Death Note: Ressurreição escrita por Goldfield


Capítulo 20
Capítulo XX: Subsolo




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Crise no sistema democrático

Onde está a justiça?

Crise no sistema democrático

Onde está a justiça?

 

Assassinos à solta depois de julgados

Quem punirá seus crimes?

Assassinos à solta depois de julgados

Quem punirá seus crimes?

 

Hey, hey, francesinha

Seja o juiz, seja o Kira!

Hey, hey, francesinha

Seja o juiz, seja o Kira!

 

Porque em terra de justiça cega

Quem tem um caderno é rei!

Porque em terra de justiça cega

Quem tem um caderno é rei!

 

Hey, hey, francesinha

Seja o juiz, seja o Kira!

 

- - - - - - - -


Capítulo XX

 

“Subsolo”

 

Madrugada de sábado.

Cansados e entediados – alguns sonolentos e até já dormindo – os integrantes da equipe de investigação do Caso Kira prosseguiam em sua incômoda vigília diante dos notebooks ligados em meio à suíte escura. Reviam dados, listas, comparavam fotos e arquivos de vídeo... E, a cada segundo transcorrido, Justine Clare só parecia mais culpada. Se ao menos pudessem agir logo, detê-la antes que causasse mais mortes e complicasse ainda mais os trabalhos dos policiais...

Foi quando, completamente de súbito, um laptop até então desligado foi ativado de forma automática, o monitor exibindo de imediato a tela branca contendo o logotipo de “R”. O computador pertencia ao agente Adams, que, apesar de estar ausente, por algum motivo o deixara ali. O mesmo se tornou claro assim que os alto-falantes da máquina veicularam a voz distorcida do líder da investigação pelos cômodos do quarto:

–         Todos vocês deveriam estar acordados.

A reprimenda fez com que os membros do time que não dormiam se apressassem em despertar aqueles que o faziam. Entre bocejos e resmungos, todos logo estavam conscientes e, apesar de ainda confusos em relação à situação, atentos às palavras de “R”:

–         Chegou o momento de agirmos. Clare mordeu a isca.

A afirmação deixou os investigadores surpresos, murmurando entre si expressões aliviadas de contentamento e sorrisos brotando em suas faces exaustas. Alguns até se perguntavam se não estariam ainda dormindo e tendo um sonho bom. Souza indagou:

–         Como foi isso?

–         Aconteceu conforme eu previ: Henri comunicou a Justine nossas intenções e ela neste exato momento se encontra em fuga. Devemos nos movimentar imediatamente. Entrei em contato com o inspetor Junot e a Polícia Nacional Francesa nos auxiliará. Destacamentos inteiros da DCPJ e da Gendarmerie Nationale estão a postos. Paris inteira se tornou nossa área de ação, meus caros, e temos à nossa disposição todos os recursos dos quais necessitamos.

–         Quais são nossas instruções? – inquiriu Rivera.

–         Dois furgões aguardam vocês na frente do hotel. Vocês serão divididos em número proporcional entre os veículos e cada um deles seguirá para um determinado local da cidade. O mesmo somente será revelado a vocês quando já estiverem a bordo. Posso adiantar apenas que ambos os lugares são de vital importância para o andamento de nossa caçada.

–         Então é mesmo uma caçada humana, hem? – ironizou Dennegan.

–         Eu não usaria propriamente o termo “humano” – salientou “R”. – A pessoa que procuramos possui o poder de um Shinigami e assim habilidades que um indivíduo comum jamais teria. Justine pode matar qualquer um de nós tendo em mente nossos rostos e escrevendo nossos nomes verdadeiros no Death Note, então todo cuidado é pouco. Vocês encontrarão nos furgões capacetes especiais que ocultarão por completo suas faces, sem, no entanto, prejudicar-lhes a visão. Certifiquem-se também que estão carregando seus distintivos falsos e permaneçam atentos a qualquer situação que poderia trazer à tona suas reais identidades. Qualquer deslize poderá ser fatal, e espero que todos vocês estejam aptos a zelarem por sua própria segurança.

O grupo assentiu com a cabeça e, diante da repentina desativação do notebook, colocou-se imediatamente a se mexer.

