O Feiticeiro Parte III - O Medalhão de Mu escrita por André Tornado
Notas iniciais do capítulo
Capítulo narrado na primeira pessoa.
Estava de olhos fechados, a respirar devagar o perfume que exalava da pele que eu acariciava. Descansava momentaneamente sobre o corpo dele, macio, forte, quente, real. Mexeu um pouco as pernas e eu oscilei como se estivesse a descansar num colchão sobre as ondas do mar. Sorri, adorando cada pormenor daquela intimidade. Nunca tinha feito amor daquela maneira com ele, em que se tinham ultrapassado todos os limites e em que o tinha deixado fazer tudo o que lhe apetecia fazer, entregando-me sem regras.
- Ana, estás acordada?
- Hum?… Estou.
- Ainda bem. Não quero que adormeças.
- Sim, meu senhor.
Assentei o queixo sobre o peito dele. Beijou-me.
- Não podemos adormecer – reforçou. – Ou perdemos o tempo que ainda nos resta juntos.
- Tens mesmo de me lembrar disso?
A noite corria mágica e desenfreada. Apetecia-me amá-lo mais uma vez, mas ele levantou-se da cama com um salto. Ordenou-me que me vestisse enquanto ia recolhendo as suas roupas que se espalhavam pelo quarto.
Senti falta do calor, do perfume dele. Queria era tê-lo comigo, dentro de mim, ao meu lado, debaixo de mim, sobre mim, dormindo ou acordado, queria era simplesmente tê-lo. Mas também saí daquela cama alvoroçada, manchada e amarrotada, que tinha o odor peculiar de sexo consumado várias vezes.
- Vamos passear.
- Passear? – Admirei-me.
- Hai. Não querias que eu te desse as estrelas? Pois vou dar-tas.
Fui até ao roupeiro e vesti um vestido, cobri-me com um casaco porque era de madrugada e tinha arrefecido, calcei uns sapatos com um laço, tão embonecados que sorri para os meus pés. Apanhei a mão que ele me estendia, fomos até à janela, abriu-a. Agarrei-me a ele, segurou-me pela cintura e saltámos para o vazio. Não consegui evitar um grito ao sentir a ausência da gravidade, mesmo que a queda fosse controlada. Escutei a gargalhada que soltou e aninhei-me na curva do ombro dele, respirando novamente o perfume adorável, aconchegando-me no calor tentador.
A brisa noturna carregou-nos pelos céus. Sobrevoámos West City, vi o jardim onde tinha estado com Son Goku naquela tarde, entrevi a cúpula da Capsule Corporation, apreciei deliciada o meu último voo. Pois com quem iria eu voar na Dimensão Real, por cima das cidades e dos montes?
Trunks aterrou numa pequena colina de um bosque das cercanias. No horizonte escuro tremeluzia um mar de luzes que pertencia à grande metrópole ocidental que nunca adormecia verdadeiramente. Por cima de nós tínhamos o esplendor da abóbada celeste e ele abriu os braços, exibindo todas as estrelas que me conseguia ofertar naquele instante.
- Oh, Trunks! Tão… bonito!
Ficámos a contemplar aquele espetáculo, estendidos no chão, num silêncio reverencial. As estrelas moviam-se devagar no céu violeta e acho que adormeci embalada nesse movimento lânguido. Sei disso porque despertei estremunhada com um beijo que me inundou a boca de calor.
- Eu disse-te que não podias adormecer.
- Gomen nasai… - balbuciei.
Sorria-me, debruçado sobre mim. Pensei que iria arrancar-me o vestido e que iríamos fazer amor mais uma vez, mas observou-me simplesmente. Depois disse melancólico, como se fosse um pensamento que se lhe tivesse escapado:
- Amanhã regressas à tua dimensão e eu nunca mais te vou ver.
Sentei-me.
- Trunks… Não quero falar disso agora. É a nossa… última noite.
- Mas temos de falar, precisamente porque é a nossa última noite. Ou então vão ficar coisas por dizer.
- Vão sempre ficar coisas por dizer. É impossível falarmos tudo o que temos para dizer um ao outro.
- Acho que não.
- Tu és tão…
Olhou-me com um meio sorriso.
- Convencido! – Acrescentei irritada.
- Tu adoras-me assim.
- Isso chega a ser insuportável, Trunks Brief.
Estávamos os dois sentados, ele tinha os braços sobre os joelhos fletidos. Baixou a cabeça entre as pernas, pareceu-me definhar de tristeza. Disse-me:
- Julgas que não aceito a tua decisão, mas aceito-a. Não concordo é que o faças já amanhã, podias esperar mais uns tempos e só depois ires embora… Depois de saber o que te vai acontecer, prefiro que partas, mesmo que isso me desgrace o coração. Prefiro saber-te viva, mas longe de mim, a saber-te morta por teres ficado comigo.
As lágrimas apareceram, tão inesperadas e inoportunas. Limpei a cara num gesto seco, aborrecida por ter sucumbido à emoção daquela confissão.
