A Primeira Família de Esther escrita por Giullia Lepiane


Capítulo 4
Família


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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Os dias que se seguiram representaram espera para os Sullivan, e foram marcados pela ansiedade e a animação da família.

O até então quarto de hóspedes da casa foi redecorado por completo para Esther ocupá-lo. Mandy se divertiu ajudando os pais a escolherem toda a decoração.

Eliza, que amava fazer compras, gastou dias indo de loja em loja comprando roupas novas para a menina. Todas dignas dela: Vestidos, fitas, sapatilhas, meias-calças. Do jeito que Esther gostava.

Rick pintou as paredes beges e sem-graças do quarto dela de azul-céu, e os móveis de branco. Nesta parte Mandy não concordou. Ela queria tudo lilás. Mas quando o pai terminou o serviço, teve de admitir que ficou melhor daquele jeito.

Nem Leon ficou de fora dos preparativos. Ele comprou uma faixa de tecido bem comprida onde pintou “Bem-Vinda, Esther!”, e cercou as palavras de desenhos de flores. Ele se esforçou para colorir com tinta de tecido sem borrar ou manchar. A faixa só ficou pronta na noite anterior à chegada dela, e Rick prendeu-a imediatamente numa parede da sala de estar, onde fosse bem visível.

Nesta mesma noite, os sonhos de Mandy foram alegres e recheados da imagem da garota imaginária que ela montara dentro de sua mente, baseada na descrição que seus pais fizeram de Esther.

A sua nova irmã.

*********

Todos os meus pertences couberam numa mala pequena, doada pelo orfanato.

Algumas roupas, artigos básicos de higiene, um bloco de desenhos e a minha bíblia. Era tudo que eu precisava e me importava de levar. Com certeza ganharia muito mais coisas chegando à minha nova casa.

O Sr. Ikovski, funcionário do orfanato, foi quem assumiu a responsabilidade de me levar de carro até o aeroporto e me ajudar por lá. Mas foi a Sra. Titov quem bateu na porta de meu quarto perguntando se eu já estava pronta.

- Sim, senhora. – Respondi. Peguei minha mala de sobre a cama e dei uma última olhada no quarto por precaução, apesar de já ter revisado tudo um milhão de vezes. Até eu estar extremamente segura de que não havia deixado para trás nada que pudesse me entregar.

- Esther? – Chamou ela outra vez.

- Já vou. – Revirei os olhos, mas mantive a voz doce.

Abri a porta do quarto. O olhar com que olhei para a Sra. Titov foi tão doce quanto minha voz.

- Vou sentir saudades daqui. – Disse, meu tom forçadamente quase tímido.

Ela me abraçou.

- Você vai ser muito, muito feliz com sua nova família, Esther.

- Eu sei.

- Escreva, tudo bem? Vamos manter contato.

Assenti, embora não pretendesse escrever carta alguma. Ela sorriu.

Sra. Titov me acompanhou até o lado de fora do orfanato, onde o Sr. Ikovski estava me esperando com o carro. Enquanto eu saia, um bando de crianças veio correndo e se amontoou nas janelas, assistindo-me ir embora. Esse era um hábito comum entre as crianças do orfanato, mas daquela vez havia uma margem de diferença. Ninguém parecia triste com a minha partida, nem acenava.

Eles gostavam de mim tanto quanto eu gostava deles.

Uma sombra passou pelo meu rosto quando olhei para eles pela última vez, desprezo e ódio faiscando em meu olhar. Alguns dos órfãos saíram rapidamente da janela ao verem minha expressão.

A Sra. Titov abriu a porta do carro para mim. Voltei a minha máscara antes que ela pudesse perceber a mudança.

- Tchau, Sra. Titov. – Me despedi, entrando no carro e colocando minha mala ao meu lado. Ela não era grande o suficiente para precisar ir no porta-malas.

- Tchau, minha querida. – Sra. Titov acenou e então fechou a porta.