 

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Justine avançava pelas ruas, madrugada adentro. E as ruas de Paris nunca haviam lhe parecido tão estranhas.

Com a mochila às costas, tentando manter uma firmeza de espírito que lhe escapava pelos dedos trêmulos de sua alma, a jovem nunca se sentira tão vigiada. Era como se as janelas e portas dos sobrados e prédios fossem olhos que a espreitavam incessantemente, a ponto de a qualquer momento soltarem um berro delatando a localização da fugitiva. Mas não poderia correr, nem mesmo acelerar o passo. Isso a tornaria ainda mais suspeita diante daquela força espectadora invisível que parecia estar a ponto de engoli-la.

Tinha de continuar andando, vencer seus temores. Fechou os olhos.

Privar-se da visão durante alguns instantes ajudou-a a retomar sua coragem. Ao menos os fantasmas contidos nas fachadas das construções pareceram desaparecer temporariamente. Com a mente mais tranqüila, pôde revisitar seu plano. Tinha de desaparecer das ruas, das vias movimentadas, tantos lugares onde acabaria sendo vista... Tinha de desaparecer da superfície.

E Justine já sabia para onde, especificamente, deveria se dirigir...

 

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Dois furgões pretos realmente aguardavam os investigadores na frente do hotel. Mal estes se aproximaram dos veículos, o motorista de cada um – ambos trajando veste tática negra e tendo os semblantes ocultos por capacetes da mesma cor, aqueles aos quais “R” se referira – deixou-o para recepcionar os novos ocupantes. O grupo, atônito, ouviu as instruções fornecidas por um dos misteriosos guias:

–         Vocês serão divididos. Krammer, Matsuda, Hoshi, Yahudain e Souza embarcarão no primeiro carro. Rivera, Boruanda, Ackerman e Dennegan no segundo. Os capacetes que protegerão suas identidades se encontram em cima dos assentos das vans. O destino de cada equipe será revelado quando já estivermos rodando. Alguma pergunta?

–         “R” está diretamente envolvido nesta operação? – desejou saber Eliza. – Quero dizer... Ele está em Paris?

–         No momento apropriado, “R” irá ao encontro de vocês, em pessoa – revelou o outro motorista.

E, na fala deste, Matsuda percebeu, além de forte sotaque japonês, uma voz estranhamente familiar...

Sem demais questões por parte dos policiais, todos eles adentraram os furgões, encontrando os capacetes sobre os bancos conforme haviam sido instruídos. Enquanto alguns os colocaram de imediato, outros optaram por carregá-los no colo temporariamente. Os guias deram partida nos veículos, e houve um intervalo de três ou quatro minutos entre a saída do primeiro e a do segundo. Deixando o largo do Arco do Triunfo, os carros assumiram de início uma trajetória confusa, quase em ziguezague e passando repetidas vezes pelas mesmas vias, como para despistar algum eventual perseguidor – que felizmente parecia não existir. Só algum tempo depois tomaram rota precisa e, de acordo com o prometido, cada um dos motoristas estendeu para os ocupantes atrás de si uma folha de papel. Ela continha o endereço para qual cada van rumava.

Ambos os destinos estavam localizados no bairro de Montparnasse. Eram, no entanto, lugares diferentes.

 

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Justine Clare seguia andando, sentindo frio, fome e medo. Dentre os três, era o último o qual sua mente mais combatia.

O Boulevard Auguste Blanqui parecia completamente vazio. Ou seria melhor dizer sobrenaturalmente vazio? Apesar da hora, dificilmente uma via como aquela ficava com uma total ausência de pessoas ou veículos. Haveria ainda algum tipo de força incomum auxiliando a jovem em seu infortúnio? Teriam os Shinigamis voltado atrás em sua decisão de abandoná-la?

Ignorando a resposta, Justine seguia andando. Procurava andar além de tudo que já passara, e pensar ainda em seu triunfo.

Consultou brevemente o relógio de bolso. Faltavam poucas horas para o amanhecer, mas felizmente já se encontrava próxima de seu destino. O largo desenhou-se logo à frente, uma confluência de várias avenidas, iluminado por lúgubres lâmpadas amarelas. Denfert-Rochereau. Continuava a não ver ninguém nas redondezas. Ótimo. Ser discreta acabaria algo mais fácil do que imaginara.

