Death Note: Ressurreição escrita por Goldfield


Capítulo 12
Capítulo XII: Alvo




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/28156/chapter/12

Crise no sistema democrático

Onde está a justiça?

Crise no sistema democrático

Onde está a justiça?

 

Assassinos à solta depois de julgados

Quem punirá seus crimes?

Assassinos à solta depois de julgados

Quem punirá seus crimes?

 

Hey, hey, francesinha

Seja o juiz, seja o Kira!

Hey, hey, francesinha

Seja o juiz, seja o Kira!

 

Porque em terra de justiça cega

Quem tem um caderno é rei!

Porque em terra de justiça cega

Quem tem um caderno é rei!

 

Hey, hey, francesinha

Seja o juiz, seja o Kira!

 

- - - - - - - -


Capítulo XII

 

“Alvo”

 

O Shinigami sentia-se imensamente tentado a cada instante. Seu real desejo era virar-se e observar Justine enquanto se trocava, porém sabia que a jovem o repreenderia imensamente por isso. O episódio do banho ainda estava vivo em sua memória. Assim, mantinha-se imóvel num dos cantos do quarto, voltado para as paredes como uma criança de castigo e com as inumanas mãos vendando-lhe os olhos. Ouvia apenas os mínimos sons provocados pela garota conforme ela terminava de se arrumar, o cuidado tomado por esta dando-se pelo fato de que sairia mais cedo de casa aquela manhã e não queria acordar o avô. Por fim Masuku escutou o fechar de um zíper e, com as costas banhadas pelos raios de sol do princípio de dia, indagou ansioso:

         Terminou?

         Terminei – a loira respondeu sem dar muita atenção ao deus da morte.

Ele se virou e, pasmo, deslumbrou-se diante daquela que acreditou ser uma pessoa totalmente diferente. De fato, era difícil crer ser ela a mesma Justine Clare! Apesar da aparência física reconhecível, as roupas e o modo como se arrumara distinguiam-na de forma plena de sua normal figura. Usava uma blusa de lã na cor vinho que realçava seu belo busto, os seios proeminentes provavelmente delineados sob uma camisa apertada por baixo. As pernas estavam cobertas por um par de calças jeans novas e os pés calçando botas que a estudante fora vista usando antes somente duas ou três vezes. O rosto, todavia, era o que mais surpreendia: encontrava-se maquiado com esmero, os olhos verdes adornados com sombras assemelhando-se a duas jóias perfeitamente lapidadas e inseridas em meio a seu semblante encantador. Os lábios haviam sido realçados com um batom de tonalidade similar à da blusa, tão atraentes que era quase impossível deixar de fitá-los. As orelhas portavam brincos de pequenas pedrinhas azuis e o pescoço lhe era cingido por um colar brilhante contendo em sua extremidade a pequena representação de uma balança equilibrada, presente que ganhara do avô quando entrara na Sorbonne. Simbolizava justiça. E era em nome dela que visitaria o Louvre aquele dia.

         J-Justine... – balbuciou o Shinigami, atônito. – Você está...

         Não pense que me agrada estar assim, e nem acredite que voltará a me ver desta forma em outras ocasiões... – ela murmurou, passando as mãos pelos cabelos soltos e então abrindo uma bolsa que deixara em cima da cama. – Sabe bem qual é meu objetivo, e para isso preciso me tornar uma isca.

O perfume que irradiava do corpo de Clare foi então percebido por Masuku, que se deixou dominar durante um momento pela fragrância quase divina combinando em perfeita harmonia com a estonteante aparência da moça, antes de falar:

         Está mesmo determinada a fazer isso?

         É preciso, já deixei bem claro! Chamando a atenção do maníaco, eu o atrairei até um local isolado nas imediações do museu e, quando ele pensar em me atacar, já estará condenado pelo poder do Death Note. Tendo um caderno desses como arma, não há o que temer. Não se preocupe. Sairei ilesa e ninguém suspeitará de nada.

         Mas... não quer que eu a acompanhe? Ele não poderá me ver, e posso acabar sendo de alguma valia, caso perceba algo que escape aos seus cuidados...

         Você será muito mais útil permanecendo aqui e registrando os nomes e dados de criminosos para mim, como faz todos os dias. Mesmo eu me dedicando a um alvo específico temporariamente, o julgamento dos demais meliantes não pode parar!

O ser alado soltou um suspiro conformado e em seguida disse, contendo uma risada:

         Se sua amiga Paule a visse assim, acharia que finalmente está se interessando por garotos!

         Paule nunca me verá assim, felizmente. Quanto à minha ausência na universidade, bastará que eu invente alguma doença ou compromisso de última hora. Tudo está sob controle.

E era assim que Justine desejava permanecer, no comando de todas as suas ações e conseqüências, evitando qualquer deslize ou brecha que pudesse ameaçar seus planos. Vinha fazendo isso de maneira perfeita e não havia razão para crer que isso mudaria após sua incursão no Louvre. Vistoriando a bolsa, certificou-se de que o Death Note estava seguro em seu interior, mas, antes de fechá-la, optou por retirar o relógio de bolso de dentro dela e carregá-lo num dos compartimentos da calça. Assim seria mais rápido e fácil apanhá-lo em caso de urgência.

