O Feiticeiro Parte III - O Medalhão de Mu escrita por André Tornado
Notas iniciais do capítulo
Capítulo narrado na primeira pessoa.
Um ar morno afugentou o torpor que me tolhia o corpo. Amolecida, deixei-me embalar pela sensação agradável de estar dentro de um sonho, até que as memórias apareceram. Boas e más e foram estas últimas que me fizeram abrir os olhos. Especialmente a dor da garra a estrangular-me e a levar-me para dentro de um remoinho escuro.
A sombra de umas mãos esguias desviou-se de mim. Não reconheci o que via, um céu violeta, artificial. O calor sumiu-se e ficou o frio do chão de mármore onde me deitava. Voltei a cabeça para o lado direito, para o dono das mãos que me tinham feito sombra.
Gritei. Era alguém verde. Verde como uma alface! Mas o que me causou perplexidade foi o facto de eu o conhecer.
- Dende?! – Exclamei.
Sentei-me. Olhei para as minhas mãos e para os meus braços e gritei outra vez, horrorizada. As calças de ganga, a sweat azul, os braços, as mãos, iguais ao céu. Artificiais. Pus-me de pé com um salto aos gritos:
- Sou um desenho animado!
- Acalma-te, Ana-san… onegai shimass.
Dende, em desenho animado, falava comigo. Voltei o pescoço, da esquerda para a direita. Estava tudo desenhado, com cores berrantes, sem profundidade, como se o mundo fosse apenas a duas dimensões. Apertei os braços, o toque era familiar, contudo. De olhos fechados, era tudo igual.
- Ana-san!
Dende sabia o meu nome. Calei os gritos.
O corpo estava diferente. Estava mais leve e tinha a sensação que se me pusesse aos pulos começava a voar. Tinha ainda um peso esquisito no peito que me tirava o ar. Acho que era medo… Medo do que podia ter acontecido para me ter transformado num desenho animado. Medo também de olhar-me a um espelho.
- Compreendo que deves estar confusa, mas existe uma explicação para estares aqui, connosco.
Abri os olhos, Dende tentava acalmar-me com um sorriso.
- Onde… é que eu estou?
- Na Dimensão Z.
A minha mente paralisou.
- Sabes o que é a Dimensão Z? – Perguntou-me.
- “Dragon Ball” – respondi.
Senti-me agoniada e apertei a barriga. Dende inclinou-se, preocupado. Gracejei:
- Tens de ter paciência comigo, Dende. Não é todos os dias que me transformo em desenho animado.
Ele não encontrou piada naquela minha observação.
Então, notei outro pormenor. Tapei a boca, falei através dos dedos:
- Que língua é esta que estou a falar? É japonês? Mas eu não sei falar japonês! E estou a perceber tudo o que me estão a dizer e tudo o que estou eu a dizer! O que é que se passa aqui?
- Fizeste uma viagem entre dimensões. É uma experiência…
- Estranha?
- Violenta. Falo com conhecimento de causa.
Recordei as palavras de Gohan a dizer-me que estar no meu mundo era um castigo. Apertei os lábios, fechei os olhos com força. O sonho não terminava, o que queria dizer que era real, eu estava mesmo ali, em desenho animado. Leve e confusa e estupidamente nervosa.
Dende acrescentou:
- Tu conheces-nos a todos, não é assim?
A voz era calma, suave como um bálsamo. Queria ajudar-me naquela experiência que classificara de violenta.
- E conheces este sítio – acrescentou, indicando o lugar com o braço.
Os meus olhos fizeram uma breve passagem pelos recantos harmoniosos do Palácio Celestial. Era um lugar encantador, envolvido numa paz absoluta, onde apenas o vento cortava o silêncio sublime.
Concordei, acenando com a cabeça.
- Conheces-me a mim, a ele… - Apontou com um dedo para uma figura parada, ligeiramente atrás de si. Ainda não me tinha apercebido da presença dele.
- Mr. Popo - balbuciei.
- Mas não conheces aquele que ali está… pois não?
O dedo passou para um rapaz que se postava distante. Demarcava-se da cena, afirmando categoricamente que não pertencia ali. Não exatamente àquele recinto, mas àquela história. Era jovem, tinha um olhar opaco, uma barreira que o separava dos outros e que o salvava da contaminação da vulgaridade do mundo. A altivez dele era ofensiva, a solidão era evidente, a mágoa escondia-se algures naquela alma que se retorcia inquieta. Fascinou-me, mas infundiu-me receio. Haveria de estabelecer a mesma distância entre mim e ele que fazia questão de estender entre ele e os outros.
