O Livro De Merlin escrita por Yuri Nascimento


Capítulo 2
Madeline


Notas iniciais do capítulo

No último capítulo, Lumin conseguiu com êxito repassar o livro e transportar seu portador para fora do Porto da Baleia - por um meio completamente suspeito. Quem é a pessoa que carrega o livro? Para onde foi?



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Até então, tudo estava correndo muito bem, obrigado. Madeline já estava há dois dias instalada e trancada no pequeno quarto alugado na Rua do Travesseiro, uma pequena viela pouco movimentada no quadrante noroeste da cidade mercantil de Tarantela. O plano era ficar ali por sete dias, até que se soubesse exatamente como o rei iria lidar com o desaparecimento da peça chave no seu plano secreto. Iria ele mandar um exército à caça de uma garota – supondo que ele descobrisse que não era um garoto o portador – com um livro, no mínimo, suspeito? Mandaria, ao invés disso, os seus abomináveis silenciosos, arriscando assim denunciar que tipo de criatura bizarra se escondia em sua fortaleza? Pior, denunciando assim o tipo de feitiço que usara para invocar tais criaturas. Ou teria ele mais armas escondidas do que sabiam até então?

– Alugue um quarto por sete dias, compre também tudo o que precisar para não sair à luz do sol ou da lua por esse período. É tempo suficiente para o rei patrulhar Assunção e os arredores três vezes até concluir que eu não estou lá. Há uma hospedagem pequena que vai servir muito bem, pertence a um irmão do cunhado do meu tio segundo. É um homem lento, gordo, de olhos esbugalhados e desinteligente que não vai sequer perguntar o seu nome. De lá, siga para o norte até chegar em Bromópolis, antes da segunda carruagem no céu, e pegue um trem até Náutica. Espere até o anoitecer lá, e então ele vai te encontrar na ponte do lado de fora da estação. O mais importante sobre Tarantela: Não. Saia. Do quarto.

Lumin fora bem enfático sobre a importância dos detalhes em cada passo do plano, e eles repassaram constantemente nos últimos dois meses como fariam para levar o livro em segurança até a cidade de Assunção. Lá ele seria entregue a Walter, um velho e enérgico professor da Exímia Academia de Artes e Ciências de Assunção. Walter era professor de feitiços de primeira ordem – dos aprendizes –, embora fosse um dos poucos humanos vivos a dominar os feitiços até a quarta ordem. Seu professor era um verdadeiro mago, dominava as sete ordens de feitiçaria, mas morrera há trezentos e quarenta e dois anos atrás lutando contra sete dragões de ouro. Essa façanha fez dele, Edmar Von Der Winston, ícone na história do Reino de Pedragória. Todos os outros feiticeiros de alta ordem também morreram, junto com os três últimos magos vivos no mundo inteiro. Walter não teve a chance de aprender todas as ordens, mas sua vida longa – atualmente trezentos e setenta e seis anos – fazia dele não só um dos humanos mais velhos vivos, mas também um venerado mestre das artes mágicas, já que nenhum outro feiticeiro conseguira alcançar uma ordem tão alta. Os magos não mais existiam, e desde a Batalha de Ouro – como ficou conhecido o episódio – ninguém alcançara a quarta ordem ou superior. O primeiro contato com Walter fora há seis meses, quando ele veio ministrar um curso de férias na Academia Estadual de Argória, onde Madeline é aprendiz nas artes de feitiçaria. Como uma das alunas de melhor desempenho, conseguiu se destacar nas aulas do professor. Tudo parte do plano que ela, junto com mais três estudantes e um grupo chamado Klien, elaboraram para impedir o rei de seguir adiante com uma loucura que só podia ter sido maquinada por uma mente em extremo estado de doença. Apesar da monstruosidade do achado, havia fortes evidências que levavam a concluir que o suposto plano era sim verídico, e já estava em curso. Walter foi posto a par dos acontecimentos. No começo, duvidou piamente que a figura mais importante do Reino estivesse por trás de algo tão maléfico, e quase pôs tudo a perder levando o caso ao próprio rei. Mas tão logo as evidências foram apresentadas, o ceticismo deu lugar à perplexidade e a incredulidade diante dos fatos. Como diretor de uma das mais renomadas Academias de Artes e Ciências de todo o Reino e sendo o maior feiticeiro de toda a Pedragória, ele era o maior aliado do Klien. E talvez o único.

