O Livro De Merlin escrita por Yuri Nascimento


Capítulo 1
Prólogo


Notas iniciais do capítulo

Na noite escura e chuvosa, Lumin, um jovem aprendiz, foge de criaturas sinistras a serviço do rei. Ele porta consigo um livro, um livro velho e de inestimável importância. Atados a essa fuga estão o destino do mundo e das milhões de vidas no Reino de Pedragória.



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Era noite feita, e as ruas escuras de pedras irregulares refletiam no chão ensopado as poucas luzes que saiam de algumas janelas das casas e estabelecimentos ruidosos, ignorando o correr das horas. Lumin arfava. A respiração era pesada e custosa, mas quanto mais se empenhava em correr, mais perto os Silenciosos pareciam estar. Apesar do nome, o ruído grotesco que faziam ao persegui-lo estava deixando-o ainda mais nervoso. Era como um gavião de três metros de comprimento de uma ponta da asa à outra, cortando o vento sobre um campo de trigo a uma velocidade arrasadora, acrescido de guinchados que pareciam vir de ratos irrequietos dentro de um balde de metal muito quente. Não pode ser verdade, não pode ser verdade, repetia para si mesmo enquanto fugia sob a chuva torrencial que caia em Porto da Baleia.

Tropeçou vez ou outra nas calçadas que se projetavam alto nas ruas apertadas. Esbarrou em um muro sujo, com pedaços de reboco se desprendendo e resquícios de cartazes manchados há muito colados, uma e outra vez, perfazendo seu trajeto tortuoso pelos becos fétidos de urina e comida podre dos restaurantes já fechados. Esquerda, direita, esquerda, esquerda outra vez. Passou por tabernas, estalagens, puteiros, um bêbado moribundo que praguejou alguma coisa deitado no canto da rua, arcos de pedra de todos os tamanhos que serviam de conexão entre as vielas superiores, escuras ruas arborizadas, com galhos e folhagens servindo de proteção contra a pesada chuva que caia. Pulou cercados e amuradas, correu por becos enlameados com suas falsas coberturas de madeira atravessadas bem lá no alto, com trepadeiras emaranhadas que projetavam sua sombra no chão a cada relâmpago.

Cada passo era mais difícil que o anterior. Vez ou outra olhava para trás, perturbado, suando muito sob toda a roupa encharcada da chuva. Seu manto de lã azul pesava, vestia um gibão de couro e por baixo uma túnica, com uma pequena bolsa e um punhal amarrados ao cinturão de couro. Seus longos cabelos negros encaracolados estavam grudados na face assustada, gotas d’água escorriam pelo seu rosto, descendo como uma cachoeira pelos seus cílios, nariz e queixo. Seus olhos azuis tremeluziam à luz dos archotes pelos quais passava como um raio. Portava consigo um livro, tão grande quanto espesso, tão espesso quanto velho. Trazia encrustado na capa símbolos em formas angulares em uma grossa capa marrom de couro velho, com quatro alças mantendo-o fechado. Protegia-o como podia da chuva, abraçava-o como se fosse a própria vida. Não irão tirá-lo de mim, cães da realeza.

Desceu um lance de escadas às pressas, esbarrando num casal que se esfregava calorosamente encostado à parede. O homem desajeitadamente puxou uma das mãos de dentro do vestido dela e tentou dar-lhe uma bofetada quando passou, pensando se tratar de um ladrão de rua. Errou por muito. Lumin desembocou numa rua estreita às margens de um canal, ainda correndo. Tinha uns quatro metros de largura, com muitas pontes ligando ao outro lado. Não tenho tempo, pensou, fazendo o caminho mais rápido. Num impulso só, jogou-se de encontro ao outro lado. Certamente cairia no canal, mas a adrenalina do momento parecia ter banido seu medo. “Solidificati”, sussurrou, e foi como se tivesse pulado sobre um degrau invisível. No momento em que caia, entre uma beirada e outra do canal, deu outro passo sobre o nada e ganhou novo impulso, chegando ao outro lado. Não teve tempo de ver o olhar incrédulo e bobo que o homem lhe conferiu antes que sumisse na próxima esquina na outra margem.

Continuou correndo até chegar a uma rua que beirava o cais, com casas de janelas altas e pedras irregulares por toda a sua extensão, de um lado, com diversos tipos de plantas decorativas encostadas ao canto das paredes, archotes com chamas fraquejando e dançando ao som da forte ventania, cachorros latindo ao longe e letreiros ilegíveis com aquela iluminação precária. A chuva continuava a cair forte, e pequenos barcos pesqueiros e cargueiros bamboleavam na água amarrados aos tocos de madeira fincados no chão entre as pedras. Tudo nessa cidade é duro como rocha. Entrou por uma passagem estreita entre duas casas que não tinha mais de um metro de largura. As casas tinham dois andares, que impossibilitava qualquer luz de entrar naquele buraco. Deu alguns passos e parou de repente.