Dende apresentou-mo.
- Chama-se Toynara e é um sacerdote do Templo da Lua.
- Lua? – Admirei-me. – Existe um templo dedicado à lua na Dimensão Z? Mas a lua já não existe.
O rapaz irritou-se com a minha observação. O olhar opaco disparou chispas na minha direção.
- O mestre dele é agora o nosso maior inimigo e é contra ele que estamos a combater – revelou Dende. – Chama-se Zephir e é um poderoso feiticeiro. Foi ele que te trouxe para a Dimensão Z.
- O que quer esse feiticeiro de mim?
- Zephir precisa de ti, Ana-san.
O meu medo aumentou.
- O… quê?
- E tu precisas de fugir de Zephir. A magia negra do feiticeiro quer aprisionar-te, fazer de ti uma fiel servidora do mal. Se isso acontecer, o Universo estará condenado.
A seguir, Dende resumiu o que estava a acontecer na Dimensão Z e que, a dada altura, se estendeu à minha dimensão. Haveria de se estender a todas as outras dimensões possíveis, ao Universo inteiro, se Son Goku não saísse vitorioso. Contou-me que eu fizera a viagem até à Dimensão Z quando interagira com Trunks, o que me deixara a cara a arder de tão corada. Contou-me também que contava comigo para lutar contra o feiticeiro e eu disse que sim, sem saber muito bem com o que concordava, porque eu não sabia lutar e nem sabia o que podia fazer contra um feiticeiro.
- Onde está Trunks? – Perguntei.
- Depois de te ter deixado aqui, voltou para o Templo da Lua.
- Foi Trunks que me salvou?
- Hai.
- Ele vai combater?
- Muito provavelmente. – Sorriu para tranquilizar-me. – Não te preocupes, Ana-san. Ele é um saiya-jin.
- Os saiya-jin também são derrotados. Também…
Não consegui completar. Morrem, pensei. Dende reforçou o sorriso.
- Vai correr tudo bem.
O vento soprou e mexeu-me com os cabelos. Encolhi-me com um arrepio de frio. Mr. Popo entregou-me um par de sapatos de pano e só então reparei que estava só de meias. As minhas sapatilhas tinham ficado na minha dimensão, recordei. Calcei os sapatos sorrindo um agradecimento. Mr. Popo perguntou-me se desejava mais alguma coisa. Abanei a cabeça, respondi que não.
Dende foi até ao bordo do recinto circular e daí pôs-se a contemplar o mundo, numa pose divina que me impressionou. Era gentil no trato, mas exibia a dignidade própria de um deus quando era preciso. Prometi a mim mesma que deixaria de o tratar pelo nome. Soava a desrespeito. Passaria a tratá-lo por kami-sama, o ser todo-poderoso daquele mundo. Deus.
Mr. Popo entretinha-se a jardinar. Percorria os canteiros floridos com um regador, dando água à terra, sorrindo placidamente.
Olhei para Toynara. Descobri-o a cismar com as copas das palmeiras que ornamentavam os limites do recinto. Ao sentir o meu olhar, encarou-me. Não tinha nenhuma expressão no rosto e fiquei perturbada.
Tinha de dizer alguma coisa. Perguntei-lhe:
- Estás aqui há muito tempo?
- Nove dias e algumas horas.
- Ah… Contabilizas o tempo com precisão?
- É importante conhecer o tempo, o passado e o futuro. Gosto de saber quanto tempo irá passar até voltar para casa.
- A tua casa é o Templo da Lua?
- Julgo que o kami-sama já revelou tudo o que precisavas saber.
- Desculpa se te estou a incomodar. Pensava que podíamos conversar… Pareces ter a mesma idade que eu. Vinte e dois, vinte e três?
Não me respondeu.
- És um feiticeiro como Zephir, não és?
- Julgo que o kami-sama já revelou…
- Muito bem! – Cortei exasperada. - Já percebi que não queres conversar comigo.