O Sr. Ikovski ligou o carro. Demorou alguns segundos até o motor pegar, mas logo partimos a caminho do aeroporto, que ficava a aproximadamente duas horas do orfanato.

Por sorte, ele era um homem muito quieto, e não quis conversar comigo nem uma vez enquanto íamos. Ficamos em silêncio por um bom tempo, e então ele ligou o rádio. Mas este foi o único barulho além do motor.

O silêncio proporcionava mais liberdade para todos os meus planos sobre o que fazer com os Sullivan crescerem e se desenvolverem dentro de minha imaginação. Era bom.

Com o dedo, desenhei no vidro embaçado da janela quatro pessoas. Uma família. Admirei o tosco desenho por um instante. Senti uma forte vontade de complementar, como eu fazia com quase todos os meus desenhos, mas claro que eu não poderia fazer isso naquele momento. Apesar de quieto, o Sr. Ikovski ainda estava sentado no banco da frente e poderia se virar e ver o que eu estava fazendo a qualquer momento.

E eu não queria ter de matá-lo naquela hora. Não logo antes de me encontrar com os Sullivan. Seria um momento tão inoportuno... Eu não queria chegar aos Estados Unidos envolvida em um escândalo. E nem ficar presa na Rússia por mais tempo para uma investigação.

E se meu rosto aparecesse em uma droga de um jornal, eu estaria correndo sérios riscos.

O Sr. Ikovski não devia morrer. Ponto. Passei a mão pelo desenho, apagando-o.

 - Chegamos, Esther. – Ele falou pela primeira vez desde que saímos do orfanato.

Pela janela oposta a que eu estava encostada era possível ver o grande aeroporto. Não tínhamos chegado de fato, como dissera ele, mas ele disse aquilo para eu ir me preparando para descer, pois estávamos próximos. Naturalmente, porque eu passava longe de ser idiota para o carro parar sem que eu percebesse, mesmo que até pouco antes estivesse concentrada em outra coisa.

Em pouco tempo, entramos no estacionamento. Depois de o Sr. Ikovski passar por certos problemas para encontrar vaga – o tipo de problema que não chegava nem perto de ser o com que eu me divertia – conseguimos parar e saímos do carro.

Fomos para dentro do aeroporto. O Sr. Ikovski fez o check-in e despachou minha mala, o que já demorou muito. Quando enfim ele terminou de resolver tudo, ainda me avisou que continuava faltando uma hora para a saída do voo. Seguimos para o saguão próximo ao portão de embarque. Lá havia diversos assentos de espera vagos, mas ao invés de me sentar em um lugar onde o Sr. Ikovski pudesse sentar ao meu lado, me apressei a sentar numa cadeira entre duas pessoas. Como se a mensagem não tivesse ficado clara, enfatizei:

- Posso esperar sozinha. Você já pode ir embora.

Ele negou com veemência, e parou à minha frente para esperar comigo de pé, mesmo.

- Vou ficar com você até o voo chegar.

- Não precisa. – Insisti, a frieza em minha voz subindo dois tons.

- Ah, precisa sim.

O Sr. Ikovski me contrariou. Senti raiva, mas não reagi. Eu tinha de manter as aparências. Ir embora da Rússia. E continuar na companhia de alguém que é adulto não só na teoria como também na prática enquanto esperava o horário de meu voo.

Em muitos momentos, ter de agir como criança me irritava. Foi um alívio para mim quando finalmente chegou a hora do embarque.

- Tchau, Sr. Ikovski. – Disse, o tom ainda frio. Ele se despediu brevemente também.

Mas o maior alívio não era se livrar dele, e de nenhuma pessoa em particular.

O que realmente me deixava aliviada era deixar a Rússia para trás. A Europa.

Aquela era uma guerra que estava cada vez mais fácil de vencer.

