My fair lady escrita por Reira


Capítulo 2
II


Notas iniciais do capítulo

"Somente o fogo é capaz de quebrar a frieza de gelo, e esquentar um coração tão frio.
"Mas se me tocares, eu derreteria..."
E somente o gelo é capaz de dar frieza a um coração demasiado quente, o equilíbrio, presença
á uma vida solitária...
"Mas se derreteres e me tocares, hei de sumir..."
E se não houvesse jeito?
Fogo, tão solitário és tão caloroso, porque sozinho?
"Tudo que toco destruo".
E tu, gelo, és feliz assim?Todos te querem.
"O único que quero não pode estar comigo". [...]
- Fogo e Gelo



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São Paulo, 2012

Jane acordou e olhou em volta. Tudo girava, sua cabeça doía. Não conseguia se lembrar de nada que havia acontecido. Colocou uma mão sobre a cabeça, olhando o cômodo. era velho, cheio de paredes rachadas e descascadas, uma lâmpada fraca segurada por um fio, que a deixava balançando com o vento que entrava da janela. Só havia uma cama e um tapete rasgado, além do pó que fez seu nariz coçar. Estava tão silencioso que o som do seu espirro parecia extremamente alto. Isso estava parecendo um...

Sequestro... ?

E então se lembrou. Os homens que a levaram para dentro do carro, um deles colocara algo em seu nariz, um pano umedecido com algum entorpecente, o que a fez perder os sentidos. Franziu o cenho. Seria um sonho ? Porque uma garota comum como ela tinha sido sequestrada ? Jane nunca soube se definir muito bem. Sempre inconstante e sempre igual. Como Alice diz, acordava de um jeito e ia dormir de outro. Mas até que estava indo bem em conhecer a si mesma, até isso acontecer. Agora não sabe de mais nada, e tem medo de descobrir. E medo de que descubram que ela é uma garoto comum, sem dinheiro ou posses; e que acabem dando fim nela. Tremeu só de pensar.

Se levantou, e em cima de uma mesinha que não havia notado antes estava seu livro e seu óculos, que estava com uma das lentes quebradas. “Ah, ótimo, além de ser sequestrada, meus óculos preferidos quebraram”.

Talvez você se pergunte o motivo de ela não estar se desesperando e gritando. Bom, Jane sempre foi paranoica e ansiosa, mas aprendeu que reagir desesperadamente em um primeiro momento pode só piorar as coisas. Então, o melhor seria segurar a ansiedade e tentar fugir silenciosa e cautelosamente, mesmo não tendo ideia de onde estava. Respirou fundo e pegou seu livro e seu óculos, em seguida foi de fininho até a janela e botou a cabeça pra fora, discretamente. Não viu nada, apesar de não enxergar bem de longe, mas tinha certeza de que não havia ninguém. Seria bem ruim pular a janela de vestido, mas tudo bem, ninguém estaria vendo mesmo.

Colocou o óculos no rosto e apoiou um dos pés no parapeito. Ia saltar, até que ouviu o barulho da porta abrindo. Seu coração saltou na hora e começou a suar frio. Tirou o pé do parapeito num segundo e no outro estava encostada na janela, com os olhos arregalados de medo. De trás da porta apareceu um moço, era... o mesmo moço do metrô ?!

– Espero que não esteja fazendo o que eu estou pensando que está fazendo. – A voz dele era grave e rouca. Autoritária e fria. Jane se arrepiou e engoliu seco, e sua resposta foi balançar a cabeça, já que não conseguia dizer nada. O medo a paralisou. Só agora a ficha tinha caído de fato. Aqueles homens poderiam lhe fazer mal, ou á sua mãe... e é muito provável que ela acaba morta no fim de tudo isso. O rapaz começou a se aproximar e ela se encolheu. – Ainda bem que não fez essa besteira. Tem homens por toda a parte aqui. Não adianta querer fugir. Enfim, vamos acabar com isso logo. – É digno de nota que o rapaz não conseguia olhar nos olhos dela. Quando falava com ela, olhava para qualquer ponto aleatório, menos para ela. Ele ergueu a camisa e em seu cinto havia um revólver. Jane empalideceu e sua temperatura caiu bruscamente. Lágrimas de medo e nervosismo brotaram em seus olhos. Mas o que ela havia feito ? Seu coração poderia parar de tão rápido que batia. O rapaz hesitou em pegar na arma. Sua temperatura, ao contrário da menina, havia subido e sua cabeça doía. Em sua mente, um impasse. Não era a primeira vez que fazia isso, mas nunca havia sido uma garota aparentemente inocente. Eram sempre criminosos, homens realmente ruins, em geral da máfia. Mas agora era diferente. Porque lhe pediram isso ? Nunca esperou que lhe pediriam para eliminar alguém inocente, ou por mera vingança. Sabia que isso existia, pessoas que mandavam matar inocentes para afetar seus inimigos, mas nunca havia passado por isso. Colocou uma das mãos no revólver e sentiu o gelo contrastar com sua mão quente, e isso parecia refletir o gelo de seu coração. Estava tremendo, como na primeira vez que teve que fazer isso. Mas sabia que se falhasse, o preço seria alto. Não tinha escolha, nunca teve. Não tinha expectativa de futuro, de um dia ser feliz; até porque em seu julgamento não merecia. Olhou nos olhos dela. Aqueles olhos azuis, brilhantes e com uma doçura quase infantil e uma audácia da melhor linha, e um traço de malícia de olhos de ressaca, como diria Dom Casmurro. O único livro que lembra de ter lido...

