Death Note: Ressurreição escrita por Goldfield


Capítulo 21
Capítulo XXI: Fortuna




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Três anos após a derrocada do primeiro Kira, uma nova onda de assassinatos em série de criminosos atinge o mundo. A responsável é Justine Clare, jovem estudante de Direito francesa que, obtendo acesso a um Death Note graças ao misterioso Shinigami chamado Masuku, resolve aplicar seu implacável julgamento àqueles que acredita não merecerem viver devido a seus crimes.

 

Uma equipe internacional de investigadores, chefiada pelo mundialmente famoso “L”, é formada para perseguir e capturar o novo Kira. Durante as primeiras ações do time, porém, “L” é morto em circunstâncias amedrontadoras, deixando seus comandados confusos e assustados. No entanto, rapidamente um novo e intrigante indivíduo assume a liderança do caso: identificando-se apenas como “R”, faz uso de métodos questionáveis e coordena o trabalho dos detetives na caçada ao assassino.

 

Nesse ínterim, Justine, em sua sede insaciável de justiça, acaba cometendo uma série de erros que comprometem seu segredo e seus planos. Após ser desmascarada como Kira pelos investigadores e ver-se completamente acuada, a moça abre mão até do auxílio dos Shinigamis numa última tentativa desesperada de emboscar e aniquilar seus perseguidores. O tempo torna-se variável valiosa na etapa decisiva do embate entre “R” e Kira.

 

O último ato desta eletrizante história, senhoras e senhores, começa aqui.

 

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Todas as nossas horas chegaram

Aqui mas agora elas se foram

As estações não temem o ceifador

Nem o vento, o sol ou a chuva… nós podemos ser como eles são

Vamos lá baby… não tema o ceifador

Baby segure minha mão… não tema o ceifador

Nós poderemos voar… não tema o ceifador

Baby eu sou seu homem...

 

La, la, la, la, la
La, la, la, la, la

 

O Dia dos Namorados terminou

Aqui mas agora eles se foram

Romeu e Julieta

Estão juntos na eternidade… Romeu e Julieta

40,000 homens e mulheres todos os dias… Como Romeu e Julieta

40,000 homens e mulheres todos os dias… Redefina felicidade

Outros 40,000 vindo todos os dias… Nós podemos ser como eles são

Vamos lá baby… não tema o ceifador

Baby segure minha mão… não tema o ceifador

Nós poderemos voar… não tema o ceifador

Baby eu sou seu homem...

 

La, la, la, la, la
La, la, la, la, la

 

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Capítulo XXI

 

“Fortuna”

 

Sábado, manhã.

O dia já raiara, apesar de Justine, no subsolo, não ter contato com os raios solares. Imersa na escuridão das catacumbas, abriu os olhos de súbito, um tanto assustada. Levou a mão direita agitada ao chão, tateando-o até encontrar a lanterna e então acendê-la. O facho de luz se focou por alguns segundos nas caveiras e ossos nas paredes, enquanto Clare usava a outra mão para vistoriar seus bolsos e apanhar seu velho relógio. Sob a claridade do equipamento, ela examinou-o: marcava sete horas. Ela descansara pouco, mas o suficiente.

Com o corpo um tanto dolorido e fraco, levantou-se do chão. Conteve um bocejo e esfregou os olhos. Em seguida apontou a lanterna para a entrada da cripta: tudo estava aparentemente normal. A não ser, é claro, pela grande asa negra que não foi percebida logo de imediato pela visão ainda falha da jovem que acabara de despertar. Intrigada com o achado, Justine deu alguns passos rumo ao túnel, porém não teve de deixar a câmara... A criatura esguia e sombria que a espreitava revelou-se, adentrando o recinto: Masuku, em toda sua aparência atroz e disforme de deus da morte.

–         Você aqui? – estranhou a moça, já que os dois Shinigamis que antes a auxiliavam haviam deixado bem claro que não estariam mais com ela.

–         Eu não preciso me justificar, tampouco pedir desculpas ou qualquer coisa do tipo – ele foi, como poucas vezes antes, ríspido. – Porém, esteja certa de que, independente do que aconteceu, estarei com você até o fim, Justine Clare!

A órfã esboçou um leve sorriso. Toda ajuda seria bem-vinda, apesar de que ela não deixaria de encarar o auxílio de Masuku com um mínimo de suspeita. O retorno do Shinigami, por ser tão repentino, acabava sendo igualmente pitoresco. Por outro lado, talvez Masuku voltara porque realmente apoiava Justine, confiava em seu caráter e sua inteligência, e por isso vira-se disposto a perseverar junto a ela até o fim – triunfante – de sua cruzada. Ao contrário da agourenta presença de Nise... Clare, refletindo acerca de tudo até ali, percebeu que as coisas haviam piorado de modo vertiginoso a partir do momento em que o segundo deus da morte entrara em cena. Talvez fosse realmente melhor que ele – ou ela – permanecesse afastado durante aquele momento crítico.

Ainda de pé, Justine voltou a luz da lanterna para o interior de sua mochila, imergindo Masuku na escuridão por um momento. Tudo dentro da bolsa se encontrava em ordem. Depois Clare tornou a erguer o facho para frente e, encarando o Shinigami e seus olhos vermelhos, ouviu-o falar:

–         Eu não sou seu único reforço...

Assim que concluiu a frase, diversos outros vultos começaram a surgir por toda parte, dentro e fora do alcance da lanterna. De início a jovem sentiu-se terrivelmente alarmada, imaginando a quais pessoas, ou seres, poderiam pertencer aquelas incertas silhuetas. Devagar, como que contribuindo de propósito para a ansiedade de Justine, as sombras foram se tornando formas, as formas foram se tornando figuras... e as figuras se transformaram em indivíduos, humanos. Estes, no entanto, usavam todos capas cinzas que lhes cobriam os corpos por completo, as cabeças imersas em capuzes da mesma cor que, com a ajuda da penumbra, ocultavam totalmente seus semblantes. Clare lembrou-se de imediato do repugnante culto a Kira que a seqüestrara dias antes e que por muito pouco não a sacrificara, sendo tomada pelo ódio. Conteve-se, porém: levando em conta a afirmação de Masuku e o fato de pessoas ligadas àquela sociedade provavelmente não saberem com certeza o que se passara com Pasquale e seus asseclas, ela viu que seria mais prudente não reagir. Talvez aqueles fanáticos religiosos acabassem lhe sendo bastante úteis... por enquanto.

