Diário De Um Sobrevivente escrita por Allann Sousa


Capítulo 24
A nossa loucura


Notas iniciais do capítulo

Um capítulo que serve apenas de "preparação" para as emoções do próximo.



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— Não! — gritei, pensando nas consequências daquele plano insano. — Não pode ser!

Antes que percebesse, eu já havia levantado da cadeira e estava socando a mesa metálica fazendo alguns objetos rolarem.

— Acalme-se, por favor, Johan! — pediu ele nervoso.

— Você não entende? — perguntei para ele agarrando o seu uniforme.

— Não — negou retirando minhas mãos da sua roupa e retomando o controle. — Você pode me explicar?

— Desculpe por me alterar — pedi esfregando a têmpora e voltando a me sentar.

— Você deve ter seus motivos, não vou culpá-lo até que tenha se explicado — ele redarguiu, fazendo eu me sentir mais culpado.

— Certo. O nosso problema, infelizmente, é com o exército — tentei organizar os pensamentos na minha mente agitada. — Desde o inicio o plano deles foi formar um novo mundo. Como eu lhe disse, eu sempre recebia informações sobre os avanços nas pesquisas da evolução do vírus ebola. Quando os cientistas alcançaram seu objetivo eu ouvi parte da ideia do general de implantar o vírus na sociedade, mas ainda não fazia ideia de todo o plano. Não imaginava que eles recrutariam pessoas para o novo mundo deles, nem sequer havia articulado que esse mundo se tornaria um campo de treino de soldados poderosos o suficiente para encarar a morte e não mais temê-la, guerreiros que soubessem conviver com poucas condições de vida e que se livrassem de seu egoísmo pela sobrevivência.

— Você está dizendo que o exército quer criar um mundo com humanos perfeitos?

— Estou dizendo que é isso que eles estão fazendo — confirmei sombriamente.

— Mas aqueles homens não são assim, nem mesmo meus marinheiros são.

— É por isso que eu suspeito que eles já estejam mortos — expus friamente.

— Mas as crianças? As mulheres? — ele parecia a ponto de chorar. Percebi que frente ao desespero as pessoas perdem sua índole implacável com que se impões aos outros.

— Você não parece o homem que conheci há treze anos, aquele homem era frio como o gelo que conserva nossa comida agora — joguei na cara do homem que tirava sua máscara à minha frente. — As crianças são criaturas tão amáveis, mas tão manipuláveis. Elas vão crescer como soldados sanguinários e imponentes nessa nova geração de pessoas frias e impiedosas, que tratem os outros como objetos necessários à sua sobrevivência. Quanto às mulheres, tenho dois palpites, talvez sirvam como procriadoras de mais soldados para esse “novo mundo” ou apenas brinquedos sexuais para os insanos soldados que as merecerem. Mas quem sabe façam os dois — ao dizer isso virei-me saí para não ver meu amigo cair de joelhos e deixar as lágrimas caírem por uma mulher que talvez nunca mais voltasse a ver.

Mais tarde fui ao telhado ajudar os homens a tirar os zumbis da frente do portão. Eles trataram de prender facas nas pontas de algumas varas para furar a cabeça dos zumbis, como eu havia instruído. Quando cheguei lá encontrei três homens sentados dizendo estarem cansados, um deles me deu uma lança improvisada e eu comecei a trabalhar. Enquanto eu furava cabeças furiosamente, dois homens quase caíram ao deixarem zumbis segurarem as lanças. Perdemos várias lanças no processo, e ao final o último que restou no serviço fui eu, tentando afastar maus pensamentos enquanto fazia o sangue preto dos mortos animados derramar para todos os lados.

O sol estava se pondo, Roger subiu ao telhado e se aproximou silenciosamente vendo meus movimentos quase insanos.

— Já pode parar — falou ele tão baixo que eu pude fingir que não ouvi. — Pare! — bradou ele para meu espanto, dessa vez fazendo-me erguer a lança e parar.

— Decidiu agir? — perguntei sem me virar.

— Amanhã limparemos isso como homens, como soldados, espero que você tenha um plano para isso. Depois enviaremos grupos de exploração para encontrar o acampamento desse pessoal.

— Não é um acampamento, é um forte e creio que eles não estejam na Flórida, o país inteiro está tomado pelos mortos-vivos.

— Não importa onde estejam — sua voz feroz me surpreendeu. — Nós vamos encontrá-los, e quando encontrá-los, vamos destruí-los.

— Ótimo, por que eu me especializei em matar zumbis.

Mais tarde eu procurei Amélia, pois ela ainda insistia em dormir longe de mim. Encontrei-a em frente a uma porta que imaginei ser “a geladeira”.

— Você está bem? — perguntei a quatro passos de distância, cauteloso.

— Estou com fome.

— Você deveria ter me avisado, vou procurar algo para você comer.

