Ad Limina Portis escrita por Karla Vieira


Capítulo 22
Enigmas




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Ethan Williams POV – Manhã de 18 de Novembro.

A entrada do labirinto se fechou em um paredão de pedra, e em vez de caminhar pelos corredores, resolvi tentar algo diferente. Conjurei uma escada e subi até o topo da parede, vendo que era grossa – tinha uns cinquenta centímetros de largura, mais do que suficiente para que eu andasse. Olhei ao redor, tentando enxergar os outros, mas a altura e a quantidade de paredes grossas, junto com uma fraca neblina que havia ali em cima me impediram de fazer isso. Comecei a andar ali por cima, por uns setecentos metros até a parede acabar, tendo um vão de mais ou menos um metro até a próxima parede. Recuei alguns passos e corri, tomando impulso e saltando para a próxima parede. Consegui me equilibrar por pouco, quase despencando uns cinco metros abaixo. Respirei fundo e continuei andando, tentando fazer o mínimo de barulho possível.

Ouvi um barulho estranho abaixo de mim e parei. Olhei para baixo e vi um lagarto gigante, igual àquele que havia invadido a casa de Amelia há um tempo atrás. Prendi a respiração e comecei a pisar levemente, torcendo para não fazer absolutamente nenhum barulho. Eu lembrava muito bem que aquele monstro conseguia escalar paredes, e que eu não conseguiria lutar com um sozinho. Lentamente, fui me afastando dele, andando daquele jeito por mais uns trezentos metros, até olhei para trás e vi o bicho dar meia volta e andar para o sentido contrário. Relaxei um pouco, mas não suficiente para fazer muito barulho.

Observei o horizonte, e vi que a uns quatro quilômetros de distância havia uma área circular enorme. Era a única daquele jeito em toda a área que eu conseguia ver do labirinto; tive certeza que era o centro do labirinto. Pulei para a outra parede do corredor, a minha direita, e quase despenquei novamente, mas consegui içar-me para cima. Fui engatinhando alguns metros, e levantei-me. Corri e pulei para a próxima parede, mas desta vez, não a alcancei, despencando alguns metros e caindo de costas no chão. Grunhi de dor, rezando para que nenhuma vértebra nem algum outro osso tivesse quebrado. Virei-me de bruços e algo me fez parar. Era um farejar.

Olhei para cima e vi um rato enorme, sem olhos, emergir de um buraco na terra. Ele tinha mais de dois metros de comprimento, era gordo, sem pelos, e tinha garras grandes e afiadas. Pelo o que vi, se guiava totalmente pelo olfato, já que não possuía olhos e nem parecia ter qualquer estrutura que funcionasse como um ouvido. Era um muris terrae, uma espécie de toupeira gigantesca comedora de carne humana. E adivinha quem era o humano que o bicho estava farejando? Eu.

Levantei-me e peguei minhas adagas longas, posicionando-me para defender-me daquele bicho. Ele guinchou, parecendo animado, e veio galopando em minha direção. Por sorte, era um animal baixo – não possuía mais do que um metro de altura – e consegui pular para cima dele, fincando uma adaga em seu dorso. O monstro guinchou de dor, e meus ouvidos reclamaram devido ao tom agudo da voz dele. Ele pinoteou, e eu estava despreparado para isso, sendo lançado de encontro a parede, batendo com a cabeça nela e deslizando para o chão, segurando apenas uma adaga. O monstro conseguiu se virar em minha direção e veio galopando, com a bocarra aberta. Quando ele se aproximou demais, finquei a adaga no céu da boca gosmenta dele, fazendo-o guinchar mais uma vez e pinotear. Soltei a arma, levantei-me rapidamente e finquei-a no topo de sua cabeçorra grossa, e depois de alguns segundos de guinchos agudíssimos que eu desconfiava estarem fazendo meu tímpano sangrar, o rato gigante parou. Retirei as adagas e conjurei outra escada, voltando a subir.

Um clarão a minha esquerda chamou minha atenção, e vi chamas rasgando o céu a uns dois quilômetros de distância. Fiquei preocupado com quem estivesse por perto, e segui adiante, andando mais uns setecentos metros até ter que pular novamente para outra parede, sempre visando chegar a área circular ao longe.