Confirmando as suspeitas da moça a respeito de quem eram, todos os ocultistas presentes na cripta, cerca de dez, sem contar os demais do lado de fora que escapavam à claridade da lanterna, colocaram-se de joelhos no chão, diante da atônita pessoa de Justine. Um homem em particular, que parecia liderá-los, removeu o capuz de sua cabeça, revelando possuir cavanhaque, determinados olhos azuis e ser parcialmente calvo. Fitando a estudante, seu alvo de adoração, de forma fixa por vários instantes, acabou dizendo num tom extremamente devoto:

–         Estamos aqui para servi-la... Nossa Senhora Kira!

A reação de Clare foi, colocando suas duas mãos nos ombros de seu seguidor, abrir um grande e aliviado sorriso.

 

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As primeiras horas da manhã transcorriam e os dois grupos nos quais havia se dividido a equipe de investigadores de “R”, sem terem ainda se reunido, permaneciam em sua vigília forçada nas residências de Henri Aiton e Justine Clare. Enquanto na primeira casa os detetives, junto com Junot e os demais oficiais franceses, encontravam-se sentados na sala consolando a ainda inconformada família do rapaz morto, na segunda os membros do time e integrantes da Gendarmerie estavam dispersos pelos cômodos, assimilando o que antes haviam encontrado e tentando descobrir mais pistas. O próximo contato de “R” era aguardado por todos com ansiedade e apreensão, o ímpeto em partirem logo em caçada à suspeita, onde quer que ela estivesse, sendo grande.

Andando em círculos pelo quarto de Justine, Matsuda não pensava nela, mas sim em “R”. Lembrou-se de novo de sua empreitada pessoal no Japão em busca da verdadeira identidade do líder do caso, do que descobrira... Seria mesmo verdade? Estaria sob o comando de uma pessoa de tamanho senso de justiça e motivos de sobra para odiar tudo relacionado a Kira?

Enquanto aguardava as próximas instruções de “R”, o capitão seguia refletindo acerca de todo aquele mistério e sua já iminente solução...

No apartamento da família Aiton, a agente Rivera, até então um dos elementos mais contidos de todo o grupo, começava a demonstrar francos sinais de impaciência. Remexia os dedos e torcia as mãos de forma agitada, olhava ao redor demonstrando incômodo a quase todo momento. Logo acabou retirando seu capacete. Ackerman, também percebendo o estado de nervos da colega, resolveu indagar:

–         Algo errado, Izabela?

–         Inspetor Junot! – ignorando o alemão, a espanhola de súbito se levantou do sofá e avançou até o policial parisiense. – Você tem o número de telefone de “R”, não?

–         N-não! – respondeu Charles de início, confuso, para em seguida alterar sua réplica: – Na verdade sim! Por que, por que razão quer contatá-lo?

–         Não importa, apenas deixe-me falar com ele!

–         Hei, hei, calma aí, Rivera! – exclamou Boruanda, erguendo-se da poltrona onde se encontrava e estendendo as mãos num gesto de contenção. – Não há razão para nos exaltarmos tanto! “R” deixou claro que devemos dar o próximo passo somente quando ele ordenar! Eu creio que podemos confiar em seu julgamento!

–         Sempre tive minhas dúvidas quanto a isso, mas... – murmurou Dennegan, apontando discretamente para os chorosos pais de Henri.

–         Enquanto ficamos aqui discutindo a capacidade de “R” em conduzir o caso, Kira está em fuga e podemos nunca mais prendê-lo! – argumentou Izabela firmemente.

–         Eu lamento, porém teremos mesmo de aguardar... – Günter balançou a cabeça em sinal negativo. – É o mais prudente e seguro a se fazer. E você sabe disso.

Bufando, e tendo seu comportamento estranhado ainda mais por aqueles que a cercavam, Rivera retornou ao sofá e sentou-se nele de braços cruzados... vencida.

 

Na suíte do Hôtel Splendid Etoile que servia de central de operações ao time de detetives, o ambiente estava agora vazio e quieto, sendo aos poucos iluminado pelo sol que iniciava sua trajetória diurna pelo céu. Mesmo com a ausência dos hóspedes, não havia faxineiras limpando o local ou a presença de qualquer outro funcionário do estabelecimento ali. O único indício de atividade humana no recinto, àquela hora, era um notebook ligado sobre uma mesa, a tela retratando o já bem conhecido logotipo de “R”. Diante do computador, via-se, de pé, um indivíduo de sobretudo, gravata, óculos escuros... Ernest Adams. Atento, ele ouvia a voz distorcida do comandante da operação através dos alto-falantes da máquina:

–         A pessoa em questão deve estar se remoendo neste exato momento e ansiosa por conseguir agir longe das vistas dos outros...

–         Conhecendo você, não duvido que permitirá isso para que a captura de Kira se torne ainda mais fácil... – o estadunidense estava sério e ao mesmo tempo terno. – Mesmo que realmente alguns de nossos aliados morram durante a ação.

–         Repito o que disse antes: eles sabem que suas vidas correm risco desde que aceitaram tomar parte neste caso. Ainda que as baixas sejam muitas, o que sinceramente duvido, são perdas aceitáveis na luta contra o mal maior representado por Kira. E por falar no traidor... você checou o móvel?

–         A esta altura dos acontecimentos, acho isso desnecessário, mas...

Após assim responder, Adams caminhou alguns passos pelo cômodo, dirigindo-se até um sofá. Observou-o por cerca de três segundos, e então removeu uma das almofadas que compunham seu assento. Foi sem nenhuma surpresa que encontrou, embaixo dela e enfiada junto a um vão, uma pistola calibre 9mm. Apanhou-a com cuidado pela ponta do cabo e, carregando-a dessa maneira, retornou até a frente do laptop. Depositou em seguida a arma em cima da mesa e disse a “R”:

–         Acredito que nem precisaremos conferir as digitais, está na cara a quem elas pertencem.

–         Sim, e os antecedentes de nosso “Judas”, cuidadosamente levantados por mim, não deixam enganar... Brigada da Bravura de Kira, Defensores dos Arcanjos da Justiça, Cruzada Cristã Anticriminosa, Los Illuminados... Possuiu envolvimento em quase todos os movimentos internacionais de fanatismo religioso durante os últimos dez anos, principalmente seitas de apoio a Kira. É alguém treinado em táticas de guerrilha, manuseio de armas, sabe de modo razoável lidar com computadores, disfarces e operações de infiltração.