Já havia me virado para procurar alguém a quem pudesse pedir alguma comida quando ouvi sua voz seca e carregada de um sentimento que tentava encobertar.

— Não quero.

— Mas você está com fome.

— Imagine como George deve estar agora, ele é só um garoto, isso se ele ainda...

Sua voz quebrou como um papel posto embaixo da chuva.

— George está vivo Amélia, ele está bem, ele logo vai estar aqui.

— Como você pode saber? — senti uma pontada no coração ao ouvir essa pergunta.

— Eu... — encarei seu rosto tentando evitar que meus olhos buscassem ajuda no chão. — Eu sinto.

— Você sente? — ela deu uma risada. — Eu também sinto, sinto que nós todos vamos morrer.

Ela saiu quase correndo e se juntou ao grupo, antes disso eu a vi passar a mão no rosto, talvez enxugando as lágrimas. O que eu disse, por mais estranho que parecesse até a mim mesmo, não fora um simples consolo. Eu realmente sentia que George estava bem e algo no meu cérebro ligava esse pensamento à voz que eu ouvi no “walk talk”, como se fosse a voz de um amigo dizendo para não me preocupar.

Tentando organizar tudo na minha mente encontrei Laylor sentada a um canto ensaiando algumas notas no violão.

— Oi — saudei ao me aproximar.

— Oi — ela respondeu sem desviar o olhar do violão.

— É... eu tenho... — tentei organizar as ideias depois de sentar ao lado dela, ainda sem saber como falar.

— Um problema com Amélia? — perguntou, ainda sem olhar para mim, e eu tinha certeza que ela não perguntava para saber a resposta.

— Sim, ela não conversa com ninguém do grupo além de mim, mas creio que você, como mulher, pode me ajudar.

— Está colocando sua fé na pessoa errada então — sua resposta soou como ácido para mim.

— Por que você não houve o que eu tenho a dizer?

— Não tenho filho, não sou mentalmente frágil, meu namorado está morto, não estou fazendo sexo com ninguém e me sentindo culpada por trair meu marido morto, e deixa-me ver o que mais? — caçoou ela. — Não sou doente mental?

Tentei evitar a expressão de espanto, sem resultado.

— Você é uma ingrata.

— Eu estava segura naquela casa.

— Você não sabia por quanto tempo.

— Eu poderia me mudar — ela olhou nos meus olhos com uma resposta me calou. — Olha, se você não quisesse essa situação você não teria se aproveitado de uma mulher transando com ela em uma situação tão delicada pra começar. Você sabia da situação dela não sabia?

Meu olhar me entregou mais uma vez.

— Eu amo o George... e Amélia também, quero o bem dela.

— Não duvido disso — replicou, voltando a atenção às notas.

— Então, você não pode mesmo me ajudar?

— Infelizmente não. A única coisa que você pode fazer agora é dar espaço a ela.

— Mas ela se recusa a se alimentar e — abaixei minha voz — estamos em território hostil.

— Vou tentar conversar com ela — suas palavras me surpreenderam mais uma vez.

— Obrigado.

— Não baixe a guarda aqui. Como você mesmo disse, estamos em território hostil.

Eu acenei para ela e saí, o próximo passo era planejar a limpeza da área para o dia seguinte. Minha cabeça estava prestes a explodir.

Mais tarde, depois de comermos peixe fracionado, eu fui me deitar junto aos outros no meu velho saco de dormir. Não encontrei Amélia por ali, então me levantei lembrando de que Laylor disse que conversaria com ela e então segui para o canto isolado onde a garota do violão ficava.

— Laylor? — sussurrei agachando ao lado dela.

— Eu falei com ela — respondeu ela tirando o cobertor de cima da cabeça.

— Você estava dormindo?

— Não se preocupe, eu sofro de insônia, estava longe do sono.

— Então — cocei a cabeça sem jeito. — Ela disse algo?

— Eu estranhei isso, mas consegui conversar com ela normalmente. Ela sorriu e me agradeceu por me preocupar com ela e depois disse que tudo ficaria bem.

Meus olhos quase brilharam de felicidade.

— Obrigado mais uma vez Laylor, você sabe onde ela está agora?

— Deve estar dormindo escondida. Johan, você deve entender a situação da Amélia, ela deve estar envergonhada de ter feito o que fez com você, deve se sentir culpada por causa do falecido pai do filho dela. Você pode esperar ela se recuperar disso tudo, ela tem uma arma e sabe atirar não é?

Eu murmurei um sim, como um garoto tímido que pergunta onde a mãe estaria e recebe a resposta de que ela já é maior de idade.

— Permita que ela encontre as respostas para suas perguntas Johan, boa noite — ela voltou a mergulhar no saco de dormir.

— Ela vai ficar bem, ela vai ficar bem — voltei ao meu saco de dormir sussurrando para tentar me acalmar.