– Sou eu. – disse imediatamente quando ouviu o som de algo elástico sendo tensionado a dois metros e meio de si, no fundo da passagem.

Ouviu o arco soar novamente, com as cordas afrouxando, depois passos na chuva. A pessoa que o esperava deu-lhe um abraço caloroso, terno.

– Pensei que não viesse mais, estive tão preocupada.

– Temos coisas mais urgentes a tratar. Eles estão no meu encalço, logo estarão aqui. Precisa ser rápida, vou continuar fugindo. – Olhava para ela tenso. Deu-lhe o livro, e ela escondeu sob seu manto. Tinha os olhos vermelhos, mas Lumin não podia saber se estava chorando ou não por causa da chuva escorrendo pelo seu rosto – vou sentir sua falta – disse, sorrindo e apertando uma das bochechas da garota.

– Eu também, Lumin. – sua voz era toda tristeza. Sabia que Lumin estaria em sérios apuros quando fosse embora, ele e todos os seus amigos. É por todos nós que faço isso, acreditem. – O que vai ser de você?

– Não sei. Mas também não importa, soube desde o começo onde estava me metendo. O importante é que temos o livro, e você vai leva-lo até Assunção, bem longe daqui!

Ela mordeu os lábios e contraiu o cenho como que em um protesto silencioso, olhou-o no fundo dos seus olhos azuis outra vez.

– Fique vivo – falou entre uma ordem e um pedido desesperado – Eu vou voltar, e vamos acabar com esse rato que se diz rei.

– Sim, agora vá. Confia em mim? – perguntou-lhe.

– Sim – respondeu obstinada a garota. Lumin deu-lhe passagem no estreito espaço de que dispunham, e trocaram de lugar. Agora ele chorava. Que bom que não pode perceber, pensou consigo, deixando escapar um sorriso. Segurou-a pelos ombros e beijou-lhe afetuosamente na testa, anuindo com a cabeça. Por um momento, tudo o que ouviram foram os trovões, a chuva quebrando sobre os telhados, descendo pelas calhas metálicas como um riacho e o som reconfortante das gotas pesadas que batiam contra a cartilagem de suas orelhas. Não tardou até que os latidos fossem ouvidos mais e mais perto, então souberam que os Silenciosos estavam próximos.

Ela disparou pelo lugar de onde ele veio, em direção à rua que beirava o cais. Seus pés de passos rápidos espirravam água das poças ao pisar. Só preciso seguir em frente, não olhe, disse a si mesma abraçada ao livro. Entretanto, não se conteve. Em sua trajetória reta até o mar, olhou para o lado bem quando os Silenciosos alcançaram aquela rua. Eles eram dois, vestiam mantos de veludo negro, com golas altas e detalhes em prata. Por baixo, uma cota de malha e uma espada longa na cintura. Pode ver que um deles tinha uma longa e emaranhada barba negra. Um elmo igualmente negro completava a vestimenta. Mas eles não eram mais aterrorizantes que as criaturas que montavam. Eram cães, com amarelos dentes projetados e pontudos, não poderia dizer se babavam ou era só a água da chuva. Tinham pernas fortes e tortas, a cabeça grande protegida por um elmo feito para eles. Tinham o tamanho de búfalos, chifres negros e um cheiro hediondo que a alcançou mesmo de longe. As patas eram grandes e de garras afiadas projetadas para fora. Sua calda era longa como a de um dragão, encerrada por uma ponta triangular. Chegou a quase parar, amedrontada, mas conseguiu combater o medo. As criaturas já se punham em movimento, bem como ela, mas aquelas eram definitivamente mais rápidas.

– Pare, seu porco ladrão! – gritou um dos Silenciosos – vou dar suas vísceras de comer ao meu Skarg! – a criatura grunhiu. O som que emanava dela era algo indefinido, quase gutural, entre o som de uma águia e um porco. Ótimo, acham que sou o Lumin, ela pensou, aliviada.