Chegou mais perto. A pequena construção era discreta e singela, os turistas geralmente não associando tal simplicidade à entrada do local ao qual fornecia acesso, característica que quase sempre os enchia de surpresa. Porém por certo não faria sentido haver um prédio suntuoso na superfície, já que a verdadeira atração, no caso, estava localizada embaixo da terra...

Clare avançou. A porta negra que recepcionava os visitantes estava misteriosamente aberta. Tal fato não poderia de modo algum ser natural, pois a estudante sabia que aquele lugar permanecia fechado à noite, considerando as complicações que decorreriam caso usuários de drogas ou casais de namorados resolvessem fazer um tour pelos túneis depois da meia-noite. Havia, definitivamente, alguma força externa intervindo ali. Justine, todavia, evitou pensar muito a respeito. Aquilo simplesmente a favorecera. Era suficiente.

Prosseguiu. O funcionário que vendia bilhetes durante o dia não se encontrava em seu guichê – como era de se esperar. A morte como atração turística, que irônico... E o passeio da moça seria gratuito. À frente, o caminho se tornava escuro. Justine colocou sua mochila no chão, abriu-a e apanhou sua lanterna, acendendo-a na direção do breu. A luz estripou-o parcialmente. Luz nas densas sombras... Atenta ao trajeto, continuou, encontrando uma longa escada em espiral rumo ao subsolo. Começou a descer, tomando cuidado com os degraus.

Logo depois existia algo como uma pequena galeria, repleta de fotografias e desenhos. Mais material para os curiosos. Após uma rápida vistoria sob o facho da lanterna, Clare ignorou tudo e dirigiu-se à próxima passagem. A passos rápidos e cautelosos, ganhou o início de uma rede de túneis que logo terminou numa espécie de câmara. Quase por instinto, a órfã direcionou o foco luminoso para o alto, acima da entrada para mais uma cripta... tornando nítida uma inscrição em letras negras sobre um rochoso fundo marrom, bem próxima ao teto. O conteúdo do breve texto fez a recém-chegada estremecer de leve:

 

Arrête! C’est ici l’empire de la mort

 

Traduzindo-se: “Pare! Este é o império da morte”.

Império o qual receberia, agora, uma de suas maiores representantes...

Sem titubear, Justine prosseguiu, adentrando as catacumbas.

 

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O segundo furgão a deixar o Hôtel Splendid Etoile chegou a seu endereço de destino em Montparnasse após bons minutos de trajeto. O motorista não-identificado estacionou a van diante de um pequeno prédio de apartamentos, saindo logo em seguida. Os demais ocupantes também o fizeram, semblantes devidamente protegidos pelos capacetes. Estes não atrapalhavam em nada a visão de seus usuários, mesmo no escuro – assim como “R” dissera. Vendo todos os investigadores já de pé na calçada, o guia apontou para o edifício e explicou:

–         Vocês devem subir até o apartamento onze, no terceiro andar. Eu os aguardarei aqui embaixo.

–         Há alguém nos esperando lá em cima? – questionou Izabela.

–         Sim – a resposta do misterioso homem foi sucinta e seca.

Sem delongas, os quatro policiais seguiram as instruções.

O prédio não possuía elevador, e assim os recém-chegados tiveram de usar as escadas. Durante a subida, Dennegan se manifestou:

–         “R” não devia ter deixado os dois “japas” juntos na outra equipe, não confio nem um pouco neles...

–         Nós já estamos cansados de saber disso, Mark – Boruanda replicou incomodado.

Chegaram ao terceiro andar, avançando por um corredor contendo as portas de diversos apartamentos. Instantes depois se detiveram na frente da entrada do número onze, e um som abafado, logo identificado como o choro de uma mulher, prenunciou o que encontrariam ao entrarem. Tomando a frente dos colegas, intimidados pelo suposto pranto, Ackerman bateu à porta duas vezes. Um homem sem capacete, de terno e distintivo, mascando chiclete, abriu-a e recebeu-os:

–         Que bom que chegaram – afirmou, estendendo uma mão para Günter. – Sou o inspetor Charles Junot, “R” deve ter falado de mim a vocês.

