Ad Limina Portis escrita por Karla Vieira


Capítulo 23
Purgatório




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Fred Storm POV – Manhã de 18 de Novembro.

Assim que a badalada de sino soou, e a entrada do labirinto se fechou, respirei fundo e me concentrei nos sons ao meu redor. Consegui ouvir o bater de asas de grifos há quilômetros de altura, lá no teto da caverna; Ethan subindo em uma parede e olhando o caminho; Harry correndo e pegando o caminho à direita, e se ele seguisse por aquele caminho, em menos de um minuto encontraria uma quimera no seu ninho, em um beco sem saída a sua esquerda. Marie Jean andava, e pelo barulho de sua respiração, estava em pânico. Kensi logo encontrou um dragão filhote, e tentava domá-lo. E Andrew andava sem parar.

Ouvi também um rastejar se aproximando há dois corredores de distância. Era um rastejar rápido, de uma criatura que eu não conseguia definir. E, se eu ficasse ali, a criatura com certeza me encontraria. Comecei a andar, e como a criatura estava à esquerda, peguei o caminho à direita e segui reto por alguns metros. Concentrei-me novamente e ouvi a criatura ainda se aproximando, cada vez mais perto, seguindo o mesmo caminho que eu. Será que ela sentia cheiros?

Comecei a correr o mais rápido que pude, tentando me orientar por sons e por ele tentando identificar o bicho. Parecia escamas de uma cobra se arrastando, mas era numa proporção gigantesca; deveria ser uma espécie de cobra gigantesca. A única coisa que eu ouvira daquele estilo, e sempre duvidara se existia, era um basilisco. O basilisco era uma cobra nascida de um ovo de galinha, tanto que há duas versões para o monstro: a cobra gigantesca, ou o híbrido de serpente e ave. Mas, pelo o que eu conseguia ouvir, era a primeira opção. Sendo assim, o monstro era parecido com uma das cobras da cabeça da Medusa, e seus olhos possuíam a mesma capacidade dos olhos da Medusa: matar imediatamente aquele que olhar em seus olhos. E a única coisa que ele tem medo é o cantar do galo, e a única coisa que ele não consegue destruir é alguma coisa com arruda. Como a doninha no mito.

E sim, é exatamente o bicho que apareceu no Harry Potter. Horrível igual.

E como cobras sentem o calor do corpo da presa, pode-se dizer que eu estou fodido. Ou seja, vou correr.

Quase que por instinto escolhia os caminhos para seguir, e ouvia sempre a besta atrás de mim. Não sabia o que fazer. Não tinha o dom de Kensi para me transformar em um galo e cantar para esse monstro fugir. Não tinha o pensamento rápido do Holmes ou do Ethan para pensar em uma solução. Mas eu tinha uma velocidade sobrenatural e tudo o que eu podia fazer era correr.

Entrei em um beco sem saída, e ouvi o bicho se aproximar. Sem saída, saltei e me pendurei na parede de pedra do labirinto, subindo e correndo, pulando entre as paredes. O basilisco tentou seguir o mesmo caminho que eu, saltando por cima da parede. Entretanto, a estrutura de pedra não foi capaz de sustentar as toneladas que o monstro tinha, e cedeu batendo na parede mais próxima. Que cedeu e bateu na outra, num efeito dominó.

Corri e pulei o mais rápido que eu podia, sentindo o chão tremer com o peso das pedras caindo. Poeira levantou do chão, dificultando minha visão. Apurei os ouvidos, ouvindo Marie e os outros gritando em algum lugar a minha direita, monstros e bestas de todo o tipo guinchando ao serem soterrados, e o basilisco deslizando por cima dos destroços. Orientei-me pelo som das vozes deles, vendo minha única possível – e improvável – salvação nos meus amigos.

Estava ficando sem fôlego quando cheguei a última parede, saltando para o centro do labirinto, onde estavam os meus amigos. Rolei pelo chão e me choquei com algo sólido e gelado, provavelmente outra parede de pedra.