Eles dispararam contra a garota. Estava encurralada, nunca conseguiria escapar deles agora. Os Silenciosos já sorriam por baixo dos elmos, achando que a capturariam, quando ela subitamente jogou-se ao mar. “Portai”, murmurou Lumin, ainda escondido, no exato momento em que ela colidiria contra a maré violenta. Um clarão cegou-os por um breve instante, pensaram se tratar de outro relâmpago. Seus perseguidores pararam absortos à beira do cais, com os olhos esbugalhados para baixo, para o mar. Não tinha nada lá.

– Impossível! – desabou um deles – onde ele está? – olhava para baixo com sofreguidão, os olhos indo e voltando, frenéticos, à procura do alvo.

– Procure, ele não pode ter sumido – respondeu o barbudo, irritado.

Procuraram lá e cá, caminhando pela beirada do paredão, mas nada encontraram. O maldito não pode ter tanto fôlego assim! Uma lesma atravessou a rua antes que o desespero e a aceitação os consumissem.

– Que diremos ao Corin? – perguntou o outro ao barbudo.

– Que há para dizer, moleque? O vadio leu o livro e aprendeu a sumir no meio do oceano! – bravejou o barbudo contra o outro. – ah, Estevam. Maldito seja esse ladrãozinho! Mil vezes maldito.

O mar quebrava imponente e espumante contra o quebramar um pouco distante dali, mar adentro. Silenciaram, contemplando a imensidão, violenta e impiedosa, e o céu em tons de violeta e nuvens cinza que chorava copiosamente há três dias seguidos. Inclinou a cabeça para trás, deixando a chuva escorrer pela viseira do elmo. Uma das criaturas fungou e olhou para a outra, que repetiu o gesto e olhou para a rua de onde a garota saíra, girando sobre as patas traseiras.

– Petrus – o que se chamava Estevam apontou com a cabeça a rua de onde sua presa saíra. Em silêncio, desceram das montarias e andaram até ela. Estavam a meio caminho do estreito beco onde Lumin se escondia. Estou perdido, pensou ele, tentando imaginar possíveis meios de sobreviver aos próximos instantes, consumido pelo pânico crescente. Para cada splish que as pesadas botas dos dois homens fazia no chão, o coração dele batia três vezes, e ele temia que alto demais. De repente, um grande gato negro pulou por cima de Lumin, que teve dificuldade em silenciar o sobressalto, e disparou beco afora, fazendo com que os grandes Skargs grunhissem esfomeados antes que os Silenciosos os chutassem as costelas como punição. O gato correu assustado e pulou uma mureta, subiu uma varanda e foi se proteger da chuva e dos Skargs no primeiro andar de um casebre lá longe.

– Não passam de cães mesmo! – gritou o barbudo chamado Petrus. – Vamos, Estevam. Não há tempo a perder, e eu quero sair debaixo dessa chuva maldita. Vou acabar resfriado.

Os homens montaram outra vez suas diabólicas criaturas sisudas e sumiram na escura, melancólica e chuvosa noite de Porto da Baleia.

...

Marina e Luan levantaram preguiçosamente das suas camas. E não quero embromação lembrou-lhes a mãe rapidamente entreabrindo a porta do quarto enquanto passava pelo corredor, apressada. Tinham 12 e 14 anos, respectivamente, mas, como a casa não tinha outro cômodo disponível, dividiam o mesmo quarto apesar dos atritos. Luan levantou não muito depois do despertador começar a tocar a detestável melodia que Marina escolhera – alternavam qual música tocaria durante a semana –. Desligá-lo foi um ato de prazer que ele executou carrancudo. Não dividiam o celular, ao menos isso, pensava, porém não fazia sentido dois despertadores, e precisavam ser diplomáticos. Correu o pé para dentro das sandálias e andou arrastando-os para fora do quarto enquanto a irmã sentava na cama iniciando seu ritual de acordar. Era assim todas as manhãs: Marina sentava, ainda enrolada com os cobertores (embora o clima naquela cidade já fosse quente demais), e lá ficava por uns quinze minutos antes que seu devaneio acabasse ou sua mãe o destruísse, muito embora Luan tivesse sérias dúvidas sobre a possibilidade de alguma atividade acontecer na cabeça da irmã.

– Volte e forre a sua cama – disparou sua mãe no corredor, agora no sentido contrário, trazendo um grande cesto de roupas vazio.