–         Ele falou! – Rivera parecia impaciente. – Este é o apartamento de Henri Aiton, presumo. O que houve?

–         Entrem e vejam por si mesmos.

Junot afastou-se da porta, abrindo caminho aos demais. Eles ganharam a sala de estar da residência com certo receio, confirmando o que haviam imaginado: uma mulher de pouco mais de quarenta anos, cabelo curto e trajando camisola, chorava copiosamente sentada sobre um sofá, amparada por um homem um tanto calvo e de bigode, por certo seu marido. Próximos a eles, andando em círculos pelo recinto, havia três agentes da DCPJ, a famosa Direction Centrale de la Police Judiciaire, elite de investigadores da polícia francesa. Em vários pontos do cômodo, como mesinhas e paredes, via-se porta-retratos contendo fotos da família: a senhora ali presente, seu esposo... e um sempre sorridente Henri.

–         Por aqui! – Junot apontou para um pequeno corredor que levava ao banheiro e aos quartos.

Com os corações pesados e os soluços da mãe do rapaz ecoando forte em suas mentes, os quatro comandados de “R” seguiram na direção indicada.

Dentre as portas ali existentes, apenas uma estava aberta, uma sombra ameaçadora pendendo para fora.

Conduzidos por Junot, eles continuaram, e então viram...

Presa ao topo do portal da entrada do quarto, amarrada a um suporte destinado a uma lâmpada, havia uma grossa corda... E, numa forca cujo nó aparentava ter sido feito às pressas – em meio a grande desespero – inseria-se o pescoço agora partido de Henri Aiton. A expressão em seu rosto congelara-se num misto de pânico, ansiedade e frustração, os olhos bem abertos e os lábios levemente torcidos complementando aquela imagem terrível de ser fitada. Seus pés pendiam a uma pequena altura do chão, um deles coberto por um tênis e o outro contendo somente a meia, o calçado jogado sobre o piso: provavelmente havia caído durante os espasmos finais do corpo.

–         É, parece que “R” mandou a pessoa errada para a forca... – murmurou Dennegan num comentário totalmente inapropriado.

–         “R” sabia que a vida de Henri corria sério risco... – afirmou Ackerman olhando para o chão, punhos fechados, tendo os pensamentos assolados por um lampejo de arrependimento. – Ele realmente usou o garoto sabendo que existiam grandes chances de ele ser morto por Justine. Certamente viu-o apenas como um instrumento, uma mera isca para que a suspeita se incriminasse ainda mais. Como acabou ocorrendo...

–         Isto é desumano! – protestou Scott.

–         Na luta contra Kira, todos nós estamos perdendo nossa humanidade... – observou Mark. – Para mim, “R” e Kira são idênticos. Indivíduos dispostos a tudo para alcançarem seus obscuros objetivos. Eles apenas estão de lados diferentes.

Nisso, Junot retirou uma folha de papel amassada de seu terno, entregando-a ao grupo enquanto dizia:

–         Henri escreveu esta nota antes do suicídio. Ele acusa a equipe de investigações por seu fim, afirmando que vocês destruíram tanto a vida dele quanto a de Justine.

–         Maldita cínica! – praguejou Rivera.

–         Nós iremos pegá-la em breve... – murmurou Günter. – Após tantas táticas questionáveis, eu ao menos anseio por isso!

–         Fico imaginando o que o pessoal da outra van deve ter encontrado... – falou Dennegan, retornando até a sala de estar com as mãos nos bolsos.

 

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Death Note – Histórico:

 

Vigiando a rotina diária de Teru Mikami, a equipe de Near descobre uma academia sempre freqüentada pelo aliado de Raito. Aproveitando-se dessa brecha, o detetive consegue trocar o Death Note verdadeiro, utilizado por Mikami, por um falso. É o passo final para o desfecho do caso.

 

Um encontro entre Near e Raito, junto com sua equipe de investigação da polícia japonesa, é arranjado num galpão abandonado. Raito deixa Mikami preparado para intervir de surpresa e aniquilar Near. Este desmascara Raito como Kira, e quando Mikami, ciente do real nome do detetive, tenta utilizar o Death Note... o caderno não funciona. Near revela que o verdadeiro está em sua posse.