Um grasnar alto chamou minha atenção, e ao olhar para a minha direita, vi dois grifos voando em minha direção.

- Essa não... – Murmurei, me preparando para o ataque. O primeiro grifo desceu velozmente, tentando me atacar com as garras. Brandi as adagas contra ele, conseguindo apenas arranhá-lo e irritá-lo.

- Morra, escolhido! – Grasnou ele, investindo contra mim e tentando acertar-me com o bico, e em seguida, com as garras. Com um ataque rápido com as adagas em cruz, consegui abatê-lo, e ele voou para a esquerda, batendo em uma parede de pedra e caindo, sumindo de minha vista.

- Não! – Berrou o outro grifo. Uma fêmea, pelo que parecia, e eu havia matado seu companheiro. O grifo fêmea investiu com raiva e força em minha direção, e abaixei-me rapidamente, mas sem conseguir evitar que ela me perfurasse com suas garras. “Ai, caralho! Não seja venenosa, por favor não seja venenosa...” rezei mentalmente. Levantei a cabeça e a vi girar no ar, para voltar em outra investida. Fiquei abaixado, esperando, e quando estava bem próxima, levantei-me e ataquei-a com as duas adagas, conseguindo rasgar seu tronco no meio. Ela deu um último guincho e sangue espirrou em todas as direções. A carcaça caiu a alguns metros atrás de mim. Levantei-me, arrumando a postura, respirei fundo e continuei andando. Várias vezes tive de parar e ficar em silêncio para não atrair a atenção de monstros como cães infernais, esfinges, lagartos e pumas gigantes, e até um bando de aranhas gigantes. O suor pingava na minha testa, meu coração batia acelerado, e tudo o que eu conseguia pensar era onde estava Marie Jean, e se ela estaria bem. Vivos todos estavam, isso eu sabia, pois nenhuma luz azul havia surgido no labirinto. Pelo menos isso.

Ouvi um barulho de passos logo abaixo, e olhei. Era Holmes.

- Ei, Holmes! – Chamei, e ele parou, parando na encruzilhada e olhando para os lados, confuso. – Aqui em cima!

- Williams! – Ele exclamou. – Mas que diabos você está fazendo aí em cima?

Eu sorri.

- O meu jeito de atravessar o labirinto.

- Então memoriza qual é o caminho para o centro do labirinto, e desça sua bunda mole daí de cima e vem para cá. – Disse ele.

- E por que você não pode subir?

- Talvez porque aí não tenha muito espaço para nós dois, babaca. Agora para de brincar de homem aranha e desce logo. – Resmungou ele, mal humorado. Pude ver que havia um ferimento fundo em seu braço esquerdo, de onde escorria sangue. Olhei o caminho até o centro do labirinto. Não faltava muito; apenas uns dois quilômetros. Tentei memorizar o caminho, ciente de que eu poderia subir e verificar o caminho assim que precisasse. Saltei dali de cima, aterrissando em uma cambalhota para não machucar meus pés.

- Ok, acrobata, depois que sairmos daqui te envio para o Circo de Solei. – Resmungou Harry.

- Holmes, fale menos e ande mais. – Resmunguei em resposta. Olhei para o braço ferido dele e murmurei o feitiço de cura, e Harry sorriu pela primeira vez nos últimos três dias.

- Pelo menos alguma coisa boa, hein, Williams? – Provocou ele. Revirei os olhos e comecei a andar a sua frente, em silêncio, guiando-o pelo caminho. Durante uns quinhentos metros, indo pela direita e depois reto, eu o ouvia atrás de mim. Mas, de repente, parou.

- Holmes...? – Chamei-o baixo, virando-me. Harry estava pendurado pelo pescoço pela cauda de uma esfinge. Patas de leão, tronco e rosto de mulher, asas cheias de penas cinzas e mãos escamosas.

- Ethan, corra... – Harry disse, engasgando.

- Não vou deixar você morrer, otário. – Resmunguei, empunhando as duas adagas longas. – Solte-o, esfinge.

- Assim que você decifrar três enigmas meus, jovem herói.

O mundo mágico é obcecado por enigmas e profecias. Patético.

- E se eu me recusar?