- Caralho! Um basilisco! Não olhem nos olhos dele! – Berrou Ethan, desesperado. Marie correu até mim e se ajoelhou.

- Fred, você está bem? – Perguntou, me ajudando a sentar. Assenti com a cabeça.

- Mas nós não estaremos se não dermos conta desse negócio. – Respondi.

- Kensi! Vire um galo e cante! – Berrou Andrew, tentando ser ouvido naquela barulheira e caos. – Mas não olhe nos olhos, pelo amor de Deus!

Levantei os olhos e vi Kensi virar num galo branco com a crista vermelha e cantar alto. A silhueta do basilisco na parede de poeira se encolheu e afastou um pouco, emitindo um barulho horripilante que gelou a minha alma. Se cobras não guincham, bem, essa guinchou. Fiquei na esperança de que o monstro fosse embora, mas não foi. Em vez disso, veio mais para frente, e gritei para que todos baixassem os olhos.

- Kensi, vira qualquer bicho voador e tenta furar os olhos dele! – Berrei. – Cuidado!

Ela virou uma águia e levantou voo. Havia luz suficiente naquele lugar para projetar uma sombra no chão, na qual eu a vi tentando furar os olhos da criatura. Depois de alguns minutos que me pareceram eternidade, a cobra guinchou novamente – Kensi havia conseguido furar os olhos. Ela retornou para perto de nós e assumiu a forma humana.

- E agora? – Perguntou.

- Agora a gente tenta matá-la. Alguém tem que fazer muito barulho e atraí-la para um lado, para outro se aproximar e matá-la. – Disse Marie. Assenti. Era um bom plano. Holmes e ela se entreolharam e começaram a gritar para o monstro, batendo as armas que tinham uma nas outras, fazendo muito barulho. O basilisco se virou para eles e foi em sua direção, enquanto eu, Andrew e Ethan pegávamos nossas armas e corríamos. Num salto, pulei para a cabeçorra do monstro e finquei minha espada bem no meio, enquanto Ethan fincava a dele no lado, perto da bocarra, e Andrew perfurava o outro lado. A cobra esperneou, me jogando para o outro lado da clareira redonda, me fazendo bater em uma parede que ainda estava intacta – o efeito dominó havia cessado, mantendo parte do labirinto intacto.

Não vi e nem ouvi nada definido por alguns segundos, ou minutos. Ouvia guinchos, gritos, colisões em paredes; via poeira, silhuetas correndo, remexendo, tudo indefinido. Minha visão estava turva devido ao impacto. E de repente, cessou.

Fechei os olhos e respirei fundo, tentando acalmar meu organismo. Por algum tempo, eu não ouvia muita coisa, mas ouvia a respiração de mais cinco pessoas, e pelo visto, estavam todos vivos. Abri os olhos e vi uma cena da qual eu nunca vou esquecer – como se fosse possível esquecer qualquer coisa sobre essa viagem.

Do outro lado da clareira, havia toneladas de pedra caídas. Vindo de cima delas, havia uma cobra enorme, de mais de cinquenta metros de comprimento, e uns sete de largura. Suas escamas eram verde escuras com manchas negras, e os seus olhos estavam dilacerados e forçados para dentro, com um líquido aparentemente grosso e vermelho escorrendo das feridas. A bocarra estava aberta, mostrando suas presas enormes, de mais de metro de comprimento. Era horrível.

Os meus amigos estavam espalhados pela clareira, alguns em pé e outros sentados, sujos de poeira e sangue. Mas estavam bem. No centro da clareira se erguia uma espécie de altar, com seis escadinhas levando a uma mesa, onde estava uma pedra vermelha intensa.

Levantei-me com algum custo – estava exausto – e caminhei até eles.

- Estão todos bem? – Perguntei.

- Com alguns arranhões, sujos e com fome, mas é, estamos. – Respondeu Harry.

- O que faremos agora? – Perguntou Kensi. – Digo, o que fazemos com isso aí?

Ela apontou para a pedra vermelha no altar.

- Essa é a chave dos portões. – Disse Marie, temos que pegá-la. Pelo formato do altar, acho que temos que subir um por cada escada e pegá-la ao mesmo tempo.