Olhos que imploravam por uma absolvição, olhos que não conheciam a maldade e a crueldade que o ser humano é capaz de atingir. Olhos que nunca viram o terror, nunca viram a face da ameaça e da morte. Começou a tremer de nervosismo. Não deveria ter cometido esse erro. Não deveria ter olhado nos olhos dela. Mas agora está feito. Sua missão está comprometida. Tirou o revólver do cinto e a garota tremeu.

– Porque... ? – Foi só o que Jane conseguiu dizer. A voz saiu embargada, devido as lágrimas. O rapaz ergueu o revólver, com as mãos trêmulas. Era uma pergunta para a qual ele não tinha resposta. O silêncio era tão denso que era quase palpável. Cada um ouvia apenas o som de seus corações acelerados, saltando no peito.

– Não pergunte para mim. Sou um assassino de aluguel, recebo o serviço e faço, simples assim. – Ele respondeu.

– Assassino de aluguel... ? – Ela sussurrou. Óbvio que alguém mandou matá-la. Mas quem, e porquê ? – Por favor... – Ela murmurou, chorando. – Eu nunca fiz nada de errado, me deixa ir... – O desespero dela era claro e ele podia senti-lo. O revólver estava mirado e preparado. – Por favor... – Ela murmurou mais um vez, e em seguida fechou os olhos. Correr não adiantaria, não tinha escapatória. Então resolveu esperar que ele completasse seu “serviço” , com um peso no coração que jamais sentiu. Sua mãe devia estar desesperada agora. Pensou que nunca mais a veria... um estalo. Logo em seguida viria o tiro. Segurou firme no parapeito da janela e suspirou, se preparando para o seu fim.






Londres 1888





Katherine andava lentamente em direção á sala de jantar. Pra que uma mansão tão grande ? Tantas pessoas não tinham onde morar, e ela quase se perdia para chegar á sala de jantar.

Sua expressão não era nem um pouco simpática. Katherine sabe disfarçar emoções, mas não sabe ser falsa, coisa inprescindível na sua sociedade de aparências. Mas pelo menos poderia ser educada. Ajeitou os laços no busto, os cachos, suavizou a expressão, respirou fundo e entrou na sala.

A família Valentinne já estava presente. Raphael e seu pai, John Valentinne, se levantaram ao perceber a moça aparecer na soleira da porta. Um costume da sociedade, um dos que Kate admirava. Mas por trás de tanta formalidade e gestos nobres havia tanta falsidade, que fazia tudo perder o encanto. Mas Kate se concentrou apenas nos gestos para não voltar á expressão nada amigável de antes.

Se curvou diante do cumprimento de ambos e em seguida foi se sentar ao lado de Raphael. Era um belo rapaz. Olhos verdes, cabelos castanhos e lisos, de traços firmes e queixo quadrado. Mas tinha má fama pela cidade, fama essa de iludir as moças... existem até mesmo boatos de que ele deixou uma garota grávida e a levou para o interior, para esconder o escândalo. Mas quando se envolve dinheiro e posses, caráter se leva para debaixo dos tapetes com um sorriso.

As famílias se deram bem. Riam e conversavam sobre como seus filhos eram quando crianças. Era sempre assim; se não conversavam sobre seus filhos crianças, conversavam sobre seus filhos jovens sobre quando eram crianças, enfim, eternamente falando de seus filhos enquanto crianças. E se não tivesse filhos... bem, Kate nunca conheceu alguém casado que não tivesse filhos então... seria bem difícil para essa pessoa conviver socialmente.

Tudo isso a entediava seriamente. Assuntos tão superficais dos quais ela já estava cheia. Falava pouco para não fazer descaso, mas descontava na comida a ansiedade daquele jantar acabar.

– Gosta de arte, Senhorita Austen? – Peguntou Raphael. Ela se supreendeu com a pergunta e assentiu.

– Sim, principalmente literatura e música.

– Meu compositor favorito é Tchaikovsky. E o seu ? – Ora, pelo menos ele tinha bom gosto. Poderia ser suportável. Ia responder quando um comentário de seu pai a interrompeu.

– Bom saber que estão se dando bem. Katherine toca piano, sabia disto Raphel ? – Ele balançou a cabeça e a olhou, sorrindo.