O livro que estava prestes a ser entregue a ele era uma verdadeira relíquia no mundo, escrito em uma língua mais antiga que a idade do Reino, há muito tempo esquecida. Seu conhecimento daria ao seu portador poderes ocultos e completamente inalcançáveis pela limitada compreensão humana. Merlin, um mago e feiticeiro de ordem sete, o primeiro deles, escreveu esse livro há mais de quatro mil anos. Era um sujeito dedicado à ciência e à experimentação, numa época em que a humanidade era verdadeiramente evoluída. O conhecimento era adorado e buscado em todos os lugares do mundo, e os reinos eram só cinco. Dizia-se que Merlin descobrira e documentara uma nova forma de iluminação, um caminho do pensamento capaz de usar o potencial oculto da mente humana, e por isso sua mágica era tão poderosa, bem como suas invenções tão constantes e revolucionárias. Algumas maquinarias usadas ainda hoje eram resquícios imprecisos das mais fantásticas criações de Merlin. O famoso mago feiticeiro de ordem sete teve cinco pupilos, cada um pertencente a um dos reinos, mas um deles não estava pronto ainda, e nunca estaria. Impaciente e de temperamento difícil, Miro, o preferido e mais brilhante dos pupilos, consumido por sua avidez e amor doentio pela magia, rebelou-se contra seu mestre e seus irmãos, conjurando um feitiço que ainda não estava apto a realizar. Um ritual de seis dias que acabou errado, e deu nascimento aos chamados Dragões de Ouro – hoje extintos – trazendo ao mundo seiscentos anos de trevas. O episódio ficou conhecido como O Fim Dourado – marcava o fim da Era Dourada da humanidade pelas garras dos Dragões de Ouro. Antes tida como sangrenta, hoje toda a história não passava de uma lenda repetida por todas as crianças e adultos ao redor do mundo. Perdido na primeira batalha, a qual culminou na morte de Merlin, o livro caiu no esquecimento por eras, sendo buscado por aventureiros e curiosos de tempos em tempos. Este era um tempo de esquecimento.

Lumin esperava que Walter pudesse decifrar o livro, entende-lo e talvez usá-lo para lutar contra o rei. Walter, por sua vez, ainda não sabia se seria sensato sequer trazer à tona tais revelações sobre a figura mais adorada em toda a Pedragória. Apesar disso, queria muito por as mãos em tal livro. Ansiava por notícias do artefato a cada passo do Klien em suas tentativas de toma-lo das mãos do rei. Até que conseguiram, e aqui estava Madeline, uma jovem aprendiz que, a essa altura, já estaria sendo procurada por seus parentes e amigos no Porto da Baleia, uma das quinze zonas portuárias que, junto com mais três cidades, compunham a região metropolitana de Argória, a capital do Reino de Pedragória.

Na manhã do segundo dia, uma carta estava à porta. Era de Lumin. Dizia que conseguiu se safar na noite em ela fugira, e que tudo estava bem. Nenhum dos outros três estudantes estava em perigo, e ninguém do Klien fora capturado até então. O rei não dera sinais de movimento. Fique alerta, ele disse, mandarei outra carta em breve. Ele estava em um pequeno barco a velas a caminho de Marópolis agora, e de lá encontraria um meio de sair do reino para providenciar a segunda parte do plano. A notícia deixou-a bastante aliviada. Ela estava sentada num banco de madeira grande o suficiente para três pessoas, suspenso no teto por duas correntes desgastadas presas aos encostos e braços do banco, encarando as pequenas janelas fechadas e tão manchadas que quase não permitiam à luz transpassá-las. Musgo e ferrugem acumulavam nas extremidades dos vidros, e onde a água da chuva escorria ficaram marcados os trajetos pela superfície desgastada.

