando os monstros da montanha para que eu pudesse dormir em paz. Na verdade, meu pai era um minerador, mas isso não era muito estimulante para uma criança. Um dia, ele saiu para trabalhar e nunca voltou. Minha tia morreu durante o inverno, de pneumonia, e eu fui entregue para adoção junto com minha irmã mais velha, também criança, já que não me restava nenhuma família. Nós dois fomos separados, e eu nunca mais soube de Gemma. E então fui adotado por um homem chamado Sean, um velho obcecado por lobisomens que me maltratou e me criou para ser um caçador. Desde os meus quatro anos estive sozinho no mundo.

Aquele garotinho se chamava Henry: exatamente como meu pai. Se parecia comigo e com ele. Aquele garotinho era um espírito. E eu não sei o que ele quer de mim. Mas não dá mais para retornar. Talvez ele só precise do pai para o descanso eterno. Eu posso ajudá-lo; não vou deixar que ele viva por mais tempo o que eu vivi.

- Tudo bem. Eu vou encontrar seu pai, viu? – Eu disse ao garoto. – Vou brigar com todos os monstros e trazê-lo para casa. Não se preocupe.

O garotinho sorriu. Virei-me para o túnel, e comecei a entrar. Era mal iluminado, e eu estava desarmado, sem nem ao menos uma lanterna. Quanto mais eu entrava no túnel, mais seco o ar ficava. Era um túnel longo, com as paredes de terra e pedras sustentadas por vigas de madeira velha, cheias de teias de aranha, e ossos de animais. Inclusive, passei por alguns ossos humanos, mas isso não me deteve.

De repente, comecei a ouvir sibilos. Olhei ao redor e não havia ninguém. Eu estava completamente sozinho.

- Harry... Harry...

- Quem está aí? – Perguntei. Sem resposta. Continuei andando pelo túnel extremamente longo e parei quando alcancei uma parte do túnel onde havia este se abria, formando um amplo cômodo de pedra. Era uma encruzilhada, pois havia outros túneis em outras direções. Havia alguns vagões tombados e os trilhos estavam quebrados. Havia uma goteira de água em um canto.

- Harold... – Uma voz chamou. Virei-me e paralisei. Sentado sobre um vagão tombado, de macacão cinza sujo de fuligem, um capacete com uma lâmpada pousado ao lado de si, os cabelos castanhos cacheados e bagunçados e os mesmos olhos esverdeados. Meu pai.

- Pai? – Perguntei baixinho, incrédulo. O homem sorriu, assentindo. – O que...?

- Garoto, eu não tive escolha. Morri em um desabamento na mina. Morri pensando que você se tornaria um ótimo homem... – Ele sorria. Eu estava confuso, sem entender nada. Então, meu pai parou de sorrir. - Mas veja só o que você se tornou. Um fraco. Um sozinho e dependente.

- Do que você está falando? – Perguntei, pego de surpresa. Aquele não era o mesmo homem que eu conhecera um dia.

- De como você desonrou essa família, Harold! – Gritou o fantasma, com seus olhos ficando vermelhos. O som do gotejar de água parecia ficar mais alto. Minha visão ficou levemente desfocada. – De como você se tornou um homem fraco!

- Eu não... Eu não sou assim. – Eu disse desnorteado.

- Seu pai tem razão. – Disse uma voz feminina, mais melodiosa, porém dura com as palavras. – Você se tornou um fraco. Não me orgulho de te chamar de filho.

Uma mulher morena surgiu de uma das entradas, usando um vestido branco esvoaçante. Seria bonita, se seus olhos não estivessem vermelhos e não tivesse um sorriso de escárnio. Eu a reconheci das fotos antigas. Minha mãe.

- Você se tornou um fraco. Mata homens e mulheres para sobreviver. Vive uma vida carente, precisando da atenção e do apoio alheio, precisando que digam que você é bom. Mas você não é! – Esbravejou ela. – Fraco! Não possui confiança em si mesmo! Não consegue fazer nada certo! Você não consegue nem conquistar uma garota!

Marie Jean. Minha mãe falava de Marie Jean. A única garota que nunca consegui nada além da mais sincera amizade. A única garota que eu nunca poderia ter. A única garota que eu já consegui amar de verdade.

- Você a perdeu para o Ethan! Mas é claro que perdeu! Como ela escolheria você? – Esbravejou meu pai. – Um fraco, covarde! Que não tem inteligência, nem força! Um irresponsável! Já o Ethan é bonito, inteligente, forte e determinado! Com alguém como ele por perto, porque alguém escolheria você?

- Por que vocês estão fazendo isso? – Perguntei sussurrando, sentindo as lágrimas arderem em meus olhos. O gotejar da água cada vez mais alto.

- Por que você tem que ouvir a verdade! – Gritaram os dois em uníssono.

- Sabe de uma coisa? – Perguntou uma nova voz, rindo sarcástica. O espectro de minha tia surgiu de outro túnel, indo parar ao lado dos dois outros. – Você está sozinho no mundo. Não tem família. Seus amigos na verdade te odeiam! Te trairão na primeira oportunidade. Sequer virão salvar você! Eles também te acham um fraco, medíocre!

- Eles não... Eles não... – Murmurei, sem conseguir terminar, caindo de joelhos.

- Está vendo, Anne? Seu filho é tão medíocre e ignorante que não é capaz de terminar uma única frase! – Exclamou meu pai.

- Ele não é meu filho. Filho meu não é fraco e covarde! – Retrucou ela. Os três começaram a rir. O chão começou a tremer. As paredes da caverna pareciam girar ao meu redor. O gotejar da água cada vez mais alto nos meus ouvidos. As risadas de escárnio dos dois cada vez mais altas, me quebrando mais por dentro. Eu comecei a chorar, soluçando, agarrando meus cabelos.