– Toque para mim, Kate. – Kate! Ora que ousadia. Iriam ser noivos mas isso não significava que já podia chamá-la assim. Mas não demonstrou seu aborrecimento e se levantou, indo em direção ao piano de cauda. Todos a seguiram, e nesse momento percebeu a presença de mais alguém, era o Conde Raul Middleton. Um velho conhecido da família, amigo dos Valentinne e que deveria estar passando um tempo visitando a família e veio junto ao jantar. Era quieto e desinteressado como Kate; mas conseguia ser mais simpático, apesar de falar muito pouco, tanto que Kate nem notara sua presença até então. Se sentou no piano e tocou. Os únicos que a ouviram foram Raul e Raphael. Quando viu os olhos atentos de Raul, lhe ocorreu a ideia de lhe perguntar discretamente sobre o caráter de Raphael e assim poderia se preparar melhor. Quando terminou de tocar, todos vieram parabenizá-la pelo seu talento. Sorriu de leve, enquanto pensava: “Nem sequer ouviram”.

Raphael disse que ficou encantado com o talento dela para a música. Agradeceu e em seguida foram jogar alguns jogos de cartas. Disso até que Katherine gostava, mas o que mais lhe agradava nessas reuniões era a dança, mas pelo fato de ser um jantar com poucas pessoas, não haveria. Isso aumentava consideravelmente a chance de tornar uma noite ainda mais tediosa.

Quando finalmente acabou, Kate se sentiu decepcionada por não conseguir conversar com o Sr. Middleton. Mas eles iriam vir frequentemente á sua casa, então conseguiria outra oportunidade.

Enfim poderia demonstrar seu descontentamento. Correu para o quarto e Anne a esperava, pronta para arrumá-la para dormir. Só pelo olhar de Kate, a empregada já sabia que havia sido horrível como ela esperava. Depois de conversarem enquanto Anne a arrumava, se despediram e foram dormir. Mas Kate não conseguiria tão fácil. Estava cheia de pensamentos inquietantes, sobre como seria sua vida. Não queria isso. Sentiu lágrimas inundarem seus olhos, pensando em como aquilo tudo era injusto. Mas tinha responsabilidades como Duquesa e precisava honrá-las, e se casar com um nobre e ter filhos era uma delas. Mas queria, ao menos, uma última lembrança com a pessoa que amava. Se olhou no espelho, sair de camisola não era muito agradável. Riu imaginando a reação de Sebastian ao vê-la de camisola enquanto procurava um vestido. Haviam dois ou três que ficavam bonitos mesmo sem corpete, e escolheu um rosê. Era rodado, comprido, que usava nos seus passeios pelo campo. Os cabelos iam soltos mesmo. E os pés, descalços.

Sabia que Sebastian costumava lavar todos os pratos e beber café antes de dormir. Uma coisa deveras irônica; mas isso não o fazia perder o sono.

Então foi até a cozinha, de fininho, ou como diziam, á francesa. Com uma lamparina na mão e muita audácia, percorreu os corredores silenciosamente. Quando chegou á cozinha, ele estava de costas, tomando seu costumeiro café.

– Sebastian - Ela sussurrou. Ao ouvir a voz dela – os rapazes que já se apaixonaram sabem o sentimento, a emoção que cabe nessa simples palavra, dela – se virou num ímpeto, quase derrubando o café na camisa, e ergueu as sobrancelhas, surpreso. O coração batia rapidamente, devido ao susto e a emoção que a voz dela provocara. – Eu gostaria de um chá. – Ela pediu, e se sentou delicamente em uma pequena mesa, como se estivesse na sala de jantar em uma refeição formal. Sebastian riu e foi preparar o que ela pedira.

Mas Katherine não queria apenas chá. Queria reviver as memórias... dos dias em que não havia censura ou formalidade entre eles. Sebastian era filho de um antigo mordomo que morrera e por consideração ao homem, que fora tão útil, e pelo menino, que perdera a mãe ao nascer e o pai algum tempo depois, ficaram com a criança e a treinaram para seguir o caminho do pai. Kate e ele tinham a mesma idade, eram apenas crianças, e podiam correr pelo jardim, desenhar com giz nas árvores e nos escombros de uma velha mansão, praticamente o porto seguro, o “lugar secreto” deles, que descobriram por acaso em um passeio. As conversas, as brincadeiras e encenações... as danças. Tudo isso lhe foi proibido á algum tempo. Mas continuaram com a amizade, e seu pai, ao descobrir, proibira até isso. Só faltava expulsá-lo da mansão, então resolveram parar de se divertirem juntos. Só tocavam de vez em quando, sob o olhar de Anne, quando os pais dela não estavam, mas por ser algo á vista dos empregados, não era tão sério. Mas ela queria sentir aquela emoção, aquela sensação de liberdade, de poder ser ela mesma, sem regras, sem formalidades, uma última vez. De estar com ele – E todas as moças que já se apaixonaram sabem o que cabe nessa palavra tão pequena, ele.




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Notas finais do capítulo

O texto nas notas iniciais também é meu gente :D Se quiserem ver ele inteiro, na descrição da minha fic Fogo e Gelo tem.
E então, o que estão achando ? *-*



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