 

Mikami, frustrado por ter falhado para com seu “deus”, suicida-se. Totalmente acuado, Raito se expõe em meio a um ataque histérico. Tenta ainda eliminar os presentes utilizando fragmentos do Death Note que guardara consigo, mas é impedido por Touta Matsuda, o qual, imensamente frustrado por ter depositado sua confiança no rapaz, desfere vários tiros contra sua pessoa.

 

Raito foge; Near diz que não será preciso persegui-lo. Sangrando, humilhado, Kira se arrasta pelas cercanias... Somente para ser morto pelo próprio Ryukuu, Shinigami que lhe concedera o Death Note.

 

- - - - - - - -

 

A primeira van chegou a seu destino.

O sobrado diante do qual parou parecia ser um lar pacato e, caso os investigadores já não soubessem das circunstâncias relacionadas ao local, dificilmente diriam que possuía qualquer vínculo a Kira. O motorista misterioso saiu, acompanhado pelos policiais, todos protegidos pelos capacetes. Enquanto olhavam ao redor, realizando um reconhecimento preliminar da vizinhança, notaram que o guia subitamente ergueu um dos braços, num aparente sinal pré-determinado, fazendo com que vultos humanos surgissem de forma abrupta, porém cautelosa e ordenada, das sombras junto às construções e vielas próximas. Conforme se aproximaram, iluminados pelos postes da rua, seus contornos foram melhor delineados e revelaram-se como homens usando completos trajes táticos, incluindo coletes à prova de balas, capacetes similares aos dos recém-chegados, escudos e armas pesadas, entre as quais metralhadoras e escopetas, sem contar as granadas, por certo de gás lacrimogêneo, presas às suas cinturas.

–         Um esquadrão da Gendarmerie Nationale nos auxiliará – explicou o indivíduo que dirigira o furgão até ali. – Afinal, esta é a casa de Justine Clare.

Os cinco comandados de “R” estremeceram diante da afirmação. Nem sequer pensaram em voltar atrás, entretanto. O motorista tornou a falar:

–         O esquadrão penetrará primeiro na residência. Caso esteja limpa, vocês também poderão entrar sem problemas.

Todos assentiram, neles crescendo uma estranha ansiedade em relação ao que estaria para acontecer. Dois soldados tomaram a frente de seus colegas e, vencendo a pequena escada diante da porta de entrada do sobrado, posicionaram-se diante dela. Um deles, baixando o escudo e com sua FAMAS pronta para ser usada, colocou-se de modo estratégico à direita da porta, num ponto em que não poderia ser alvejado por eventuais disparos que viessem do interior da morada, enquanto o outro, em postura defensiva em frente à entrada, estendia um dos punhos para dar duas rápidas batidas sobre a madeira.

Passou-se um, dois minutos, e nenhuma resposta. O combatente de choque deu mais duas batidas, esperando novamente. Nada. Trocou então breve olhar com seu companheiro, fazendo um rápido e indecifrável sinal com uma das mãos.

Logo em seguida, o policial que permanecera no flanco da porta chutou-a fortemente, arrombando-a de imediato num estrondo e por pouco não a arrancando de suas dobradiças. Os dois homens trocaram mais alguns sinais e entraram na casa, mais três ou quatro deles também prosseguindo logo atrás. As lanternas na ponta das armas foram acesas, aqueles do lado de fora vendo apenas seus fachos inquietos percorrendo o térreo da construção. Caminho livre. Agora só teriam de verificar se o ambiente era ou não hostil.

 

O velho François possuía um sono sem dúvida pesado. Mas tal condição não se mostrou suficiente para que ele deixasse de ouvir o alto som causado pelo arrombamento da porta no andar de baixo. Despertando num sobressalto, olhou aturdido em volta, buscando a origem do barulho, porém logo seu cérebro a localizou escadas abaixo. Acionou um pequeno interruptor próximo à cama para acender a luz, calçou rapidamente os chinelos e, aturdido, deixou seu velho quarto, dirigindo-se até o térreo.