–         O indivíduo perfeito para tomar parte em nossa equipe, obter acesso a dados valiosos sobre Kira e repassá-los aos seus “irmãos de fé”. E dessa forma acabou nos levando a eles também... Isto não está ficando bem maior do que pensava, irmã?

–         Não... Eu previa isso tudo desde o início. Agora, revisemos novamente nossos passos antes de a hora de agir chegar. Enquanto isso, quero que Justine Clare se sinta o mais segura que conseguir...

 

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Justine sentia-se um tanto deslocada devido às soturnas catacumbas, antes habitadas somente pelos mortos nelas distribuídos, terem sido subitamente tomadas por aquele verdadeiro exército de seguidores de Kira que, em seus trajes ritualísticos, andavam agora por toda parte. Ela e Masuku observavam atônitos aos preparativos dos ocultistas para a eventual defesa dos túneis, e a jovem sentia-se ainda mais aliviada pelo fato de eles aparentemente não conseguirem enxergar o Shinigami, já que na situação inversa o contido fervor religioso do grupo com certeza estaria à flor da pele. Sem deixar a cripta na qual dormira, Clare vira vários dos fanáticos cruzando a passagem do lado de fora com armas em mãos, desde leves como revólveres e pistolas, até pesadas como metralhadoras e rifles. Era certo que, caso seus inimigos invadissem o subsolo, aquelas pessoas travariam sangrenta batalha para protegê-la. Elas poderiam até se sair melhor que os Shinigamis...

Nisso, o suposto líder do destacamento religioso voltou à câmara, sempre tendo um brilho de determinação em seus olhos azulados. A Justine, na aparência física, ele lembrava cada vez mais um pacato frade franciscano, principalmente no jeito manso de falar, e alguém só deixaria de crer nisso quando soubesse que ele reverenciava uma entidade assassina. Pondo-se de joelhos diante da órfã, o recém-chegado disse-lhe:

–         As precauções para vossa proteção estão quase terminadas, Senhora da Verdadeira Justiça!

–         Ótimo trabalho, meu fiel seguidor. A balança da eqüidade brilhará hoje graças ao esforço de todos vocês. Preocupa-me apenas alguma artimanha que nossos inimigos possam vir a tentar.

–         Não se alarme quanto a isso: nosso culto possui alguém infiltrado no grupo de investigadores que perseguem vossa divina pessoa. Esse agente confundirá nossos oponentes, atrapalhará seus planos e fará com que caiam em nossa armadilha!

Clare ocultou sua surpresa. Um espião? Aqueles estúpidos fanáticos eram mais inteligentes do que pensara...

 

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As horas do sábado transcorreram rápidas e ao mesmo tempo lentas para os envolvidos no Caso Kira... de ambos os lados.

Os membros da equipe de investigações, presos a seus postos, testemunharam o sol percorrer o céu de Paris enquanto tentavam conter sua vontade de partirem atrás de Justine Clare, coisa que não poderiam fazer sem que “R” desse sua ordem. Funcionários do serviço de entrega de alguns restaurantes visitaram na hora do almoço tanto o apartamento da família Aiton quanto o sobrado onde residia a suspeita, trazendo, a mando e às custas do chefe do caso, uma bem-vinda refeição para os detetives que nesses locais permaneciam.

Apesar de assim saciarem sua fome, o anseio de agir o quanto antes pouco foi aplacado. O sentimento de que Kira sumia de vista durante o tempo em que ficavam parados aos poucos tomava a todos. E alguns destes, inclusive, começavam a se questionar a respeito de seus métodos e ações. Vários inocentes já haviam sido pegos no fogo cruzado... quantos mais ainda viriam a tombar? “R” já não poderia ter detido Clare, a um custo bem menor de vidas e tempo, se não se perdesse em tantos rodeios no tocante às suas obscuras estratégias? Afinal, o quanto “R” era diferente de Kira? O quanto valia estar sob as ordens de um investigador misterioso e frio que se identificava somente por uma letra?

No subsolo, por sua vez, uma mente em particular também muito se remoia...

Apesar de tentar manter sua firmeza e sua determinação acima de todos os contratempos e lapsos que haviam surgido em sua cruzada, Justine não conseguia ficar em paz, sentir-se totalmente segura. Seu estado de espírito era vítima de um nervosismo que nem mesmo o auxílio de Masuku e dos seguidores de Kira poderia suavizar. Além disso, independente do sucesso ou não de sua missão como juíza dos ímpios, o futuro era uma preocupação crescente para a jovem. Até que ponto sua alma havia sido condenada pelo uso do Death Note? Após morrer, o destino que a aguardava seria mesmo se transformar num daqueles disformes Shinigamis? E para complicar tudo ainda mais, havia os dizeres do caderno, as pesadas regras... Dentre elas, aquela em particular não deixava mais seus pensamentos:

 

O humano que usar este caderno não poderá ir nem para o Céu e nem para o Inferno.

 

As palavras de seu avô... Encontrar seus pais de novo no Céu... Eles a aguardariam de braços abertos... Reencontro... Felicidade... Vê-los novamente... Céu... Inferno... Usar o Death Note impossibilitava de seguir para o Céu ou para o Inferno... Destino atroz... Converter-se em deus da morte... Punição... Punição eterna!

Justine sentia vontade de berrar, tamanha era a confusa aflição em seu íntimo. No entanto, fazia uso de sua monstruosa determinação para não ceder ao desespero. Um fiapo de esperança ainda existia dentro de si, e ela se agarrava a ele com todas as forças. Mesmo com as tribulações, conseguiria triunfar... A vitória era digna daqueles que haviam empenhado maior esforço para alcançá-la, e isso incluía grande sofrimento. A vitória, portanto, seria sua.

 

O dia passou, o firmamento mudou de cor, passando do azul ao laranja, do laranja ao breu... e eis que veio a noite de sábado na capital francesa.

 

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Onze da noite.