- Mato vocês dois. Lenta e dolorosamente.

Bufei.

- Diga-me seu enigma, então. Mas não o mate asfixiado enquanto isso.

A esfinge soltou o pescoço de Harry, mas segurou-o debaixo de uma pata gigantesca. O rapaz arfou por ar, massageando o pescoço vermelho.

- Filha da cabeça de serpentes, irmã do que guarda o inferno. Sou veneno, mas sou constelação. Me corte que renasço, só o fogo me vence. Quem sou eu? – Perguntou a esfinge, sorrindo macabramente.

“Filha da cabeça de serpentes... Tífon, o cara que tinha cem serpentes na cabeça. Irmã do que guarda o inferno... Cérbero, o cão de Hades.” Pensei, elaborando uma linha de raciocínio. “Me corte que renasço, só o fogo me vence... Caramba! É a hidra! As cabeças só param de ressurgir quando são cauterizadas por fogo. É isso.” Pensei. Fácil demais.

- És a hidra de Lerna. – Respondi.

- Muito bom, jovem herói... – Disse ela. – Pois bem. Sou um dos quatro príncipes do inferno, sou o Medo e o Caos. Do perfume mais doce, posso pôr fim; como um dragão podes me ter assim. Eu sou o verdadeiro rei do Mar. Quem sou eu?

Verdadeiro rei do mar, um dos quatro príncipes do inferno... Aparência de dragão, mas vive no mar” eu estava um tanto quanto confuso. “Inspira o medo e o caos... Dragão... Mar... Príncipe do Inferno...”.

- És Leviatã. – Me vi respondendo depois de uns cinco minutos, quando lembrei-me de que Leviatã era um monstro marinho gigantesco, parecendo um dragão, cujo bafo aquecia as águas, e o fedor podia entrar no jardim do Éden e apodrecê-lo. Durante as grandes navegações, personificou o medo e o caos.

- Muito bom, jovem herói. Mais um enigma, e deixarei os dois partirem.

- Diga-me seu último enigma. – Pedi.

- Desafiei o raio, de seu poder zombei; seu corpo tentei profanar. Pelo erro, fui punido. Agora adorador da lua mais alva me tornei. Quem sou eu?

Cruzei os braços, pensando por mais de cinco minutos. O raio queria dizer claramente Zeus, o deus grego do céu, mas havia tanta gente que havia desafiado o deus que ficava difícil. “Adorador da lua mais alva... A lua mais alva é a lua cheia. Seria um lobisomem?” pensei. “Espera. Lobisomem. É isso! Qual era o nome do humano que tentou servir carne humana para Zeus? Licantropo? Não... Não... Licatrón... Não... Porra, Ethan, pensa!... Licaón! Licaón!”.

- És Licaón. – Eu disse, depois de uns bons dez minutos. A esfinge sorriu e tirou a pata gigantesca de cima do peito de Harry, que se levantou.

- Muito bom, jovem herói. Podem seguir caminho, não vou mais lhes perturbar.

Dito isso, a esfinge abriu as asas e voou para longe.

- Obrigado por ter prestado atenção na mitologia grega. – Resmungou Harry, endireitando-se. – Ainda se lembra do caminho para o centro?

Assenti, e comecei a andar, ouvindo-o me seguir. Duas badaladas de sino ressoaram.

- Nas trevas, o sino do inferno tocará. Os eleitos, a Morte escolherá... Isso faz sentido agora. – Falei baixinho.

- Isso não me preocupa. O que me preocupa é: “no sacrifício final, o coração solitário perecerá; e no lacre final, o terror ele conterá”. – Comentou Harry. Olhei-o de esguelha e o vi franzir a testa em sinal de preocupação. Havia fortes olheiras em bolsas roxas abaixo de seus olhos, e definitivamente havia umas novas linhas de expressão em seu rosto, que demonstravam o estresse e medo dos últimos dias. Eu não precisava olhar meu reflexo em um espelho para saber que eu estava igual. Ou até pior. – Isso quer dizer que um de nós vai morrer, Ethan. Um de nós vai precisar morrer para que os portões de fechem.