Ao entrar no quarto com seus passos dementes, quase tropeçou em Darth. Ele roçou na perna de Luan do lado esquerdo do nariz até a orelha, depois a barriga e a longa cauda. Era sua tática matinal, e às vezes Luan dava-lhe cinco minutos de carinhos antes que ele fugisse, sugerindo que o tempo de brincar tinha acabado e agora era hora de ter sua comida na tigela. Hoje não funcionou, e Luan se limitou a ir forrar sua cama. Darth pulou nas pernas cruzadas de Marina sobre os cobertores. Adorava subir em camas, aprendera a passar noites fora e dormir na cama das crianças de dia, enquanto essas estavam ausentes. Gostava mais ainda porque sua ração ficava muitas vezes em saquinhos acima de uma das duas prateleiras, e isso determinava em qual cama o bichano ia dormir à tarde. Certa noite, ao voltar do curso de inglês, Marina encontrou sua cama cheia de ração para gatos e o saco rasgado. O acusado tinha se evadido do local. Luan deliciou-se com a cena, e deixou-a tão irritada que a garota ruiu em lágrimas. Isso lhe rendeu uma boa diversão, até a mãe dar-lhe um tabefe por trás da orelha. Dai ele não riu mais.

– O papai não vai levar a gente hoje? – perguntou a mais nova à mesa. Sua voz beirava a doçura, preguiçosa e sonolenta de manhã cedo, mas depois das dez a coisa mudava de figura. Luan bem sabia.

– Não. Seu pai precisou sair mais cedo hoje – respondeu a mãe. – coma logo pra não perder o ônibus das sete e meia.

Lívia, como se chamava a mãe deles, era uma bela mulher no auge dos seus trinta e quatro anos. Era ríspida quando precisava ser, e os dois pequenos tinham sido a prova de fogo para ela. Não tinha cerimônias e não falava mais de uma vez. Às vezes falava, com uma sandália na mão, e isso era todo incentivo de que Marina e Luan precisavam. Tinha longos cabelos ora ruivos ora castanhos ondulados caindo pelos ombros pálidos como a neve, salpicados de sardas, e os olhos eram cor de mel, encantadores, e Marina não negava a mãe que tinha. Apesar da disciplina que impunha aos seus filhos, estes não podiam se queixar da falta de abraços, beijos, elogios, e toda forma de demonstração afetuosa que pudesse vir da mãe. Tinham até demais, Luan costumava dizer quando era tratado como um bebezinho na frente dos amigos. Estes adoravam sua mãe, e isso o deixava fulo. Evitava o quanto podia chamá-los à sua casa para fazer trabalhos, mas quando sua mãe aparecia na escola pra buscá-lo sempre tinha um engraçadinho que, de alguma forma, sugeria um almoço na casa do Luan. Sua mãe aderia à ideia de bom grado.

Despediram-se da mãe com um longo abraço. Ela endireitou a gola dos dois, pôs o lanche nas bolsas, conferiu a limpeza dos dentes e das orelhas – Precisa aprender a tomar banho, Luan, reclamou –, passou a mão pelo cabelo do filho e os mandou embora com um beijo.

– Amo vocês, seus pestinhas. Seu pai vai lhes buscar na hora do almoço, esperem na escola. Mantenham os celulares ligados caso eu precise falar com vocês.

Apesar do calor que fazia desde cedo, o trajeto até a parada de ônibus era bastante agradável e arborizado. As crianças desciam dois lances de escada e saiam do duplex onde moravam, pegando a calçada pelo lado direito até dois quarteirões depois, onde dobravam à direita outra vez para pegar a condução. Uma das casas do segundo quarteirão era a do Seu Juca, o padeiro, com sua padaria no andar de baixo, e, por consequência, sua linda filha Cássia, de quinze anos. Apesar da irmã ao lado, Luan adorava quando, às vezes, encontrava casualmente com Cássia saindo de casa no mesmo horário. Pegava ônibus com ela, e ia todo o caminho ouvindo sua doce voz e sentindo o seu doce cheiro até a escola. Mas hoje andava apressado, e uma ruga irritadiça era visível entre as suas sobrancelhas. Marina não deixou o detalhe passar despercebido.

– Está correndo demais, pode não encontrar com ela. – disse com um disfarçado sorriso zombeteiro.

– Cala a boca, Marina. – respondeu rudemente à irmã. Hoje não, sua irritante!

– Eu vi – disse ela, enfatizando musicalmente o “vi” – quando ela passou por você ontem de braços dados com aquele moreno grandão do primeiro ano, toda sorridente, e você ficou rosa. Ela deliciava-se provocando o irmão.

– Não viu nada, e é melhor parar de me importunar, ou eu vou contar pra suas amigas coisas que vão fazer você querer enfiar a cabeça debaixo da terra! – Luan estava impaciente, e desejava que aquilo encerrasse a discussão. Só não queria passar pela frente da casa de Cássia e encontra-la saindo enquanto discutia com a sua irmãzinha sobre ela.