Em ambos os postos dos detetives de “R”, a exaustão os encontrara totalmente vulneráveis. Após os dois grupos terem jantado pizzas, que foram entregues por funcionários de bares e restaurantes de Paris também a mando do líder do caso, a morosidade logrou derrubar quase todos os policiais. No apartamento da família de Henri Aiton, os pais do falecido rapaz haviam saído com Junot e seus homens para cuidarem dos preparativos para o funeral, tendo a autópsia do corpo sido concluída. Sozinhos no triste lar, Ackerman, Boruanda, Dennegan e Rivera lutavam contra o sono, o primeiro e o terceiro aparentando já terem sucumbido ao mesmo nos sofás da sala. Scott, sem o capacete e esfregando os olhos, alternava a visão entre o aspecto quieto do recinto e a pessoa de Izabela, que, também cansada, não tinha mais forças para ficar inquieta. Acreditando que ela, no entanto, ainda possuía disposição ao menos para conversar, o sul-africano perguntou-lhe:

–         Ansiosa para prender a suspeita?

–         Isso já não está claro o bastante? – a réplica da espanhola soou um tanto feroz.

–         Na verdade, o que ainda não ficou muito claro para mim é a razão de você ter ficado tão nervosa de uma hora para outra...

Rivera abriu a boca para rebater – e pela expressão que seus lábios compuseram, parecia ser uma sentença nada amistosa – quando os celulares dos quatro detetives no cômodo apitaram. Günter e Mark despertaram de imediato e, junto com os dois colegas mais adiantados, apanharam os aparelhos para verificar quem os contatava... Conforme suspeitaram, era “R”, usando um número misterioso. Atenderam prontamente ao chamado e, junto a um dos ouvidos de cada investigador, a voz camuflada do personagem se manifestou:

–         A hora que vocês esperavam chegou. O furgão está lá embaixo.

Nada mais precisou ser dito, e o grupo sem pestanejar levantou-se para deixar o apartamento...

 

No sobrado de Justine Clare, o estado de enfado dos detetives não era muito diferente. Estes se encontravam, todavia, um pouco mais alertas que seus colegas ausentes. Matsuda, muito ansioso, vistoriava o quarto da suspeita pela quinta vez, lutando contra a fadiga e sentindo frustração cada vez maior por não encontrar novas evidências. Hoshi o observava de pé junto à porta aberta do local, calado. Krammer, Yahudain e Souza, no andar de baixo, faziam companhia aos soldados de elite que ainda permaneciam na residência. Caixas de pizza vazias se empilhavam pelos cômodos. Vigília era necessária, pois havia a possibilidade, mesmo que remota, de a suspeita retornar à sua morada. Embora tivessem isso em mente, todos ali também cultivavam como real desejo partirem o quanto antes no encalço de Justine. Ela poderia estar fazendo mais vítimas naquele exato momento...

Até que os celulares de todos, exceto os oficiais da Gendarmerie, emitiram um “bip”.

Sendo atendidos, os aparelhos propagaram a mesma mensagem de “R”...

Chegara o momento.

 

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O vai e vem continuava nas catacumbas, não havia parado por um minuto sequer do dia. Os adoradores de Kira circulavam pelos túneis portando tochas, a luz amarelada e oscilante do fogo os auxiliando a conferir as armadilhas, pontos estratégicos, possíveis rotas de fuga... Estas, no entanto, para uso somente de “Nossa Senhora Kira”. Eles jamais fugiriam. Lutariam até a morte para defendê-la.

Justine, por sua vez, permanecia sentada na cripta de Saint Laurent. Também ficara somente ali praticamente desde que acordara pela manhã, levantando algumas vezes apenas para movimentar as pernas. Seus seguidores haviam servilmente lhe levado comida – muito boa, por sinal – duas vezes. Pelo visto também tinham trazido suprimentos para o subsolo. Eram bastante precavidos.

Masuku ainda fazia companhia a Clare, aparentando grande tranqüilidade. Seus olhos avermelhados miravam um ponto indefinido numa parede, um semi-sorriso não deixava mais seus lábios inumanos... Saberia de algo que não compartilhava com Justine? Por que aquela expressão tão serena, às vésperas de grande agitação?

Abandonando essas perguntas ao menos temporariamente, a jovem tornou a abrir sua mochila. Dentro dela, o Death Note. Os ocultistas não sabiam que o poder de Kira provinha daquele artefato, e seria melhor se continuassem sem saber. Entretanto, Justine via-se na necessidade de manter o caderno em suas mãos para sentir-se segura. Tendo-o agora dessa maneira, comprimiu-o junto ao peito e fechou os olhos, desejando que os próximos acontecimentos viessem logo. Assim sua espera seria menos angustiante...

 

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Death Note – Como usar:

 

– O humano com posse do Death Note pode obter o Olho de Shinigami e, com isso, ver os nomes e expectativas de vida das possíveis vítimas, contanto que o rosto destas esteja visível. Essa troca custa metade da expectativa de vida do humano.

 

– Suicidar-se é uma forma possível de morte. A princípio, qualquer ser humano pode pensar em cometer suicídio.

 

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A equipe de investigadores de “R” continuava dividida, cada um dos dois grupos a bordo de cada van preta que o conduzira de madrugada até seu posto anterior, e cada um dos veículos aparentemente conduzido pelo mesmo motorista misterioso de antes. O destino dos policiais também era incerto desta vez. Porém, julgando a rota traçada pelos furgões, parecia que não deixariam o bairro de Montparnasse. Dentro do primeiro carro, Yahudain julgou estar andando em círculos pelas vias, até que resolveu indagar ao guia:

–         Pode nos dar uma pista do lugar para o qual nos dirigimos? Nem se for na forma de anagrama ou palavra-cruzada!

–         “R” não aprecia tais ironias... – murmurou o incógnito homem de sotaque japonês. – Quanto ao local, logo descobrirão, já estamos chegando...

A van contornou mais uma esquina, rumando para a esquerda num cruzamento, pouco depois de ter passado diante do prédio da Cruz Vermelha Francesa. Em seguida desacelerou, estacionando junto à calçada em frente a uma construção aparentemente ordinária. Rue Rémy Dumoncel. O motor do veículo foi desligado e o motorista realizou um gesto para que os ocupantes descessem. E, em meio à escuridão da noite e às luzes da cidade, o time visualizou a localidade que era seu objetivo...