- Faz sentido. – Disse Andrew.

Aproximamo-nos do altar e cada um escolheu uma escada. Subimos os degraus devagar, no mesmo ritmo, e chegamos à mesa ao mesmo tempo.

- Prontos? – Perguntou Marie. Assentimos, e esticamos as mãos. – Um, dois, três...

Colocamos nossas mãos ao mesmo tempo. A pedra vibrou e irradiou uma luz dourada, semelhante aquela do castelo de Sigrid. Mas não formou nenhuma estrutura arquitetônica. Era diferente. Olhando ao redor, não conseguia ver nenhuma parte do labirinto, mas cenas de toda a história. Havia neandertais perseguindo um ancestral do elefante, logo ao lado havia fenícios navegando em um barco semelhante ao viking, egípcios construindo uma pirâmide, gregos levantando o Parthenon, pessoas construindo castelos medievais, cientistas e artistas do renascimento fazendo suas obras... Colombo em um navio em direção à América, Pedro Álvares Cabral pisando no Brasil, imigrantes fugidos indo para a América do Norte colonizá-la. Imagens da Revolução Francesa, da Revolução Industrial, seguidas de imagens da Primeira e Segunda Guerra Mundial. O primeiro homem pisando na lua, a tentativa de revolução pacífica de Mahatma Ghandi, o discurso de Martin Luther King. Bruxos, polimorfos, lobisomens, todos os tipos de criaturas mágicas estavam em todas as cenas. Também havia cenas de grupos de seis pessoas enfrentando diversos desafios para chegar aos portões da Morte. Cenas lindas, cenas horrorosas, todas cenas do passado.

Mas também havia cenas do futuro. Algumas não eram exatamente fáceis de se compreender. Havia algum cientista descobrindo a cura para alguma doença, provavelmente o câncer; havia cenas da Síria finalmente conseguindo a sonhada democracia; cenas de uma possível Terceira Guerra Mundial; cenas de ativistas protestando pacificamente em diversos lugares do mundo, pela paz, pela preservação do meio ambiente, pelo amor. Eram tantas coisas que poderiam fundir meu cérebro.

E de repente, todas as imagens se fundiram em uma só, acima do altar: as portas da morte se fechando. E tudo sumiu.

Percebi que prendia a respiração, e a soltei. Senti a pedra quente sob minha mão. Olhei para os outros, e estavam tão chocados quanto eu. Um rangido tomou o silêncio que havia se imposto, e seguindo o som, vi os portões negros que estavam em um lado da clareira se abrirem, dando passagem a um corredor longo e reto, sem outros corredores. Parecia ter quilômetros. Além do fim dele, consegui enxergar o líquido vermelho e um caminho de pedras levando a ilha onde estavam os portões. Estava claro o que deveria ser feito a seguir.

- Então, quem faz as honras? – Perguntou Holmes. Ninguém falou nada. – Tudo bem, eu levo a chave.

Harry pegou a pedra vermelha, tirando a mão de todos de cima, e guardou-a no bolso.

Harry Holmes POV – Tarde de 18 de Novembro.

Aquela pedra parecia pesar uns três quilos no bolso dianteiro da minha calça. Para o que ela servia e significava, era um peso bem pequeno, até. Eu tentava parecer confiante para os outros, parecer destemido, mas não era bem assim não. Eu estava francamente apavorado. Depois de entender o que a profecia realmente dizia, não consegui parar de pensar sobre quem ela se referia, e cada vez mais aumentava a certeza de que eu era o sacrifício final.

Descemos do altar e fomos em direção ao corredor longo. Um ar abafado emanava dele, contrariando a temperatura da estação. O corredor era largo o bastante para que nós seis caminhássemos juntos lado a lado. Fui o primeiro a tomar coragem e dar o primeiro passo, e os outros me seguiram. Assim que todos passaram pelos portões, estes se fecharam sozinhos. Ou seja: só havia uma direção. Em frente.