- Vou sentir tanto a tua falta… Trunks.
- Eu também vou sentir a tua falta. Sabes que te amo, Ana.
Era a primeira vez que dizia que me amava. Endireitei as costas, sentia-me tensa. Ia responder-lhe, mas ele interrompeu-me acrescentando:
- Quero que te lembres de mim.
- Todos os dias. Todos…
- Vou dar-te uma coisa que quero que uses, na tua dimensão. Vai ajudar-te a que nunca te esqueças de mim, de todos os momentos que passámos juntos.
- Mas eu não me vou esquecer de ti.
- Oh, quem sabe?… Haveremos os dois de reconstruir as nossas vidas… Mais tarde, quando a dor acabar. E depois a memória vai ser tão distante, que até nem vai parecer memória, mas um sonho louco de uma tarde de outono.
- Não! – Gritei horrorizada.
Sorriu-me. Levou a mão ao interior da blusa que vestia. Mostrou-mo e arrepiei-me quando o vi brilhar sobre a palma das mãos dele.
- O Medalhão de Mu! - Exclamei.
Os dois triângulos estavam separados, as correntes douradas balançavam levemente e o sol desenhado no centro estava apagado. Após a surpresa inicial, recordei que aquele era um objeto perigoso para ele. Assustei-me e roubei-lhe o medalhão.
- Tu não podes tocar nisto!
- Só se estiver unido.
- Como é que o encontraste, Trunks? Pensei que depois do fim de Zephir isto se tivesse desintegrado. Havia tanta luz…
- Encontrei-o nos escombros do pátio onde foi utilizado no altar mágico. Foi mesmo antes de virmos embora, vi qualquer coisa a brilhar e descobri admirado que era o medalhão. Como estava separado, apanhei-o. Escondi-o, não contei nada a ninguém. Acho que por as duas metades estarem na Terra, nesta dimensão, irão continuar por aqui.
Apertei os triângulos como me habituara a fazer, reconheci o toque e estremeci de satisfação. Era delicioso, fazia-me regressar ao passado, transportava lembranças de quando fizera o mesmo. As memórias que era suposto emular. A mão de Trunks agarrou a minha, a que segurava a segunda metade do amuleto.
- O Medalhão de Mu tem duas metades. Eu ficou com uma, tu ficas com a outra. Essa é a tua metade.
- Hai - concordei.
Com dedos trémulos enfiei a corrente dourada da segunda metade do Medalhão de Mu pela cabeça. Era a metade mais especial, pelo menos para mim. Tinha sido uma dádiva de Shenron e das magníficas bolas de dragão. Ele colocou ao pescoço a primeira metade do Medalhão de Mu e anunciou:
- Quando o Medalhão de Mu se voltar a unir, nós voltaremos a ver-nos.
Abracei-o num impulso, enchendo-me de perfume e de calor. Queria-o para sempre naquele abraço. Os dois triângulos tocaram-se, retinindo ao de leve. Senti o metal palpitar, reagindo à proximidade da outra metade. Apesar de nos unir, também nos separava e empurrei Trunks assustada com uma possível reação do medalhão que acabasse por prejudicá-lo. Ele riu-se.
- Não sabia que o medalhão fazia isto.
- Às vezes, parece que está vivo – confessei.
- Interessante. Vou aprender a conviver com esta coisa.
- Vais usá-lo sempre?
- Tu também o vais fazer.
- Oh… Claro que sim.
Voltei a cabeça para oriente e descobri uma faixa azul clara que indicava que o dia ia nascer. Empalideci. O tempo tinha passado inexorável e tinha-se esgotado. E eu tinha estado distraída, ocupada, docemente alheada. Talvez tivesse sido melhor assim, não sentira a picada dos segundos a passar, a areia a escoar-se para a metade inferior da ampulheta. Trunks estava levantado.
- Temos de regressar.
- Para onde? – Perguntei.
Levantei-me com a ajuda da mão que ele me estendia. Olhou-me com uma expressão vazia.
- Tens de ir dormir alguma coisa, Ana. Não vais fazer a maior viagem da tua vida num estado lastimoso. Quero-te bonita, porque vais enfrentar uma audiência respeitável. Todos os amigos da minha mãe vão lá estar e eles querem ver a heroína que nos salvou de Zephir. Não podes aparecer como uma condenada à morte a subir o cadafalso.
Estranhei:
- Que conversa é essa?
- Vamos. Mais uns minutos e estamos em casa.
- Trunks…
- O dia que escolheste para a viagem é perfeito. Vais tê-los a todos para te dizerem adeus.
- Explica-te, não te estou a perceber.
- Os heróis de “Dragon Ball”… nena.
Falou-me em castelhano, com o timbre da voz que tinha quando eu o conhecera, porque não sabia ainda falar português. Pensava que ali, na dimensão onde pertencia, ele só soubesse falar com o timbre da voz japonesa.