Sua primeira preocupação foi a neta. Avançando pelo corredor, girou a maçaneta da porta do quarto desta. Trancada. Justine então, por certo, ainda dormia e se encontrava em segurança. Menos mal. Ele teria apenas de descer e averiguar o que ocorria. Torcia para não serem ladrões, ainda mais naquela vizinhança que sempre fora tão tranqüila...

Ao percorrer os primeiros degraus da escada, ele viu.

Os rastros de luz pareciam provir de lanternas, e eram fortes, ofuscantes. Projetavam-se sobre todos os cômodos do térreo da casa, vilipendiando lembranças, violando privacidade. E, quando o jogo de claridade iluminou os invasores, permitindo que seus aspectos fossem observados, a mente de François sofreu violento déjà vu: eram soldados portando escudos, capacetes e armas, agentes da força bruta, do desentendimento... Agentes da repressão.

Assim como em maio de 68.

O idoso viu-se à beira de um surto. Aqueles fantasmas de seu passado, aquelas figuras que o atormentaram por anos, destruindo seus sonhos, massacrando seus ideais, haviam retornado. Pior: invadindo o aconchego e a segurança de seu lar. Justo o local em que pensara estar eternamente protegido daquele tipo de violência. O lugar que escolhera para viver em paz com a neta.

Foi no exato instante em que um dos intrusos iluminou seu rosto com a lanterna acoplada à metralhadora, que François, atordoado, acabou reagindo.

Num impulso impensado, dentes cerrados, o idoso agarrou o cano da arma, tentando arrancá-la das mãos de seu inimigo, que se encontrava poucos degraus abaixo. Este, um jovem atirador, assustou-se e mal soube de que forma reagir. Não esperava de forma alguma um ataque assim, ainda mais de alguém com idade para ser seu avô.

Desesperado, acabou pressionando o gatilho...

As balas, num clarão, foram disparadas em arco, devido ao fato de François ainda ter o cano em mãos quando a arma foi acionada. Os projéteis, cinco ou seis – já que a metralhadora se encontrava em modo automático – atingiram a área a partir de seu ombro esquerdo... até o peito. Com a boca aberta numa expressão que misturava tristeza e incredulidade, sem ar, as mãos trêmulas do idoso soltaram a arma, seus olhos girando... E, com veios intensos de sangue surgindo sob a velha camisa que usava para dormir, o avô de Justine Clare tombou de costas em cima da escada, agonizante.

Do lado de fora, os cinco enviados de “R” ouviram os tiros.

–         O que foi isso? – exclamou Matsuda.

–         Alguma hostilidade, pelo visto... – murmurou Yahudain.

Ignorando o que os colegas fariam ou não a respeito, Touta correu para dentro da casa. Acabou seguido pouco depois pelos outros.

Sobre os degraus da escada, François dava seus últimos suspiros, respirando com dificuldade cada vez maior. O soldado autor dos disparos continuava encarando-o, imóvel, sem ação. Foi com essa triste cena que os recém-chegados se depararam, assim como os demais policiais no interior da residência, que nesse momento confluíram para a sala de estar.

–         É o avô da suspeita – Krammer identificou de imediato o idoso sob os fachos das lanternas, sua voz levemente abafada pelo capacete, garantindo tom ainda mais mórbido à situação.

–         Não acredito! – berrou Souza, inconformado. – Como foi isto?

–         Ele tentou reagir, fiquei desesperado e... – o jovem combatente, engolindo as lágrimas, foi incapaz de concluir a sentença.

Em seus espasmos derradeiros, François, erguendo os olhos para o teto escuro, pensava apenas em Justine. Tinha de protegê-la, garantir sua segurança. Eles não poderiam pegar sua chéri, fazê-la sofrer mais do que já sofrera ao longo da vida... Sua pequena, a única pessoa que lhe restara... Se ao menos houvesse derramado seu sangue para que ela permanecesse a salvo, então morreria em paz... Morreria por ela.

Lentamente ele fechou os olhos... e seu coração cessou de bater.