Respirei fundo e continuei a caminhar. Depois de uns dez passos, comecei a ouvir vozes, entretanto não eram as vozes dos outros. Eram outras vozes. Vozes dos mortos.

- Então agora eu vou ter minha vingança... Harry Holmes vindo até onde posso tocá-lo... – Ouvi a voz do lobisomem Mason que havia matado há alguns meses. Olhei ao redor e os outros estavam com caras confusas, como se estivessem ouvindo vozes também. Marie chorava. Olhei reto e vi o espectro cinza azulado de Mason sorrindo diabolicamente para mim. Os outros pareciam não vê-lo. E de repente, sumiu.

- Por que você deixou o Ethan me matar, Harry? Você disse que era para sempre, você disse que me protegeria! – Uma voz feminina gritou. Era Cassie, a garota que eu era apaixonado antes de conhecer Marie, e que Ethan enganara e a matara. O espectro dela surgiu na minha frente. Era cinza azulado, mas sabia que seus cabelos eram ruivos e os seus olhos verdes como relva molhada, e estavam cheios de raiva, dor e mágoa. – Você me abandonou, Harry! Isso é tudo culpa sua!

O espectro sumiu. Mas outro apareceu. E outro, e outro.

Aquele corredor era um purgatório na Terra. Onde cada alma viva poderia enfrentar seus demônios e suas culpas.

Marie Jean Lookwood POV – Tarde de 18 de Novembro.

Aquele corredor demoníaco!

- Alô, queridinha. Sentiu minha falta? Logo, logo eu vou poder te tocar, sabia? Afinal, vocês logo passarão para este lado dos portões, e eu vou poder continuar a brincar com você... – O espectro de Fletcher surgiu na minha frente, e eu comecei a chorar, com medo daquele fantasma que nunca me largava. Não bastasse ter me estuprado e tentado me matar há alguns meses, voltado para me assombrar há algumas semanas, ele tinha que retornar. – Eu estou louco para senti-la novamente, meu anjinho!

E o espectro sumiu. Respirei aliviada, mas outro surgiu para me atormentar.

- Como você se sentirá quando seus amigos morrerem na sua frente, doce e impura bruxa? - O espectro falou. Aqueles olhos violeta continuaram fortes mesmo na versão fantasma dele. Aquela cicatriz enorme na sua face. E aquele sorriso maquiavélico no rosto. Um calafrio percorreu a minha espinha. O antigo mestre de Ethan. – Pois é isso que acontecerá. Assim que eu tiver a chance, matarei cada um com as minhas mãos, e você assistirá tudo impotente, para depois morrer lenta e dolorosamente, de uma maneira muito pior da qual você me matou. Ah, pode ter certeza.

E ele desapareceu, virando fumaça diante dos meus olhos. Mas outro surgiu no lugar.

- Que interessante. Vocês chegaram às portas da morte, afinal. E eu sei que vocês vão conseguir. Todavia... – O fantasma de uma garota surgiu. A voz era a única coisa que eu reconhecia: era a voz de Allison, uma das bruxas que Ethan matara. – Quando chegar a sua vez, Ethan vai traí-la, meu bem. Ele vai enriquecer e vai te deixar, provavelmente, te matará e arrumará um jeito de ter seus poderes, ditos tão fortes... Será mesmo que a linhagem Lookwood é tão forte assim? Pois em você só vejo fraqueza e fracassos. Eu te avisei, não avisei? Espero que doa bastante. Que você sinta tanta dor quanto eu senti quando Ethan me traiu. E quem sabe, quando você atravessar as Portas, nós possamos até ser amigas... Ou não, porque tornarei sua pós vida um inferno!

Gritei, e o espectro sumiu. Comecei a correr, ouvindo outras vozes na minha cabeça, e o terror me fazia correr o mais rápido possível, tentando sair daquele corredor demoníaco. Não sei por quanto tempo corri incessantemente, mas me pareceu uma eternidade até que os quilômetros se esgotassem. Atravessei o portal do final do labirinto, e senti algo grudar nos meus ombros e tirar-me do chão.

Berrei.


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