Clichê! escrita por Jessearth


Capítulo 3
De volta à vida


Notas iniciais do capítulo

Eu ODEIO minha internet verdadeiramente. Quando eu vou postar... Enfim, tá aí mais um capitulo.
Enjoy!



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Guilherme teve sonhos ruins. Sonhou que ficara de frente para um carro em alta velocidade. Teve e sensação leve de voar e a dura ao aterrissar na pista. Sonhou que era empurrado por um corredor sem fim, com luzes piscantes, bipes e alarmes. Sonhou com a Morte. A pior parte de seu sonho. Sonhou que ele fizera um trato com a morte. Prove que não precisa viver e não viverá. Guilherme tinha vontade de rir. Fora um sonho engraçado até, porque nunca em toda a sua vida ele fumaria ou ficaria parado esperando pela Morte. Ele nunca faria isso, faria? Já não tinha mais certeza.

Sonhou com uma dor incomparável que o rasgava em toda parte. Sonhou com cirurgias e homens e mulheres de máscara e jaleco branco que entravam e saíam de seu campo de visão. E, um lado bom, teve um longo sonho com uma garota de sorriso bonito. Mas na maior parte ela parecia triste, andando de um lado para o outro, sumindo e reaparecendo. Pessoas transitando ao redor dela. Pessoas desconhecidas. Elas falavam com ela e pediam algo. A garota bonita simplesmente balançava a cabeça e, vendo que estava olhando, dava um rápido sorriso. “Melhore logo”. 

Guilherme estava ficando cansado de sonhos, mexeu-se em sua consciência ciente de sua imobilidade física. Queria mover-se, mas seu cérebro não respondia na velocidade correta. Sentia-se lento. Precisava se mover. Optou pelo mais simples dos movimentos.

Guilherme abriu os olhos.

Demorou um tempo até que se acostumasse à luz da lâmpada fluorescente. Suas vistas doeram como se não fossem usadas há muito tempo. Tentou separar seu sonho maluco da realidade.

Estava num quarto. A cama na qual estava deitado era bastante real. O respiradouro preso ao seu nariz era real – infelizmente. Guilherme sentia-se inerte. Tentou mover as pernas para sair da cama, mas foi inútil. Seu corpo estava fora de área, sem chance de sinal. Ele tentou mover os dedos da mão e sua ação foi mais satisfatória. Retomou lentamente o controle dos dedos e os mexeu de leve. Algo macio os pressionou em resposta.

Foi um aperto suave, incerto. Guilherme reagiu a ele e tentou levantar para ver sua origem. “Não se mova” pediu uma voz feminina. Guilherme parou, já ouvira aquela voz antes, em algum lugar. Parecia uma gravação distante na memória. Ele sabia de onde vinha, mas não tinha certeza de quem era. Virou o rosto, lentamente, para evitar movimentos bruscos, na direção do som. Encontrou um rosto muito bonito gritando de exaustão. Queria dizer olá, seria deselegante encarar uma mulher por tanto tempo em silêncio. Mas não tinha opção. Sua voz recusava-se a fazer-se de útil. Moveu os lábios insonoros e a mulher se antecipou.

“Oi” disse ela. Parecia ter lido a sua mente. Ela sorriu e Guilherme tentou sorrir também, mas o esforço foi demais e ele desistiu antes de conseguir alguma coisa.

“Achei que deveria ficar... não sei por que, mas como ninguém apareceu...” Ela baixou os olhos. Guilherme não conseguiu dizer que ninguém apareceria. “Ah, desculpe, você não deve se lembrar de mim, mas..”.

“Eu me lembro de você” a voz de Guilherme saiu estranha, rouca. Mas com uma firmeza que nem ele sabia que tinha.

Ela sorriu.

Seu nome era Helena, como ele descobriu depois. Helen contou pouco a pouco o que fizeram depois do acidente. Ela e o motorista – que ficara mais preocupado com o amassado na capota do carro do que com o acidente – chamaram a ambulância o mais rápido possível, e os paramédicos o levaram para aquele hospital. Guilherme queria perguntar se teria que pagar alguma coisa, mas não teve forças.

- Eu fiquei muito assustada – contou Helena. – Nunca pensei que veria...

Ela olhou para Guilherme como se quisesse lhe perguntar algo, mas mordeu a língua e continuou falando de amenidades. Guilherme estava ali há uma semana em coma. Os médicos demoraram para controlar a situação quando ele chegou, mas depois de cirurgias e exames, enfim conseguiram restabelecer sua saúde. Mas ainda assim não conseguiram explicar porque ele não acordava. Guilherme  sabia. Ele sentiu calafrios ao lembrar-se do por quê. Seu encontro com a Morte ainda vívido em sua memória.

Guilherme repousou a cabeça com dificuldade no travesseiro, suspirando.

- Ninguém veio mesmo? – Ele interrompeu Helena.

Ela o olhou com pena.

- Não. Ninguém veio.

Guilherme assentiu lentamente, sentindo sua cabeça girar com o movimento.

Guilherme adormeceu, e algumas horas depois, acordou com o quarto vazio. Ele viu o respiradouro ainda em seu nariz e sua perna engessada suspensa por um cabo pouco acima da cama e suspirou, exasperado. Era o que se ganhava por se matar. Muito bem feito! Correu o olhar ao redor do quarto, analisando-o pela primeira vez. O quarto era pequeno, limpo e exageradamente branco. Havia mais duas camas, um de cada de Guilherme; numa, um homem com o peito enfaixado, outra deixada recentemente levando em conta que os lençóis estavam bagunçados. O homem enfaixado estava dormindo, o que fez Guilherme se perguntar que horas eram. O exterior da única janela no quarto estava escuro então ele supôs que fosse noite. Queria saber as horas.