Todo o quarto era escuro, sendo a janela a única fonte de luz. Isso não é limpo há anos, pensou, franzindo o cenho para a sujeira no vidro. Balançava o banco lenta e tediosamente, empurrando de leve a parede à frente de si abaixo das janelas, com os pés vestidos nas meias marrons que iam até o meio das coxas. Os braços estavam abertos no encosto do banco, e na mão direita uma maçã com duas mordidas. Esperar estava sendo mais difícil do que ela imaginara, e já não aguentava mais conversar consigo mesma quando queria conversar com alguém. O quarto tinha uma atmosfera pesada. Cortinas pesadas na parede lateral, uma lareira com brasas da noite passada da qual ainda emanava algum calor para o ambiente, tapetes grossos adornavam o chão feito de madeira escura e as paredes cor de vinho. Um castiçal ostentava uma forma indistinta de cera derretida que um dia fora uma vela. Uma cama desfeita escondia-se por detrás de um tecido leve num vão aberto na parede oposta à porta, duas poltronas de couro escuro estavam à beira da lareira, e entre ela e uma das poltronas estava um pequeno balde de arames com algumas toras de madeira dentro para alimentar o fogo já apagado. Uma estante de duas portas e algumas gavetas na parte inferior trazia acima de si alguns livros e um jarro com flores murchas. Acima delas, a cabeça de um urso empalhado olhava friamente para ela enquanto fazia tudo, e ela detestou que um urso tivesse sido morto para adornar uma sala tão feia de aspecto tão melancólico. Humanos maus, nos tornamos

Sempre fora uma protetora incondicional dos animais, às vezes até esquecendo que os humanos também são meros animais. Tinha por melhor amigo um gato selvagem chamado Pudim, mas um dia ele estava roubando comida na casa da velha Dorotéia e a maldita velhinha expulsou o gato com um bom balde de água fervendo. Madeline viu quando Pudim se jogou pela janela tal qual a melhor imitação que um gato pode fazer de um macaco, mas a rajada o pegou e o acidente fez o pobre animal perder todo o pelo das costas e pata traseira esquerda – a qual foi irremediavelmente danificada na queda – e ele usou uma prótese de metal até o fim dos seus dias, aos quatro anos. A velha misteriosamente se estatelou no chão pelo esforço pra acertar o gato com a água quente, machucando a bacia. Madeline já aprendia feitiços básicos na época, e se negou o quanto pode a curar a vizinha que tentou matar o pobre Pudim. Por fim, seu pai conseguiu convencê-la a tratar da velha Dorotéia, não sendo tão ranzinza e cruel como ela. A velha depois disso passou até a alimentar o Pudim de vez em quando, e ele não roubava mais comida. Mas Madeline ainda culpou a pobre mulher pela morte do gato anos depois. Estava às vésperas dos treze anos quando ele morreu.

Depois de Pudim, conheceu Ralph, um jovem levado de catorze anos que conseguiu a prótese de Pudim na época. A amizade com Ralph foi mais conturbada que a com Pudim, tinha de admitir. Ele estava sempre tentando levar Madeline pra longe dos olhos das pessoas, até um dia que ela cedeu e, com toda a sua habilidade, Ralph convenceu-a a fechar os olhos, e os dois ficaram se beijando acocorados por trás do pé de qualquer coisa enquanto pessoas iam e vinham do outro lado – incluindo seu pai. Se fosse sincera, admitiria que só tinha começado a amizade com Ralph para atormentar o pai. Madeline sorriu travessa, dando outra mordida na maçã. Fazia só um dois anos, mas parecia bem mais tempo. Amadurecera muito nos últimos anos, especialmente depois que conhecera Lumin na nova escola. Ele não assistia ou praticava as artes de feitiçaria – poucos estudantes eram selecionados para tais aulas. Como filho de um pescador mercante, Lumin vinha de uma família mais humilde e sem dons mágicos em sua linhagem. O bisavô de Madeline, por sua vez, fora um feiticeiro de segunda ordem, e desde pequena ela já realizava pequenos truques que divertiam a todos nas festas de família, além de tocar piano e cantar muito bem. Interessara-se por Lumin quase instantaneamente, esperando ansiosamente pelo dia em que teria a chance de conhecê-lo. Infelizmente, o dia não foi tão feliz quanto ela desejara, mas hoje eram grandes amigos. Só amigos. Repetiu para si mesma. O futuro de ambos estava fadado a ser tortuoso, beirando o bizarro. Enfrentaram grandes dificuldades até então, mas aquilo havia sido só o começo. O mais difícil estava longe de chegar, e ainda assim iminente.



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Notas finais do capítulo

Apesar do atraso, eis o capítulo dois. Espero que tenha ficado legal (:



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