Minha alma gelou. Eu nunca havia pensado a fundo nestes versos da profecia, mas agora, eu havia percebido. O tempo todo, um de nós estava andando direto para uma armadilha, direto para a sua morte. Chegamos a uma encruzilhada de dois caminhos, e apontei para o da direita. Continuamos andando calmamente.

- Eu estive pensando sobre isso nos últimos dias. Alguém vai ter que escolher se sacrificar para salvar os outros, e consequentemente, o mundo. Só que não vai ser você, nem Andrew, nem Kensi e nem Marie Jean.

- Por quê?

- Vocês não são corações solitários, Ethan. Afinal, vocês quatro tem o amor da sua alma destinada. Apenas eu e Fred não temos. Apenas nós somos completamente sozinhos no mundo, ignorando o fato de que nós dois temos vocês como amigos. Acho que quando a profecia diz “coração solitário” é aquele de nós que não encontrou a alma destinada, não tem família, nem nada.

- Isso é injusto. Nós somos uma família. Não biológica, é claro, mas não é necessário ser de sangue para ser irmão. – Retruquei.

- Nada nesse mundo é justo, já percebeu? Não é justo que a Mortem deixe seus portões se abrirem para testar alguns humanos a cada quinhentos anos, e apenas seis pessoas sacrifiquem tudo o que tem para salvar a humanidade que destrói a si mesma. – Harry falava parecendo irritado, mas conformado. Ele estava achando que era ele que deveria morrer daqui a algumas horas. E eu sabia que, se de fato fosse ele, eu não poderia fazer nada para salvá-lo. O silêncio pesou como quilos de chumbo entre nós. O fardo que Harry achava ter que carregar estava pesando muito mais em suas costas, arcadas para baixo. Andamos por metros e metros sem falar nada, completamente absortos em nossos próprios pensamentos.

- Ei, Harry. – Chamei baixo. Ele me olhou, erguendo as sobrancelhas em questionamento. – Eu só te peço que não fale nada disso com a Marie. Ela vai pensar que é você, se você é o melhor amigo dela. Marie não suportaria saber e ter que te deixar ir.

Ele assentiu, cabisbaixo.

- E eu quero te dizer obrigado. – Continuei, e Harry me olhou confuso. – Por tantas vezes ter salvado a vida de Marie e a minha também. Fico feliz que nós tenhamos deixado o nosso passado para trás.

Harry sorriu suavemente, dando dois tapas no meu ombro.

- Fica tranquilo, Williams. Eu sei que você me ama e não vai suportar viver sem mim.

Rolei os olhos. Eu havia resolvido ser sincero e ele estava sendo um idiota convencido. Harry gargalhou.

- Estou brincando, Ethan. – Ele disse. – Acredite em mim, eu também fico feliz por termos deixado o passado para trás.

Sorri, e continuamos a andar em silêncio, fingindo que o momento de ternura nunca havia existido. Quando esqueci o caminho, conjurei uma escada e subi, enxergando que mais uns setecentos metros, entrando na direita novamente e seguindo reto, chegaríamos ao centro do labirinto. E assim seguimos. Ao adentramos na clareira com um altar e uma pedra vermelha no centro, vi Marie Jean sentada na base de uma escada. Sorri aliviado e corri para abraçá-la.

- Marie! – Exclamei. Ela se levantou, largando a mochila no chão, e correndo para se jogar em meus braços. Abracei-a forte, sentindo seu cheiro de flor misturado com o de suor e... Sangue. Afastei-a bruscamente, olhando para seu corpo. – Você está ferida?

- Apenas alguns arranhões. – Ela disse, olhando para si mesma e murmurando o feitiço de cura. Olhou para meu braço arranhado pelas garras do grifo fêmea e fez o feitiço novamente. – Pronto, problemas resolvidos. Harry, você está bem?

Virei-me e encontrei-o com uma expressão triste, olhando da pedra avermelhada no altar para nós dois. O alívio e a alegria de ver Marie sã e salva haviam-me feito esquecer de que Harry estava sofrendo. Que amigo ingrato e péssimo que eu sou.

Sentei-me na beirada do altar, com Marie de um lado e Harry do outro. Tomei alguns goles de água que Marie me ofereceu, e respirei fundo.

- Como será que os outros estão? – Perguntei.


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