*********

            - Que horas ela vai chegar? – Perguntou Leon, com uma careta de impaciência, sem tirar os olhos do jogo de corrida de carros que ele já estava jogando em seu PSP há quase uma hora direto. Mais especificamente, desde que ele e a família chegaram ao aeroporto para buscar Esther.

            - Às onze. – Respondeu Rick. Ele olhava constantemente para a porta onde os passageiros do voo de Esther iriam entrar, esperando qualquer sinal de que eles chegaram.

- Mas são onze e quinze.

- O voo atrasou um pouquinho.

Leon bufou, mas não reclamou mais. Havia começado uma fase mais difícil do jogo, que exigia mais de sua concentração.

Porém não pôde ganhar, pois nesse momento sua mãe lhe deu um cutucão e sussurrou para ele guardar o aparelho. O motivo era simples: Para ele cumprimentar a irmã educadamente. A porta que dividia o saguão da pista acabara de se abrir, e os passageiros daquele determinado voo em que ela estava começavam a entrar.

Leon bufou mais uma vez, e guardou o PSP na mochila.

Mandy não conseguiu ficar parada esperando junto aos outros. Como já tinha ouvido dos pais a descrição da menina várias vezes, achou que não haveria problemas e saiu correndo em meio a multidão gritando:

- Esther! Esther!

- Mandy, espera! – Eliza chamou, desesperada com o afastamento da filha, e saiu correndo atrás. Rick e Leon continuaram no lugar, para que Esther pudesse localizar pelo menos eles em um local fixo. - Amanda Sullivan! Não saia correndo assim! – Ela ralhou, chegando até a garota antes que ela encontrasse Esther. Segurou Mandy pelo braço para que ela não corresse mais. No momento em que se virou para voltar com ela, avistou Esther no meio de todas aquelas pessoas. Começou a acenar. – Esther! Querida, aqui!

Não tardou para ela vê-las, e ir correndo em direção a Eliza e Mandy. Eliza soltou a menina, confiando que agora não iria mais fugir, para ficar com os braços livres para abraçar a outra filha.

- Como foi a viagem?

- Foi chato, mamãe. Da Rússia até aqui são oito horas de voo. Mas, sabia que eu sai de lá às onze da manhã e cheguei aqui no mesmo horário? Isso foi legal.

- É o fuso-horário. Na Rússia são sete horas da noite agora. – Eliza respondeu, a voz embargada de emoção. Esther a chamara de “mamãe” com tanta facilidade... Por ela já ter oito anos, Eliza temia que a garota tivesse problemas de adaptação. Mas ela nem precisou pedir para ser chamada assim.

Foi tão natural. O lugar de Esther definitivamente era com os Sullivan.

- Esther, Esther! Oi! Eu sou a Mandy! – Gritou Mandy, quase pulando de alegria que a irmã tivesse finalmente chegado.

Esther saiu do abraço com Eliza para abraçar Mandy.

- Oi, Mandy! Eu mal podia esperar para te conhecer.

- Nem eu!

- Vamos lá ver o papai e o Leon? – Convidou Eliza, e Esther prontamente concordou.

Com Rick, foi a mesma coisa do que com Eliza. Abraços e perguntas sobre a viagem. Leon foi mais tímido:

- Oi, Esther. Que bom que você tenha chegado.

- Oi, Leon. Que bom que nos conhecemos. – E estendeu a mão para um cumprimento formal, ao ver que ele não parecia interessado em algo íntimo.

Mas Leon sabia que estava sendo bobo. Esther fazia parte da família agora. Mesmo um pouco sem jeito, ignorou a mão dela e também a abraçou.

Eliza e Rick ficaram muito satisfeitos.

Eles foram pegar a mala de Esther que estava passando pela esteira, e então seguiram para o estacionamento do aeroporto, pegar o carro e levar a garota para casa pela primeira vez.

Mal dava para perceber a maldade por trás do olhar daquela menina tão doce e feliz por ter uma família.


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Notas finais do capítulo

Até o próximo capítulo!