O soldado que disparara saiu correndo para fora do sobrado, aos prantos, dando um soco numa das paredes do vestíbulo antes de atravessar a porta. Os demais apenas lamentavam em silêncio. Mais um inocente vitimado no fogo cruzado contra Kira. Matsuda era o mais consternado dentre todos, apesar do capacete ocultar suas emoções. Desolado, balançava a cabeça para os lados, sem conseguir crer em tanta miséria...

O Death Note continuava destruindo famílias.

 

- - - - - - - -

 

As Catacumbas de Paris, ou l'Ossuaire Municipal, compunham uma extensa rede de túneis no subsolo da cidade, remanescentes das antigas minas de pedra medievais. Tais galerias, das quais poucas eram abertas ao público, tratavam-se de um amplo cemitério subterrâneo e ossuário público, instituído no século XVIII para abrigar as ossadas daqueles que não haviam sido, no passado, abastados o suficiente para serem enterrados em caixões, e cujos restos acabaram exumados de seus respectivos cemitérios ao redor de Paris e para ali transferidos devido a uma questão de saúde pública.

A forma como as paredes dos túneis eram forradas de crânios e ossos diversos enfileirados de modo ordenado, quase artístico, as freqüentes inscrições em placas de pedra contendo a procedência dos restos mortais, as colunas incertas, as criptas que pareciam complementar aquele espetáculo da morte... As caveiras que, conforme se avançava pelas galerias, pareciam saudar de forma zombeteira os visitantes – turistas do mundo inteiro que desciam àquelas profundezas por insana curiosidade – com seus sorrisos e cavidades oculares disformes. Uma verdadeira mansão dos mortos, a fortaleza de Justine Clare, a qual esperava utilizá-la como campo de batalha perfeito para emboscar e aniquilar seus perseguidores.

Sob a luz oscilante da lanterna, o caminho se desenhava constante, labiríntico. A jovem já caminhava há alguns bons minutos pelas catacumbas e suas pernas imploravam por descanso, porém ainda não encontrara um local que julgasse conveniente para repousar. Tropeçando aqui e ali, ofegante, a órfã logo se deparou com uma pequena câmara junto a um túnel, e a lápide nela presente, iluminada, revelou que ali descansavam os ossos de Saint Laurent. Justine ignorou se o nome se referia a um santo, família ou antigo cemitério parisiense: apenas julgou que o recinto era compacto e estratégico o suficiente para que nele dormisse sem maiores preocupações. Adentrou a cripta, jogou sua mochila no chão, aos pés de uma parede, e por fim sentou-se também sobre o solo rústico.

Com a lanterna ainda ligada, Clare passou a iluminar pontos aleatórios do ambiente, como uma criança brincando com o foco de luz. Entediada, desejou que o sono viesse logo e que, em sua brevidade, recuperasse suas forças o suficiente para que ela pudesse continuar seus preparativos o quanto antes. Irônico pensar que o desfecho de tudo aparentemente ocorreria num lugar que remetia tanto à morte. Nesse caso, as mortes em questão seriam as dos membros da equipe de investigação. Ao menos ocorreriam embaixo da terra e aqueles que não merecessem presenciá-las, não o fariam...

Ela fechou os olhos, um de seus dedos resvalando pelo interruptor da lanterna, desligando-a... E sem demora o sono veio. Um sono tranqüilo.

 

- - - - - - - -

 

Amanhecia o dia. Sábado.

O corpo do senhor François há pouco fora retirado do interior do sobrado onde morava, sendo conduzido por dois legistas num saco plástico preto para dentro de uma ambulância. Na casa, a vistoria dos cômodos, realizada em conjunto pelos oficiais da Gendarmerie Nationale e os cinco investigadores incumbidos por “R”, estava quase completa, restando apenas o quarto de Justine Clare a ser averiguado. Naquele momento, cerca de cinco e meia da manhã, os policiais encontravam-se preparados na frente da porta do dito recinto. Esta foi arrombada com um chute de um dos soldados franceses, abrindo caminho para o grupo sem maiores dificuldades.

A luz foi acesa. A aparência primária do quarto não denotava maiores suspeitas: vazio, cama e móveis arrumados, aparelhos eletrônicos desligados e em ordem. Todos ali sabiam, todavia, que as maiores provas não eram encontradas tão facilmente...