Ignorava-me pomposamente com o seu silêncio. Fugi dele, afastei-me o mais que pude. Sentei-me no rebordo de um dos canteiros. Aborrecida, quase amuada e resolvi esquecer os maus modos do sacerdote importante, porque ele não merecia que me importasse uma pevide com ele. Entretive-me a ver Mr. Popo e o seu regador. Segui-lhe os movimentos meticulosos, a leveza com que se deslocava, o amor que dispensava às flores, as gotas de água que lhes ofertava com enlevo. De vez em quando, pássaros pousavam-lhe nos ombros.
Nisto, Dende alarmou-se.
- Não!
Mr. Popo perdeu o sorriso plácido. Pousou o regador no chão, junto ao último canteiro que regara e aproximou-se de Dende.
- Kami-sama, o que é que se passa?
Dende recuou. Mr. Popo espreitou as nuvens. O bordão de madeira do Todo-Poderoso foi espetado na minha direção e o grito fez-me estremecer:
- Toynara, leva-a a contigo para o Palácio. Rápido!
E foi realmente rápido. Toynara agarrou-me no braço, com tanta força que me estrangulou a circulação sanguínea. Correu e eu tentei correr com ele, tropeçando nas pernas, entrámos no edifício. Consegui reagir, sacudi o braço e ele soltou-me.
- Espera! O que é que está a acontecer?
- Um dos demónios de Zephir aproxima-se. Vem por ti.
Gaguejei:
- De-demónios?
- Temos de nos esconder. Vem comigo.
Segui Toynara, apreensiva.
O interior do Palácio Celestial era sombrio, mas fresco e incrivelmente sereno. O soalho estava polido e brilhava como um espelho, colunas esguias sustinham um teto alto e abobadado. Os salões eram gigantescos e as galerias eram amplas, escondiam nos recessos mistérios e belezas que não me atrevi a querer conhecer naquela fuga dramática. Atrás de Toynara escalei uma escadaria de degraus brancos, que se enrolava até um patamar aberto onde assobiava o vento.
- Sabes por onde estás a ir?
Parou, voltou-se para mim irritado.
- Estou a proteger-te. Não me questiones!
Não gostei daquela reação bruta. Aliás, não gostava daquele Toynara, feiticeiro e sacerdote do Templo da Lua. Pensei naquilo que realmente o diferenciava de Zephir. Se seria a vontade, o desejo oculto de se vingar de um mestre que o desiludira, uma genuína alma boa ou apenas as circunstâncias que o faziam prisioneiro do Palácio Celestial e, no final de contas, de Son Goku.
Com um gesto seco, mandou-me parar, antes do patamar.
- Baixa-te, para que não te vejam.
Agachou-se, agachei-me atrás dele. Rastejámos pelo patamar, mas a curiosidade mordeu-me. Respirei fundo e antes que me arrependesse, apoiei as mãos no parapeito colunado e espreitei lá para baixo.
- O que é que estás a fazer? – Censurou-me Toynara.
- Quero ver esse demónio – expliquei a tremer.
Com a cabeça entre duas colunas vi o que se desenrolava mais adiante, com arrepios, terror, apreensão, sem apartar o olhar. Um ser monstruoso e gigantesco, de cabelo cor de fogo e pele transparente, interpelava Dende, com os braços cruzados sobre o peito de músculos salientes e ameaçadores. Mr. Popo colocava-se ligeiramente atrás de Dende.
O vento assobiava, transportava as palavras até mim, trazendo-as fragmentadas, mas perfeitamente audíveis e estremeci ao perceber que o demónio procurava, efetivamente, por mim. Escutei:
- …a rapariga? Venho buscar o que pertence ao meu mestre.
Dende respondeu, mas não entendi nada, a rajada seguinte levou a voz dele para longe. O demónio riu-se. Mais palavras.
- …dificultes as coisas. Não queria destruir esta tua bela casinha para levar a rapariga comigo.
O vento era caprichoso. Deixava-me ouvir o demónio, calava a voz de deus. Mais uma vez, Dende respondeu e eu não percebi nada do que ele disse. O demónio ria-se. Toynara insistiu:
- Vamos embora.
Concordei, acenando com a cabeça. Soltei o parapeito, mas um berro inesperado, fez-me espreitar novamente entre as duas colunas.
- Mais devagar, demónio!
Exclamei:
- Ten Shin Han!
Toynara reagiu pela primeira vez como um rapaz normal. O seu espanto era genuíno quando disse:
- Nani? Ele está aqui?
- Conheces Ten Shin Han?
Recompôs-se, pigarreou. Revelou com relutância:
- Hai. Ele ajudou-me, depois de eu ter lutado contra Zephir.