Guilherme olhou para o teto, sonolento; um ponto no alto de sua cabeça latejava. Ele virou, instintivamente buscando o frasco de analgésicos que deixava em sua mesa de cabeceira. Havia uma ali, mas nenhum analgésico a mão, apenas um fino vaso com uma única flor amarela emurchecendo. Um narciso. Lembrou-se de que tinha uma flor do mesmo tipo daquela no batente de sua janela lá no seu apartamento. Tinha até as mesmas manchas amarronzadas nas bordas, pela  falta de água e luz. Guilherme sorriu com a coincidência. Pensou em seu apartamento.

Morava num condomínio cujo único luxo era não ter um síndico que pegava no pé de Guilherme, diferentemente dos últimos dois condomínios pelos quais passara. Tinha um apartamento quarto-e-sala medíocre e um pezinho de narciso para dizer que tinha um propósito. Imaginou se alguém em seu condomínio soubera do "acidente". Se o olhariam de lado, pondo a mão sobre a boca e cochichando mil coisas a mais sobre sua tentativa de se suicidar. 

Será que ficariam surpresos? Ou plenamente conformados? Afinal, seria um idiota a menos no mundo.

Mais tarde, pela manhã, Helena apareceu dizendo que teria que ir embora, não poderia ficar com ele. Guilherme assentiu lentamente e disse que entedia. Agradeceu pelo acompanhamento; não merecia tanto. Helen revirou os olhos para ele e saiu, acenando.

Guilherme ficou ainda mais um mês em convalescência. Não se assustou quando seu médico viera e contara os danos do "acidente". Uma costela fraturada, rachadura no crânio e perna esquerda quebrada. Não foi tão ruim assim, poxa, esperava um pouco mais. Talvez descobrissem uma doença incurável junto. Um câncer, por que não? Mas não teve nada  e Guilherme imaginou se a Morte não estaria metida nisso.

Quando finalmente teve alta do hospital, Guilherme sentia-se quase triste por ter que sair dali. Uma senhora enfermeira gostara dele, podiam se entender. Um médico saindo do turno ofereceu carona a Guilherme e ele mostrou o endereço de seu apartamento. Demorou quase meia-hora devido ao trânsito. Guilherme saiu com dificuldade do carro, apoiando-se com dificuldade na bengala que arrumara.

"Muito obrigado, amigo", disse ao médico no volante. Era jovem, tinha uma vida longa pela frente. "Não tenho dinheiro, como posso pagá-lo?"

O jovem sorriu ao volante. "Fique saudável. A gente se vê".

Guilherme esperou o jovem sair com o carro. Tomou fôlego e olhou para seu prédio que chamara de lar pelos últimos dois anos. Fitou seu apartamento no terceiro andar, o primeiro a partir da esquerda. A roupa que pendurara no varal à varanda, um dia antes de desistir, ainda estava lá. Então não o deram como morto. Ainda tinha seu apartamento. Respirou fundo mais um pouco sentindo a costela quebrada doer um pouco e entrou na portaria.

Seu porteiro, seu Manoel, dormia a sono alto, no meio do dia, com um jornal sobre o peito. O mesmo seu Manoel. Aproximou-se e, o viu resmungar e espiar com um olho quando a bengala fez barulho no assoalho. "Senhor Guilherme?", indagou surpreso. "Oi, seu Manoel". O homem levantou-se da cadeira, apressado e guardou o jornal. "Como vai, senhor Guilherme? O senhor desapareceu. Soube que sofreu um acidente na estrada, mas como estava trabalhando não pude ir vê-lo", desculpou-se. Guilherme sorriu. Então eles já sabiam. 

"Estou bem", afirmou Guilherme ciente da mentira que contara. "Tem alguma carta pra mim?".

Seu Manoel correu até onde guardava as correspondências. Voltou com um monte de cartas. "Aqui. Tem, sim". Entregou-as. E acenou com o chapéu para Guilherme quando ele tomou o elevador.

"Ah, se não é o desaparecido". Dona Marilda, mulher do síndico, o recebeu com um largo sorriso maldoso. Guilherme quase sorriu ao se lembrar de todas as vezes em que caíra na discussão com aquela mulher entojada. Era, provavelmente, a mulher mais fofoqueira do mundo (um título que ostentava com orgulho) aproveitando-se da posição de seu marido.

Guilherme sorriu e mostrou o dedo para a velha e ela retribuiu. Seu velho cumprimento. Guilherme buscou as chaves reservas debaixo do extintor de incêndio e entrou em casa com Dona Marilda falando mal dele com o marido.

Acendeu as luzes. Abriu as cortinas. Olhou em volta. Respirou fundo. Ainda tinha seu cheiro. Cerveja, "cheiro de homem" e roupa suja.                              

Foi até seu quarto e se jogou na cama, fingindo não ter visto o motivo de seu suicídio empilhado na mesa da cozinha. Abriu as cartas. Mais algumas contas. Um aviso de corte de energia do prédio. Uma ordem de despejo. Guilherme riu. Por que não? Abriu a última carta. Uma carta de seu irmão do interior. Estava tudo bem. Soubera do "acidente"; ficou preocupado. Perguntou se Guilherme morresse poderia ficar com o apartamento. "Sinto muito, maninho", murmurou Guilherme. "Não tenho mais apartamento".

De repente, teve uma ideia. Lembrou-se de sua vida antiga na roça. Nascera e crescera lá. Tivera a verdadeira pior parte de sua vida lá. Talvez...

"Bem, dona Morte", disse levantando-se da cama e começando a fazer as malas. "Quer saber por que não gosto de viver? Vou te dar um motivo. “Vamos visitar minha adorável família”. Você vai amar conhecer minha mãezinha".


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Notas finais do capítulo

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