 

O primeiro furgão rodava pelo Boulevard Arago numa velocidade que poderia ser considerada até um tanto lenta, deixando os policiais em seu interior ainda mais impacientes. Parecia até ser de propósito. Venceram mais alguns metros da via arborizada e então atingiram o largo de Denfert-Rochereau, contornando a quadra em que estava situada a conhecida entrada das Catacumbas de Paris. O carro estacionou junto a uma calçada e, com um sinal do guia, os detetives começaram a deixar os bancos. Rivera, já avançando do lado de fora, perguntou em voz alta, braços cruzados:

–         Nós vamos descer até os túneis?

–         Vocês serão a mola da ratoeira que “R” preparou... – afirmou o motorista, apanhando uma submetralhadora H&K até então oculta embaixo dos assentos frontais da van e engatilhando-a. – Sigam-me!

 

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No subsolo, a movimentação dos fanáticos de súbito tornara-se mais constante e rápida, o facho das tochas indo para lá e para cá através das câmaras e passagens como se procurassem um inimigo ainda invisível. Justine, imóvel em seu mesmo sítio, Death Note firme nas mãos, continuava observando. Masuku, próximo, mantinha a calma. A moça acabou inquirindo ao líder dos ocultistas assim que ele surgiu a passos velozes através do túnel diante da cripta:

–         Alguma coisa errada?

–         Há atividade suspeita na superfície, uma possível ameaça à vossa divina pessoa. Queira permanecer aqui para sua própria segurança.

Clare assentiu com a cabeça, corpo passando a tremer de leve. Ainda que contra sua vontade, o medo tornava a invadi-la. Algo grande e violento estava por acontecer, uma batalha sangrenta. Justine possuía homens e mulheres para defendê-la, indivíduos cegos por uma religiosidade doentia que não cessariam de lutar até que caíssem mortos. Verdadeiros peões de xadrez à sua disposição. Mesmo assim, uma implacável insegurança a afrontava. Escaparia com vida dali? Conseguiria utilizar o caderno a tempo para eliminar seus oponentes, caso viesse a se deparar com eles? Aos poucos, uma situação antes pautada na continuidade da cruzada de Kira e na liberdade deste para agir tornava-se verdadeira questão de sobrevivência... algo com o que a órfã ainda não conseguia lidar totalmente.

Ela adiara por muito tempo aquele momento, buscara alternativas para evitar tal decisão, no entanto os fatores se complicavam ainda mais, e uma nova atitude drástica se tornava necessária. Voltando-se para Masuku, Justine tomou fôlego, venceu seus receios, e informou:

–         E-eu quero fazer a troca!

O Shinigami apenas concordou movendo a face.

 

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O grupo da primeira van constatou que a singela porta semi-aberta presente na construção tratava-se de uma das saídas conhecidas das Catacumbas de Paris, mais precisamente aquela utilizada por visitantes que adentrassem o complexo subterrâneo através do largo de Denfert-Rochereau. Com os rostos protegidos pelos capacetes, os cinco investigadores trataram de apanhar as lanternas que traziam consigo, acendendo-as na direção da escura escada levando ao subsolo. Com a outra mão, portavam suas pistolas e revólveres. O motorista do furgão, munido de uma escopeta, permaneceu de guarda do lado de fora. As instruções dele haviam sido claras: a suspeita se encontrava abrigada em algum lugar dos túneis, e os policiais deveriam esperar reação hostil – talvez houvesse cúmplices armados protegendo-a.

Krammer e Yahudain seguiam à frente, lado a lado, acompanhados por Matsuda e Hoshi, e Souza na retaguarda. As luzes alternavam-se entre os degraus da escada e o resto do ambiente, dominado por um aspecto rochoso e monocromático que prenunciava o que viria em breve. Já no início do trajeto, este lembrava e muito um filme de terror. A comparação era justa: o terror gerado por Kira. Um reino de terror.

O caminho era composto por uma longa reta, aos recém-chegados parecendo interminável. Logo surgiram as primeiras paredes forradas por ossos, entre crânios e partes de membros. Os restos se encontravam todos empilhados juntos, lado a lado, unindo pessoas que haviam sido em vida ricas e pobres, nobres e plebéias, inocentes e criminosas, sacras e profanas... Ali, no império da morte, qualquer distinção assim perdia o sentido.

Além dos passos cautelosos dos policiais, o único som audível era o de gotas de água pingando pelos túneis. Movendo o foco da lanterna para cima, Hoshi conseguiu ver algumas delas se precipitando sobre o chão. Provinham de algum encanamento, provavelmente. Distraído, o japonês então tornou a apontar a luz para frente... Vislumbrando um indivíduo de traje cinzento, semelhante ao de um monge, capuz cobrindo a cabeça... e possuía algo em mãos...

–         Abaixem-se! – bradou Matsuda assim que percebeu a ameaça.

O clarão do disparo da espingarda inimiga veio logo depois...

 

A entrada das catacumbas em Denfert-Rochereau estava aparentemente calma. O guichê de bilhetes vazio, a porta destrancada... Ackerman e Boruanda seguiam à frente, Rivera e Dennegan logo atrás, todos com armas em punho, capacetes cobrindo seus rostos. O nipônico misterioso assumira posição de guarda do lado de fora.

–         Espero que “R” saiba em que está nos metendo... – murmurou Mark conforme andava, olhando ao redor.

–         Meu avô lutou no exército de Hitler... – disse o alemão, admirado com o ambiente. – Ao ocuparem Paris durante a Segunda Guerra Mundial, eles construíram um bunker em algum lugar destas catacumbas.

O grupo de quatro detetives desceu pela escada em espiral, suas lanternas revelando aos poucos o tortuoso trajeto. Chegou à sala contendo fotografias e gravuras, algo se ocultando entre as sombras...

–         Cuidado! – alertou Günter.

Duas silhuetas ameaçadoras saltaram da penumbra, e as pistolas dos dois detetives liderando a marcha agiram imediatamente...

 

Um misterioso helicóptero negro, silencioso, sobrevoava Paris naquele momento, mais precisamente o bairro de Montparnasse. Descrevia uma rota semicircular pelo céu noturno, como se aguardasse algo. Em seu interior, somente o piloto e uma outra ocupante. O primeiro era Ernest Adams, sempre com seus óculos escuros, um fone acoplado à cabeça, atento aos controles. Após receber uma mensagem através do comunicador, informou à mulher sentada num assento, face oculta por um tecido semelhante a uma touca:

–         As duas saídas das catacumbas estão obstruídas por nossas equipes... Apesar de o traidor fazer parte de uma delas. Justine Clare se encontra, porém, cercada.