O demónio voltou-se para Ten Shin Han, que o enfrentava sem qualquer receio. Sempre fora um lutador impressionante e admirei-o durante alguns segundos, até que perguntei a Toynara:
- Lutaste contra Zephir?
- Hai. O resultado dessa luta é evidente, se estou aqui. Vamos embora. Se o demónio te descobre, é o fim.
- Mas Zephir é muito poderoso… Se perdeste…
Toynara zangou-se.
- Eu também sou um feiticeiro muito poderoso. E hei de conseguir derrotá-lo, com ou sem a ajuda de Son Goku.
- Com a ajuda dele, vencerás de certeza.
Mas o auxílio e o sacrifício de Son Goku e dos seus amigos era um espinho cravado no orgulho daquele jovem feiticeiro. Não gostei de conhecer mais esse detalhe sobre Toynara, aumentava a minha descrença e a minha desilusão. Ele puxou-me pela sweat.
- Vamos! Já nos demorámos demasiado aqui.
O patamar tremeu quando Ten Shin Han atacou o demónio com um disparo invisível de ki. Fui projetada de encontro à parede oposta do patamar. Toynara caiu junto às minhas pernas. O combate entre o demónio e Ten Shin Han começava. Escutei alguns golpes, outro ataque de ki e o patamar tornou a tremer. Uma luz branca e intensa entrou na galeria e cegou-me. Tapei os olhos para os proteger. Ainda cega, rastejei até ao outro extremo do patamar, tentando alcançar a saída. Ouvi Toynara tossir atrás de mim e depois ouvi-o gritar.
Abri as pálpebras. Havia pontinhos de todas as cores, como fogo-de-artifício, à medida que a minha visão estabilizava. Vi um vulto erguido diante de mim, espalmei as omoplatas na parede. Toynara enfrentava o demónio que tinha entrado no patamar naquele momento, estraçalhando um punhado de colunas. Havia poeira, lascas de estuque e pedaços de mármore por todo o lado. Espalmei as omoplatas com mais força, sustendo a respiração.
Ten Shin Han tinha sido ultrapassado, Dende não conseguira fazer nada e agora era Toynara quem se enfrentava ao demónio. Devia ser realmente muito importante que eu não caísse nas mãos de Zephir. Teria de fugir, mesmo que também Toynara fosse ultrapassado e não conseguisse fazer nada. Mas Toynara enfrentava o demónio com uma dignidade e uma coragem incomuns.
O demónio inclinou ligeiramente a cabeça, descobriu-me atrás de Toynara, sorriu-me. O meu estômago embrulhou-se. Tateando a parede, buscando apoio nesta, pus-me de pé a tremer.
Alguns momentos de silêncio, enquanto a poeira assentava, enquanto os adversários se preparavam, enquanto eu me acalmava. Depois, o demónio ergueu um punho fechado, mas o golpe foi travado a meio por um feitiço lançado por Toynara.
Olhei para o fim do patamar, à minha direita, uma abertura arredondada em cima que levava ao interior do Palácio Celestial. Tentei correr para lá, mas um rugido do demónio travou-me a corrida.
- Para com essas magias, feiticeiro! Não me atingem… Sou uma criatura das trevas.
Toynara recuou. Um fumo negro em fiapos desfez-se a partir dos seus dedos. Eu também recuei. O demónio desferiu um murro em Toynara que o lançou contra a parede. Gemeu ao cair no chão do patamar, calou-se, quedou-se inerte, numa posição estranha, como um monte de trapos.
- Toynara! – Gritei.
O demónio avançou, a sorrir vitorioso.
- És minha.
Julgo que empalideci de horror.
Puxou-me pelo pulso do braço direito. Gritei e ele soltou uma casquinada estrepitosa. Escutei os passos de Dende a correr pela escadaria acima.
- Ana-san!
O demónio saltou para o vazio, puxando-me com ele. Por momentos, flutuei no ar, totalmente desamparada, caindo, o vento assobiando, as gargalhadas do meu captor escarnecendo dos meus gritos.
O braço grosso do demónio apertou-me o estômago. Descíamos em queda livre, a atravessar as nuvens negras que amparavam o Palácio Celestial nos céus. Não aguentei a violência da descida. Sufocada naquele abraço que me raptava, perdi todas as forças e desmaiei.
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Próximo capítulo:
Segunda ronda.