–         Tomem cuidado com armadilhas! – alertou o líder da equipe de choque. – Mesmo se elas não visarem nos ferir, podem ter sido armadas para destruir possíveis evidências!

Todos assentiram, realizando um cuidadoso exame do cômodo. Um dos combatentes da Gendarmerie, com um pequeno aparelho em mãos emitindo uma fraca luz vermelha, detectava a presença de explosivos plásticos no local. Nada. Matsuda e Hoshi olharam embaixo da cama, Krammer e Souza abriram o guarda-roupa e verificaram seu interior. Nada ainda. Gaveta da escrivaninha vazia. Yahudain, que possuía habilidades de hacker, ligou o PC para verificar se poderia encontrar algo comprometedor em sua memória. Pouco depois veio seu parecer:

–         O computador foi formatado, todos os seus arquivos apagados... Eu posso mesmo assim tentar encontrar rastros na CPU, mas não aqui!

–         Vamos levar o PC para posterior análise no centro de operações – disse Eliza. – Algo mais?

Nisso, uma coisa chamou a atenção de Matsuda: junto ao chão, ao lado da escrivaninha, havia um pequeno cesto de lixo contendo alguns papéis amassados. Movido por forte intuição, e crendo que Justine por certo se esquecera de se livrar daqueles vestígios, abaixou-se perto do recipiente e apanhou uma das bolotas, desamassando-a com extremo cuidado...

O que havia no papel gerou arrepios no policial japonês. Tratava-se de uma gravura, desenhada a lápis. A perfeição dos traços, no entanto, era de impressionar. Um rosto humano, bem conhecido pelo time de detetives. Jovial, sério, frio, calculista. Alguém que haviam perdido e cuja morte abalara e muito o andamento do caso, antes da repentina chegada de “R”. Algo assustador. Ali estava registrado o rosto de “L”. Near...

–         O que é isso? – inquiriu Ricardo, e Touta forneceu-lhe a folha.

O desenho passou de mão em mão entre os presentes no quarto, e a conclusão que a partir dele poderia ser obtida logo foi assimilada: o Shinigami que concedera o Death Note a Clare tivera conhecimento da face e do verdadeiro nome de “L”, fornecendo-os à jovem, que assim o executou. Teria sido Ryukuu? Apesar da presença dele na estância quando da morte de Near, Matsuda sabia, por experiência própria, que isso não era de seu feitio. Era provável então ter sido realmente o humano que retornara como deus da morte para dar continuidade ao legado de Kira. Ou esse Shinigami em questão descobrira o esconderijo de “L” e desvendara seu nome para então passá-lo a Justine... ou tal agente descobrira a verdadeira identidade de Near quando ainda era humano, levando tal conhecimento consigo para o Mundo Shinigami ao morrer.

Isso reduzia drasticamente o escopo de ex-humanos suspeitos de terem retornado ao mundo como Shinigamis, restando praticamente apenas um nome. Touta sentiu certo alívio: não era Raito Yagami. Claro que isso era somente uma hipótese, porém o capitão preferia se agarrar a qualquer possibilidade de não ter de confrontar mais uma vez seu antigo nêmesis...

Todos ali sentiam, no entanto, que ainda havia coisas por vir. O sábado estava apenas começando...

 

- - - - - - - -

 

FIM DO VOLUME DOIS

 

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O inconformismo me domina

A indignação me impele

Este mundo está caótico

O mal domina livremente

 

Liguei hoje a TV

Mais um maníaco solto

Pena das vítimas que fará

Raiva do sistema que o favoreceu

 

Madame Guilhotina, faça justiça!

Reestruture este mundo de ponta-cabeça

Puna quem mereça, Madame Guilhotina

Sua justa lâmina está sedenta!

 

Madame Guilhotina, você me ouve?

Meu clamor impele seu mecanismo

Puna a todos, Madame Guilhotina!

O mundo lhe está pedindo socorro

 

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Prévia:

 

Um momento brilha, cintila no tempo que flui

 

Sou alguém que caminha além do que passou

 

Continuo andando e o meu nome irei gravar

 

Nas vãs memórias deste mundo!

 

Próximo capítulo: Fortuna


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