–         Eu não afirmaria isso tão cedo – replicou a figura mascarada, muito séria. – Deve haver outras rotas de fuga no subsolo que a suspeita pode vir a usar. E considerando que ninguém na superfície testemunhou a chegada dos fanáticos aos túneis, eles já devem tê-las utilizado. Precisaremos ficar bastante atentos para que Clare não escape por entre nossos dedos.

–         Creio que nossos voluntários são competentes o bastante para não fracassarem neste momento.

–         Eu espero que sim... Kira e seus seguidores querem guerra. Então eles terão guerra!

 

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Fortuna imperatrix mundi
(Fortuna imperatriz do mundo)

 

O fortuna
(Ó fortuna)
Velut luna
(Como a lua)
Statu variabilis
(Variável)
Semper crescis
(Sempre crescendo)
Aut decrescis
(E minguando)
Vita detestabilis
(Vida odiosa)
Nunc obdurat
(Primeiro oprime)
Et tunc curat
(Então alivia)
Ludo mentis aciem
(A mente, só por diversão)
Egestatem
(Pobreza)
Potestatem
(Poder)
Dissolvit ut glaciem
(Derretem como gelo)

O coração de Justine enlouqueceu quando ela ouviu os primeiros tiros. Havia começado. A ameaça à sua vida era próxima e real. Abraçou o Death Note com mais força, em seguida olhando para Masuku, ainda adaptando-se à sua nova visão. A ausência de qualquer sentimento no semblante do deus da morte apenas a deixava mais apreensiva. Apontou a lanterna para a saída da cripta, dando alguns passos em direção a ela... Protegendo-se junto a uma das paredes, olhou com cuidado para ambas as direções do túnel: apesar dos gritos dos ocultistas e de mais uma seqüência de disparos, parecia não haver perigo imediato naquela área. Clare então se voltou para trás, certificando-se que o Shinigami a acompanhava. Ele nada falou, mesmo movendo-se até ela, e a jovem então desatou a correr pela passagem, ignorando para qual sentido rumava.

 

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Os cinco investigadores lograram se abaixar a tempo, os projéteis passando por cima de suas cabeças. O inimigo, um dos seguidores fanáticos de Kira, a julgar pelos trajes, preparou-se para disparar mais uma vez com a espingarda calibre 12... mas duas rápidas balas foram cravadas em seu peito, o ocultista soltando a arma e voltando os olhos, incrédulo, até o par de buracos em seu traje, pelos quais sangue começou a escorrer. Emitiu um gemido um tanto frustrado, cambaleou para trás, e por fim caiu de costas, morto.

Deitado e ainda apontando a pistola para o morto, cotovelos apoiados sobre o chão, Hideo Hoshi manteve sua posição por mais alguns instantes – temendo a aproximação de mais algum indivíduo hostil – antes de reerguer-se. Era mesmo um exímio atirador.

Todos verificaram uns aos outros: nenhum ferido. Alívio momentâneo.

–         Que bela recepção! – falou Moshe, ofegante.

–         Cuidado máximo, deve haver muitos outros deles lá embaixo... – recomendou Matsuda.

Avançando na direção de um ameaçador desconhecido, o grupo prosseguiu, armas prontas e lanternas atentas.

 

Na sala de gravuras, o primeiro seguidor de Kira foi derrubado por um tiro certeiro de Boruanda, que lhe acertou a testa, antes que tivesse tempo de atacar. O corpo sem vida, desengonçado, ainda dançou sem controle por dois ou três segundos, os braços resvalando em algumas fotografias numa parede, despregando-as. Já o segundo oponente dos detetives conseguiu, com sua submetralhadora Uzi, enterrar duas balas no braço esquerdo de Ackerman. Sangue jorrou, o germânico gritou de dor, porém revidou com uma bala no peito do adversário, a qual foi suficiente. Izabela e Mark permaneceram de prontidão, enquanto Günter verificava seu ferimento. Os projéteis não haviam atingido o osso, e o sangramento logo pararia. Mordeu os lábios. Precisariam fazer muito mais que aquilo para derrubá-lo.

–         Você agüenta seguir em frente? – indagou Scott, preocupado.

–         Até o inferno, se for preciso! – o loiro respondeu cerrando os dentes.

Foi o próprio Ackerman quem impeliu o grupo a avançar, já se dirigindo à câmara seguinte. Logo passaram pelo aviso informando que adentravam o império da morte, a luz da lanterna deixando os dizeres nítidos. Sim, por certo a morte reinaria ali aquela noite... sobre os criminosos ali alojados, caso continuassem a resistir.

 

- - - - - - - -

 

Sors immanis
(Destino – monstruoso)
Et inanis
(E vazio)
Rota tu volubilis
(Roda da sorte)
Status malus
(Tu és malevolente)
Vana salus
(Bondade em vão)
Semper dissolubilis
(Que sempre não leva a nada)
Obumbrata
(Obscura)
Et velata
(E coberta)
Michi quoque niteris
(Você também me amaldiçoou)
Nunc per ludum
(E agora no jogo)
Dorsum nudum
(Eu trago minhas costas nuas)
Fero tui sceleris
(À tua vilania)

Confusa, desnorteada, Justine corria às cegas pelas catacumbas, desconhecendo o caminho até a saída e evitando somente aproximar-se de áreas em que houvesse confronto. Os disparos ora se aproximavam, ora se distanciavam, assim como os gritos. Sentia que seria atingida a qualquer momento, que encontraria um oponente a cada curva, a cada reta, a cada escada... Algumas vezes olhava para trás, constatando que Masuku sempre a seguia. Ele, entretanto, continuava alheio a tudo, quieto, inexpressivo. Não percebia que estava contribuindo para deixar a jovem louca?

Ela parou de súbito junto a uma bifurcação. Havia alguém alguns metros à sua frente, um dos ocultistas, munido de um revólver e uma tocha, buscando refúgio atrás de uma pilastra. Estava parcialmente de frente para Justine, sem no entanto notá-la, o rosto visível apesar do capuz. E, acima da cabeça de seu seguidor, Clare viu... O nome se encontrava em letras grandes, claras, perfeitamente legíveis... Michel Dupont. E, pouco abaixo deste, uma série de números enfileirados. A estudante sabia que informavam o tempo restante de vida do humano, mas nem cogitava qual seria o padrão de contagem. Horas, minutos, segundos? De qualquer forma, o fato de estar em sentido regressivo era nítido, e aparentemente o valor se aproximava do fim, dada a grande quantidade de zeros e as últimas unidades que se esvaíam...