Era verdade. Ninguém me amava. Eu estava sozinho no mundo. Nunca consegui nada, nenhum feito que merecesse ser lembrado. Eu era um joão-ninguém, um atraso, um empecilho na vida de todo mundo. Alguém digno de pena que só tinha o que tinha por pena. Alguém que fora rejeitado por todos os que passaram pela minha vida, alguém que fora rejeitado pela garota que amava e tinha que vê-la todos os dias com o cara que sempre fora o meu maior inimigo.

Eu era um nada.

“Obrigado por salvá-la, Harry. Você é corajoso, forte. Obrigada” a voz de Amelia surgiu na minha cabeça. A mãe de Marie Jean me agradecendo por tê-la salvo do ataque dos cães infernais, quando Gregory havia sequestrado os amigos dela.

“Você é bom, cara. Ninguém conseguiria algo assim” a voz de Andrew surgiu em minha cabeça. Dizendo que eu era bom, pois conseguira lutar com vários cães infernais para salvar Marie.

“Obrigado por me ajudar, cara. Se não fosse por você, eu tinha morrido” disse Ethan, na minha cabeça. De fato, eu havia o ajudado algumas vezes. Principalmente quando matei o lobisomem Mason antes que ele decepasse a cabeça loira do irlandês.

“Você sabe que não é assim” uma voz feminina suave e carinhosa disse em minha cabeça. “Você é forte, Harry”. “Não desista”.  Era a voz de Marie. “Não desista, por mim... Eu preciso de você comigo”.

E então, eu entendi.

Trinquei o maxilar e fechei a mão em punho.

- Eu. Não. Sou. Assim. – Eu disse entredentes. Agora eu sabia. Eu sabia que eu não estava sozinho. Depois que os conheci, eu nunca mais estive sozinho. Aqueles lá eram a minha família. – Eu não sou fraco, covarde e medíocre!

- Eu não teria tanta certeza disso! – Disse minha mãe. Levantei-me, olhando os três espectros com raiva.

- Não vou deixar com que vocês me matem! Nem que matem meus amigos!  – Gritei, tendo certeza que a caverna tremia. Alguns punhados de terra caíam do teto. Uma pedra do tamanho de um labrador adulto caiu do teto.  – Eu não estou sozinho, e nunca mais estarei! Não sou fraco porque tenho uma família, e ela nunca vai me abandonar! Não sou medíocre nem covarde, pois já sacrifiquei quase tudo o que tinha por aqueles que eu amo! E não vou deixar que vocês, nem ninguém nesse mundo os machuque! EU NÃO SOU ASSIM!

Os espectros tremeluziram, fraqueando.

- Eu posso ter defeitos e fraquezas, mas não vou deixar que vocês, seus malditos espíritos, me prejudiquem! Então voltem para as profundezas do inferno! E saibam que se voltarem a me perseguir, ou perseguir algum deles, eu vou até o inferno lidar com vocês! – Berrei, com toda a minha força. Os espíritos amaldiçoados tremeluziram e sumiram, emitindo um grito agourento e um clarão insuportável. A caverna inteira tremeu, e uma sequência de estrondos atingiu meus ouvidos, junto com uma lufada de poeira. Os túneis atrás de mim estavam desabando.

Comecei a correr, desejando mais do que tudo voltar em segurança para os meus amigos. A minha família. A poeira me sufocava. Puxei a gola da camiseta e tapei meu nariz e boca, correndo o mais rápido que eu podia em direção a cidadela fantasma, onde me esperavam. Consegui enxergar a luz do luar e das estrelas na boca do túnel, e no momento em que cheguei ao ar livre, o túnel se fechou. Tropecei em uma pedra e caí de cara no chão, porém me levantei rapidamente e continuei correndo em direção à cidadela, que começava a desmoronar.

Cheguei à praça onde os outros ainda estavam me esperando, parecendo paralisados. Assim que me viram, pareceram recuperar seus movimentos e começaram a correr, enquanto a cidade desmoronava.

- O que aconteceu? – Berrou Andrew em meio ao caos.

- Deixa pra lá! – Retruquei. – Só saiam daqui!

Alcançamos o carro, e entramos de qualquer jeito dentro dele. Ethan deu a partida e acelerou o máximo possível, saindo da cidadela e entrando na rodovia. Andamos por vários metros, em silêncio, tentando respirar e absorver o que estava acontecendo, até que Ethan parou.

Olhamos para trás, e não havia mais nada. Nenhum vestígio de que uma cidadela jamais tivesse existido lá. Nem neblina, nem nada. Apenas as montanhas mais ao longe, as planícies extensas e o céu estrelado.

Larguei-me no banco do carro, com a cabeça pendendo no encosto, olhando para o teto. Sequei as lágrimas do meu rosto e senti que limpava poeira e fuligem.

- Harry... O que aconteceu? – Perguntou Marie, baixinho. – Você tá todo sujo, pálido... Tem um arranhão enorme na sua testa...

Eu sorri para ela.

- Nada.

Todos me olharam incrédulos, mas eu não contaria a eles. Não agora.

Marie pegou sua mochila e tirou um kit de primeiros socorros de dentro, e começou a limpar meu rosto. Achei que Ethan ficaria enciumado, mas ele não estava nem aí. Eu também estaria deste jeito, se soubesse que a garota que eu amo é minha alma destinada. Em vez de ficar com ciúmes, ele conjurou comida para nós.

Não muito tempo depois, o sol começou a surgir na linha do horizonte. O novo dia trazia novas perspectivas e reflexões para mim, mas não havia me livrado do cansaço emocional e físico. Não demorou muito para que eu adormecesse no banco do carro, enquanto os outros conversavam sobre o que fazer a seguir. 


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