- Como é que fizeste isso?
Não me esclareceu. Agarrou em mim e dirigimo-nos para West City, voando calados e sem qualquer resquício do romantismo inocente do primeiro voo. E foi em silêncio que percorremos os corredores da Capsule Corporation, de mão dada. Com passos resolutos encaminhava-me para o meu quarto. Depois de me ter obrigado a comer, haveria de me obrigar a dormir e comandava-me como se eu precisasse de um guia para me orientar as atitudes.
A aurora clareava tudo, afastando a noite mais inesquecível da minha vida. E talvez o dia acabasse por quebrar o encantamento da noite e mudasse o Trunks que eu conhecia para aquele rapaz distante, calculista e frio como um pedaço de gelo. Ou estava disposto a transformar-se nesse rapaz, para suportar a minha ausência.
Inesperadamente, puxou por mim. Parámos.
Perguntou-me:
- Quem é o teu personagem favorito de “Dragon Ball”?
Dei uma risada.
- Ora… És tu!
Repetiu a pergunta:
- Quem é o teu personagem favorito de “Dragon Ball”?
- És tu.
- Quem é o teu personagem favorito?
Fazia-me a pergunta sério, quase rude. Acabei com o sorriso, mas insisti na resposta:
- És tu, Trunks.
Ele respirou fundo, contrariado.
- Quem é o teu personagem favorito de “Dragon Ball”?
Engoli em seco.
- Porque é que me estás a perguntar isso?
Pressionou-me os dedos da mão. Estava a irritá-lo e as sombras do corredor tornavam-no assustador.
- Responde ao que te perguntei.
Baixei os olhos.
- Mirai Trunks.
Tornou a pressionar-me os dedos da mão.
- Porquê? E quero que olhes para mim quando me responderes.
Fiz o que ele me ordenava.
- Porque… precisava ser amado. Tinha perdido quase tudo o que lhe era querido, era demasiado solitário… Introspetivo. Mas continuava a sentir esperança. Tinha o orgulho do pai, a força da mãe, a sabedoria do mestre, havia gentileza nos seus gestos. Tinha uma tenacidade sem igual. Era bonito… na sua solidão. Lutou e cresceu sozinho, suportou todas as tristezas que era possível suportar, mas acabou por vencer. Acredito que deve ser feliz, agora. Quero que seja feliz, pois ele merece sê-lo.
Houve silêncio, que foi físico e esquisito. Movi a mão para me libertar de Trunks. Por um momento, não quis que ele me tocasse.
Sorriu-me, os olhos azuis dele estavam brilhantes.
- Mas esse Trunks… não sou eu, Ana.
Admirei-me. Continuava sem perceber o que queria ele provar com aquela conversa.
- Eu sei que não és tu.
- Mas cheguei a ser, não foi? Quando me conheceste na Dimensão Real e quando me chamava Tiago.
- Não te estou a perceber…
- Através de mim… conseguiste amar o teu querido mirai Trunks. Que precisava de ser amado.
Foi ele que acabou por me soltar a mão. Acariciou-me a face com dois dedos, numa carícia ligeira, como se tivesse medo de me partir em mil pedaços.
- Não digas isso – pedi-lhe.
- É ele que tu amas, não sou eu. Este Trunks convencido, presunçoso e que consegue sempre, sempre… tudo o que quer.
Não fui capaz de rebater o que me dizia. Não me indignei, protestei, nem sequer neguei o que me afirmava tão convicto.
- Minha doce Ana. Jamais te esquecerei.
Fiquei muda, a tentar encontrar um argumento que conseguisse provar, sem qualquer margem de dúvida, que ele estava errado, quando ao mesmo tempo confirmava dentro de mim, no meu interior calado e resignado, que aquela era a verdade, sim, que eu gostava era de mirai Trunks.
E a nossa despedida foi aquela.
- Perdoa-me se te dececionei.
- Tu não…
Calou-me com um beijo.
As nossas bocas ficaram unidas numa humidade doce, que nunca mais se iria repetir. Sentia-lhe a mágoa nos lábios, quase como se a saliva fosse parte das lágrimas que não queria chorar ao pé de mim, por causa de mim.
Segurava-me na cara com ambas as mãos, olhou-me. Acho que me sorriu ao de leve, mas também podia ter sido apenas confusão das sombras do corredor.
Afastou-se, às arrecuas, a aumentar o plano sobre a minha pessoa, um grande realizador de cinema a amar a sua atriz favorita com a câmara, captando-a no silêncio de um palco nu, a reter o meu rosto, o meu busto, o meu corpo inteiro e perpétuo no filme da sua mente. Aquele preciso instante, a Ana da Dimensão Real, de pé, no corredor da Capsule Corporation.
Continuava a parecer-me que me sorria ao de leve, a mágoa vestindo-o de cima a baixo.
Foi-se embora.
Deixou-me sozinha e foi o princípio do meu mundo sem ele.
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Próximo capítulo:
Compromisso eterno.