 

BANG!!!

 

A suspeita de Clare se confirmou quando o religioso tombou morto com um tiro no rosto, o cadáver desabando com as costas junto ao pilar. Assustada, Justine recuou alguns passos, sentindo o coração quase explodir e os pulmões terem dificuldade em reter ar, para então retornar correndo pelo caminho em que viera. Eles não podiam pegá-la. Nunca!

 

- - - - - - - -

 

O disparo de Souza encontrou a face do inimigo sem que este pudesse jamais saber o que o acertara. O corpo caiu encostado à coluna, enquanto os demais policiais prosseguiam. Os fachos das lanternas se uniam, se afastavam, se perdiam... E, frações de segundo depois de o fanático ter caído, passos foram ouvidos, afastando-se. Mais algum defensor de Kira? Ou a própria suspeita? Krammer se adiantou em relação ao grupo para verificar, quase correndo.

–         Eliza, espere! – exclamou Matsuda, estendendo um braço na direção da loira.

A totalmente inesperada resposta desta foi se voltar de modo abrupto para trás e atirar com sua pistola, só não atingindo o japonês devido a este ter se abaixado. Antes que seus quatro colegas pudessem se recuperar do ataque e assimilar o que ocorrera, a estadunidense desapareceu pelos túneis...

 

A outra equipe acabava de eliminar mais um ocultista, o qual, alvejado pelos tiros, despencou rolando pelos degraus de uma escada. Deveria haver dezenas daqueles malditos pelas catacumbas. Uma curva, e mais dois inimigos foram tirados de ação, Rivera por pouco se esquivando de uma bala. Boruanda a observava a todo o momento, mantendo, de forma discreta, o foco de sua lanterna sobre ela. Desconfiava que, de alguma forma, pudesse ser a traidora...

Ackerman, com um curativo improvisado no braço, liderava a marcha:

–         Vamos! Esta noite nós prenderemos Kira!

 

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Sors salutis
(O destino está contra)
Et virtutis
(Minha saúde)
Michi nunc contraria
(E virtude)
Est affectus
(Dás)
Et defectus
(E tiras)
Semper in angaria
(Sempre escravizando)
Hac in hora
(Então agora)
Sine mora
(Sem demora)
Cordum pulsum tangite
(Puxa essa corda vibrante)
Quod per sortem
(Já que o destino)
Sternit fortem
(Extermina o forte)
Mecum omnes plangite!
(Chorem comigo!)

 

Justine corria cada vez mais sem rumo. Tropeçava, caía, reerguia-se. Continha as lágrimas de desespero que queriam porque queriam brotar de seus olhos. Faltava-lhe ar, mas não parava. Atrás de si, Masuku continuava em sua marcha serena e tranqüila. Mudo.

Dobrou uma curva, percorreu parte de um novo túnel... até que o azar fez-se mais uma vez presente. A lanterna de Clare piscou uma, duas vezes... A luz proveniente dela se enfraqueceu... e, para infortúnio da jovem, apagou-se de vez, deixando-a no escuro. As pilhas haviam acabado, e ela não tinha reserva.

–         Destino, destino, destino... – ela murmurou de forma quase frenética, girando sobre os próprios pés enquanto tentava pensar numa solução.

O breu parecia faminto e desejava engoli-la, assim como as fachadas das casas durante o trajeto até ali na noite anterior. Até que uma chama de esperança surgiu, numa direção aleatória. Um pequeno foco de claridade, amarelado, remetendo a fogo. Tateando o ar em busca de uma parede para se apoiar – a qual logo encontrou –, Justine avançou com cautela na direção da luz. Ao aproximar-se o suficiente, viu que se tratava de uma tocha jogada no chão, ainda acesa. A julgar pelas marcas de sangue ao redor, pertencia a algum de seus seguidores, que a soltara ali por estar ferido. Agradecendo em seu íntimo por tê-la encontrado e por não ter se apagado, ela apanhou-a e, colocando o Death Note momentaneamente embaixo de um dos braços, usou sua mão livre para preservar a chama.

O fogo logo se avivou, e a moça acreditou que poderia prosseguir em sua fuga. Tiros chegavam perto. Com uma mão erguendo a tocha, utilizou a outra para carregar o caderno, apoiando sua extremidade inferior junto ao ventre, numa pose que lembrava uma outra dama francesa de pé na baía de uma grande metrópole. Tornou a correr, aflita. Até que, de repente, alguém a agarrou fortemente pelo braço. Chorosa, Justine passou a tentar se soltar, quando uma calma voz feminina lhe disse, semblante oculto na penumbra:

–         Fique tranqüila. Estou aqui para ajudá-la.

A personagem se revelou como uma linda mulher loira de terno e arma em punho, e Clare acabou se perguntando se não estaria encarando uma versão mais velha de si mesma...

 

- - - - - - - -

 

–         Krammer é a maldita traidora! – exclamou Yahudain, alterado.

O grupo seguia pelos túneis com atenção agora redobrada, recuperado do ataque, porém não da traição. Pensaram em tentar contatar “R” de alguma maneira para reportarem o ocorrido, mas a verdade era que “R” talvez já soubesse disso há um bom tempo, ocultando dos demais a informação. O que somente aumentava a raiva que sentiam.

Após examinarem uma cripta, os policiais encontraram um capacete junto ao solo, igual àqueles que usavam. Eliza abandonara o seu, certamente por estar do mesmo lado que Kira e assim não temer seu poder. Hoshi chutou o equipamento, frustrado. Matsuda, com um gesto, pediu silêncio. Afinal, eles não desejavam atrair mais fanáticos. Os passos rápidos que ouviram logo depois, todavia, revelaram que outros deles se aproximavam.

As armas tornaram a agir.

 

A outra equipe também prosseguia abrindo caminho entre o exército de adoradores da morte. Os mantos que vestiam, assim como suas carnes, eram sumariamente ceifados pelas balas logo que surgiam diante dos investigadores. Ackerman continuava à frente, empenhado em terminar aquilo logo. De repente, porém, um susto: um projétil disparado por um dos inimigos atingiu de frente o capacete do alemão, fazendo-o tombar para trás! O ocultista foi liquidado e os colegas de Günter se apressaram em ampará-lo, voltando as lanternas para sua cabeça com o intuito de medir o estrago que fora feito...