Meus sonhos foram cheios de criaturas noturnas que rompem a terra e correm pelas ruas mordendo as pessoas. Em seguida as criaturas morreram com uma bola de fogo que caiu do céu e de lá saíram algumas pessoas. As pessoas foram crescendo até se transformarem em homens gigantes que tiraram facas enormes da cintura e se uniram em um círculo apontando as lâminas para uma mulher.

— Droga! — foi a palavra que saiu da minha boca quando o pesadelo me acordou e eu me vi sentado esfregando o rosto antes de o sol ter nascido. — Deixá-la se recuperar o caralho! — levantei-me pensando que deveria encontrar Amélia o mais rápido possível.

Depois de correr em círculos feito um idiota, silenciosamente, enquanto os outros estavam dormindo, encontrei-a encostada na van, com os olhos arregalados e as mãos juntas, roendo as unhas com o cabelo desgrenhado.

— Amélia, você está bem? — perguntei, me agachando à frente dela mais uma vez.

— Claro que não, meu filho — ela voltou a chorar.

— Acalme-se, por favor, hoje limparemos esse lugar, amanhã mandaremos grupos de busca atrás do George e...

— Johan, aqueles homens me estupraram — mais uma vez esta mulher me calou, minha voz quebrou como se eu caísse em um poço sombrio e sem fundo, cujo eco dos meus gritos não chegava a atingir a borda.

— Por que... você se distanciou de nós? — meu punho fechado e trêmulo denunciava a força que eu dispensava para enunciar aquelas palavras.

— Eu precisava de algo, fui idiota eu sei. Você deve me odiar agora, mas eu precisava de algo para esquecer a morte do meu filho — ela exprimiu com o rosto escondido nas mãos, as lágrimas escorrendo pelas bochechas.

Nesse momento o sangue afluiu ao meu cérebro de modo que eu quase imaginei ter tido um presságio, mas por não acreditar nessas coisas eu deixei de lado.

— Escute! — falei controladamente, segurando-a pelos pulsos e tirando suas mãos do rosto. — Seu filho não está morto! Nós vamos conseguir salvá-lo! Tenha um pouco de esperança mulher!

— Não posso! Eu vi o helicóptero cair, estava em chamas e caiu no mar, George não sabe nadar — ela falou entre pausas.

— Do que você está falando? — dessa vez imaginei infantilmente estar em uma pegadinha, em que os deuses brincavam relacionando meu sonho com o dela de maneira sádica para que nos desesperássemos por algo que talvez nem fosse real.

— Me deixe! — ela gritou desvencilhando de mim e recostando-se na van.

Nesse momento minha fúria anuviou minha razão mais uma vez.

— Tudo bem — falei secamente para ela saindo dali quase correndo.

Fui até o canto onde ficavam o Carlos e seu grupo.

— Onde está o seu líder? — perguntei para eles com o rosto tremendo de ira.

— Não temos líder, seu cabaço — um homem um tanto musculoso, que estava sentado em uma caixa amolando uma faca, se levantou jogando as palavras na minha cara e me encarando como se eu fosse lixo.

— Então quem é aquele cara grande de quem vocês recebem ordens? — perguntei da forma mais ríspida que pude.

— Parece que é você quem quer nos dar ordens, não é mesmo?

— Só quero ter uma conversa amigável com seu chefe.

— Já disse que não temos chefe.

— Essa mão diz o contrário — apertei a garganta dele com a esquerda e ergui a direita para o rosto dele.

Ele tentou me acertar com a faca, mas eu segurei o punho dele e o desarmei. Alguns homens se empertigaram, mas outro, maior do que todos eles, surgiu calmamente de algum lugar e fez sinal para eles pararem.

— Aí está o homem que eu procurava — gritei para o grupo, soltando o pescoço do homem.

— É mesmo? Você estava me procurando? E você quer o quê? Seu leite matinal?

Olhei para os lados, avaliando os inimigos antes de retorquir.

— Você e seus amiguinhos tarados estupraram a mãe do meu sobrinho.

— É mesmo? — debochou. — Prove!

— Foi ela quem me contou — falei, cerrando os olhos sem saber ao certo o que tinha ido fazer ali.

— Quem? A mulher que apontou uma arma para minha cabeça? Ah, é! Faz todo sentido eu querer comer ela. Por que você não pensa um pouco antes de levar em conta os delírios de uma doida seu soldadinho de merda?

Eu corri até ele com o punho erguido e fechado pronto para um soco, ele também ergueu o braço, mas nós fomos parados por um grito.

— Parem aí mesmo suas vadias brigonas!

Roger apontava um calibre trinta e oito com seus tambores carregados para cada um de nós.

— As meninas vão querer destruir zumbis ou vão ficar por aqui mesmo se matando?


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