O primeiro quarteirão era todo um bosque, e Luan gostava de brincar lá quando era pequeno, até o dia em que se perdeu. Tinha ainda nove anos, e nunca mais voltou a entrar lá. Marina já ia se preparando para dizer mais alguma coisa antes de atravessarem para o segundo quarteirão, quando ele ouviu um estalido e depois o som de folhas secas quebrando e remexendo.

– Ouviu isso? – ele perguntou.

– Isso o quê? – perguntou de volta a irmã. – não ouvi nada. Vamos andando... Vamos nos atrasar – na verdade ela queria passar na frente da casa de Cássia, e, quem sabe, de sorte ela estaria saindo também para a escola.

– Espera, eu vou ver o que pode ter sido. – Luan dobrou à direita, de frente para o sol, e caminhou um pouco olhando para dentro do bosque, tentando avistar algo. Estava mais escuro lá dentro, e ele viu luzes dançando por um instante, criando fantasmas no orvalho da manhã.

– Luan, volta aqui! – falou Marina um pouco alto para o irmão, que já se afastava dela. – Vamos nos atrasar para a escola, e eu vou ligar pra mamãe dizendo o porquê.

Luan não lhe deu ouvidos, pulou o pequeno cercado de madeira e pisou o chão úmido, atapetado com folhas mortas e frutas caídas. Jambo. Um gato cujas cores não pode distinguir correu entre as árvores aleatoriamente dispostas, sumindo pelo escuro interior trespassado por raros raios de sol que venciam a dança de folhas para tocar o chão do pequeno bosque. Vieram à mente seus dias de criança, quando entrava no bosque todo aventureiro. O escuro lhe causava certa apreensão agora, uma insegurança. Não sou mais tão inocente, percebeu. Ensaiou dois passos tímidos, depois três, espremendo os olhos na tentativa de ver melhor, e o som dos poucos carros passando ficou mais distante por detrás das quatro fileiras de árvores pelas quais avançara, bem como a voz da irmã, que já o perdia de vista. Tocou os troncos finos e frios por onde tantas vezes encostara para contar até cem, ou sentara para ler algum livro e quem sabe até fazer uma traquinagem. Lembrou-se de quando deu o primeiro beijo em Cecília, encostado em uma daquelas árvores, escondidos. Tinha apenas nove anos. Que coisa estranha, por que eu tô lembrando isso agora? Expirou um sorriso, o bosque continuava o mesmo por dentro. Escuro, com milhares de figuras não maiores que uma mão desenhadas no chão pela luz do sol. Musgo e fungos pintavam os troncos de verde e branco, e pássaros ainda cantavam naquele pedacinho de floresta que era o interior do bosque, calmo e isolado. Folhas se agitaram à esquerda dele, e houve um sobressalto antes dele olhar para o caminho de onde viera, já pronto a retornar. Voltou o rosto, assustado, para ver quem era.

– Tem alguém aí? – perguntou. O silêncio foi a resposta.

Começou a andar de ré por onde veio, um passo de cada vez, silencioso, quando viu um vulto correndo entre as árvores diante de si. Girou nos calcanhares e correu o mais rápido que pode para fora do bosque. O vulto também corria ao redor dele sem que ele conseguisse ver o que era. Demorou até perceber que já correra demais, e a essa altura já deveria estar fora do bosque. Um pânico o acometeu subitamente. Arregalou os olhos, ouvindo as folhas no chão agitadas ao seu redor, continuava correndo, até que... bang! Esbarrou com ele. Estivera prestes a gritar, o medo da criança de nove anos tomou conta dele outra vez depois de tantos anos, temendo nunca mais voltar para casa, ver seus pais, seus amigos ou sua irmã. Temendo não ver mais Cássia... Pensar nela doía-lhe o âmago, mas era inevitável. Curiosamente seus medos se desfizeram quando contemplou seu perseguidor: uma garota esguia e ensopada carregando o livro mais velho que ele já vira, e parecia ter saído de um filme do Indiana Jones.

O sol o cegou por um momento. Queria muito ver quem ela era, e por isso esforçou-se para abrir os olhos, porém esforçou-se tanto que... abriu os olhos. O teto branco do seu quarto lhe sorria branco como era todo dia. Olhou para o lado, e Marina estava sentada com seus lençóis, Darth no seu colo. O cheiro de torradas inundava o ar. O café estava pronto.



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Notas finais do capítulo

Essa história ainda não está terminada. Na verdade, esse é o único capítulo pronto até então. Pretendo postar capítulos novos uma vez por semana. Comentários são muito bem vindos.