Por sorte, o tiro acabara passando de raspão, tendo como único efeito trincar o visor do equipamento. Enxergar com clareza através dele, ainda mais na ausência de luz, ficava agora impossível, porém Ackerman não sofrera qualquer ferimento além de um levíssimo corte numa das têmporas. Levantando-se do chão, o germânico falou aos companheiros:

–         Não se preocupem, eu estou bem! Não foi nada!

–         Mas... – oscilou Rivera, parecendo bastante suspeita a Boruanda.

–         Vamos logo! – bradou o loiro, retirando o capacete e atirando-o ao solo.

–         Você não pode fazer isso, está louco? – preocupou-se Dennegan.

–         Se eu ficar frente a frente com Kira, arrancarei o caderno das mãos dela antes que ela possa escrever meu nome! Vamos!

Avançar com o rosto desprotegido era perigosíssimo naquelas circunstâncias, mas o calor do momento impediu que argumentassem mais contra o alemão. Seguiram adiante.

 

A loira misteriosa puxava Justine pelos túneis e câmaras rumo a um destino ainda mais incerto. Passavam por cadáveres de fanáticos, por alguns deles ainda vivos que recuavam... Nenhum reagiu contra a mulher – sinal que a conheciam e esperavam sua presença ali. Enveredaram-se por um setor obscuro das catacumbas, com passagens tortuosas e divisórias estreitas. Atrás delas, alguns disparos a esmo destroçaram uma fileira de crânios numa parede. Continuaram correndo. Havia uma bifurcação logo à frente.

A mulher direcionou Clare para o caminho da direita, mas no da esquerda... vinha, bem próximo, um grupo de policiais. E eles as viram.

–         É ela, a suspeita! – bradou um homem de sotaque alemão. – Justine Clare!

Todos eles tinham as faces ocultas por capacetes – uma medida inteligente – com exceção do investigador que gritara. Imprudência? Talvez. A questão era que dera grande azar, pois, apesar de ser puxada pela inesperada aliada e ter encarado por muito pouco tempo os inimigos, Justine conseguiu ver e memorizar claramente o nome do sujeito. Günter Ackerman. Bonita composição. Gerava respeito.

A auxiliadora de Kira correu ainda mais depressa, a órfã acompanhando sua velocidade como podia. Por suas costas, balas pipocaram, indo cravar-se no fim da passagem, bem à frente. Tinham de sair logo dali ou cairiam mortas pelos tiros. Fizeram nova curva. Os dedos de Clare formigavam para abrirem o Death Note e utilizá-lo, mas naquele momento seria impossível.

O túnel que haviam adentrado agora parecia sem saída. O desespero de Justine cresceu. A outra, porém, aparentava não perder a firmeza um segundo sequer. Parou subitamente diante de uma parede composta por tijolos. De forma veloz, pressionou alguns deles com as mãos numa seqüência pré-determinada e, para surpresa da estudante, parte da estrutura de alvenaria se moveu, revelando uma passagem secreta repleta de teias de aranha e que liberava nauseante odor fétido. A mulher puxou Justine para dentro da abertura, a qual se fechou atrás delas logo que a atravessaram. Aturdida, Clare deixou sua tocha cair, e a mesma se apagou ao entrar em contato com um líquido estranho que cobria os pés das fugitivas até seus calcanhares. Era dele que provinha o cheiro incômodo. Uma passagem levando ao sistema de esgotos, muito provavelmente.

A lanterna da aliada passou a guiar o caminho, e por ele seguiram.

 

A equipe perseguidora freou, ofegante e quase sem balas. A suspeita desaparecera sem mais nem menos num conjunto de túneis. Nenhum sinal dela e nem da mulher não-identificada que a impelia. Havia algo estranho nisso, todavia. Foi Izabela quem se manifestou primeiro a respeito:

–         Aquela pessoa com Clare me pareceu familiar...

–         A mim também! – anuiu Scott, cujo receio em relação à espanhola começava a desvanecer.

–         Talvez nós tenhamos estado diante da traidora... – suspirou Mark. – E só vejo um nome que se encaixaria nisso...

–         Krammer – Boruanda afirmou pesadamente.

–         O que acha disso, chucrute? – indagou Dennegan, voltando-se para Günter.

Para surpresa de todos, o alemão, com os olhos bem abertos, havia erguido sua pistola e apontava o cano dela para a própria cabeça. Antes que seus colegas pudessem impedi-lo de algum modo, o disparo veio...

Rivera gritou de horror enquanto o corpo sem vida de Ackerman caía de lado, um jato de sangue e massa cinzenta tingindo o chão aos seus pés. Scott tremeu de medo, boca aberta, mas incapaz de proferir palavras. Mark sentiu que ia desmaiar, no entanto se manteve consciente. Izabela começou a chorar, o sul-africano abraçando-a. O reino de terror de Kira. Eles se encontravam no meio dele.

 

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Günter Ackerman, suicídio.

 

Justine leu o que acabara de escrever uma última vez antes de fechar o caderno. O Olho de Shinigami fora mesmo uma útil aquisição, apesar de seu alto preço. Concluindo a tarefa, fez um gesto à mulher que a guiava, informando que poderiam continuar. A marcha pelos esgotos era repugnante, mas ao menos haviam despistado momentaneamente os detetives. Masuku ainda as seguia. E o brilho rubro em seus olhos de deus da morte nunca havia estado tão intenso.

 

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Hoje eu tive um sonho que ninguém podia ter

E joguei fora tudo que não me servia mais

Pensamentos aos quais não cederei duelam sempre dentro de mim

 

E se eu ainda estou na luta entre a verdade e o ideal

E meus pés estão atados às escolhas que já fiz

Meu impulso para agir ainda não morreu porque

Ainda tenho um coração forte que a mim concede o poder

 

Orgulho, ganância, medo, culpa, pretensão

Impedirei que cresçam dentro de mim

Não estou sozinha e digo que poderei assim

Tornar-me luz nas densas sombras

 

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Prévia:

 

Nossa Senhora Kira, vossa presença traz equilíbrio e justiça ao mundo!

 

Nós lhe somos eternamente gratos por vossa benevolência e sábios julgamentos.

 

Estamos aqui esta noite para demonstrarmos nossa imensa gratidão!

 

Próximo capítulo: Luz


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