         Até mais tarde, Masuku! – ela despediu-se, já se encaminhando até a porta.

         Até!

A réplica do Shinigami fora um tanto vazia e ausente de ânimo. Viu a jovem sair com aparente calma e trancar a fechadura, deixando-o mais uma vez sozinho para cumprir sua tarefa em auxílio a ela. Apanhou o controle remoto e, apontando-o para a TV, ligou-a sem muita vontade. Preferia muito acreditar no contrário, porém tinha consigo firmemente que as ações de Justine ao longo daquele dia marcariam o início de seu fim.

- - - - - - - -

 

Matsuda afastou ligeiramente a cadeira da mesa e alongou os braços, cansado. Trabalhava há horas na central de investigações junto com seus colegas de equipe, sendo que nem notara que a noite já havia chegado. Olhou mais uma vez para a pilha de papéis em cima do móvel. “R” pedira que todos os membros da força-tarefa examinassem os arquivos do antigo Caso Kira, inclusive Touta, que apesar de julgar já conhecer tais documentos do início ao fim, aceitou a empreitada. Naquele momento, perguntou-se a respeito de como o misterioso detetive que agora liderava o grupo tivera acesso àquelas informações, compartilhando-as com todos os demais de forma tão simples. “R” teria possuído ligações com “L”? Afinal, quem era “R”?

O capitão, com tais indagações sem resposta ecoando em seu cérebro, deu um suspiro e passou os olhos pela sala, visualizando os companheiros envolvidos por seus esforços e algo mais que o intrigou. Naquele exato momento, o agente Adams recebia uma ligação em seu celular e, depois de verificar através do visor quem o contatava, dirigiu-se com pressa para fora do recinto. Matsuda vinha observando as suspeitas ações do agente do FBI desde que o encontrara pela primeira vez em Tóquio. Sabia que ele vinha sendo um dos maiores aliados de Near, mas, após a morte deste, ficava evidente a filiação de Ernest a “R”. Quais seriam suas verdadeiras intenções?

Foi tomado por esse sentimento de dúvida que Touta levantou-se da cadeira sem ser notado pelos outros e, discreto, deixou a sala pouco depois de Adams. Ganhando o exterior, deparou-se com o agradável ar fresco noturno, que o fez relaxar os pulmões e ao mesmo tempo aguçou seus sentidos. Orientando-se pelas luzes dos lampiões espalhados pela estância, logo encontrou a silhueta do estadunidense encostada à mesma árvore junto à qual, noites antes, surpreendera a soturna figura de Ryukuu.

Naquele momento, o misterioso homem de óculos escuros encerrava a comunicação, desligando o telefone. Como estava de costas para o japonês, este concluiu que a conversa fora mesmo rápida, e Adams não a encerrara de súbito com o intuito de evitar que ele a ouvisse ou algo parecido. Isso não parecia ser de seu feitio.

Separado dele por alguns metros e ainda despercebido, Matsuda resolveu se anunciar:

         Boa noite, Ernest.

         Ah, boa noite, capitão – ele respondeu com naturalidade, guardando devagar o celular em seu sobretudo, sem o menor ímpeto de escondê-lo.

Touta então se calou por vários segundos, sem saber o que falar. A cena era até um pouco constrangedora, sendo que permaneceu de pé encarando o agente sem nem mesmo poder fitar seus olhos. Adams, por sua vez, também nada disse e tampouco saiu dali, pois sabia que o colega desejava expressar-lhe alguma coisa.  Seu rosto denotava paciência. Já o marido de Sayu foi remetido mais uma vez aos seus primeiros tempos como policial, sua inexperiência e atitudes impulsivas quando parte do time encabeçado pelo primeiro “L”. Mas não. A época era outra, e a situação exigia que ele fosse o novo homem que vinha se tornando nos últimos anos, mesmo que tal mudança não o fizesse totalmente feliz.

         Você é bem próximo a “R”, não? – indagou.

Ernest replicou sem alterar em nada sua expressão facial:

         Nós temos nossos vínculos.

         Presumo que ele não se revelará a nós tão cedo, correto?

         Correto, para a segurança dele e de todos nesta investigação.

As palavras de Adams soavam sérias e ternas ao mesmo tempo. Ele era alguém firme e maleável, fechado e amistoso: um indivíduo que conseguia conciliar duas maneiras totalmente opostas de agir com aqueles que o cercavam se isso significasse o fechamento com sucesso do caso. Matsuda olhou para o chão, sua atenção se perdendo em meio às raízes da árvore. E, julgando que não seria alvo de demais perguntas, o integrante do FBI dirigiu-se de forma tranqüila de volta ao centro de operações, quando foi detido por mais um chamado do capitão:

         Agente Adams!

         Diga – Ernest parou, mas não se voltou para Touta.

         Se eu descobrir por mim mesmo a identidade de “R”, você a confirmaria?

Um sorriso invisível ao japonês surgiu na face do estadunidense quando ele afirmou:

         No momento em que você conseguir identificar “R”, Matsuda, eu lhe garanto que estarei lá!

Deixando para trás um homem com uma sede ainda maior de respostas, Adams tornou a caminhar em silêncio e logo adentrava novamente a sala na qual todos os demais trabalhavam.

 

- - - - - - - -

 

Assim que desceu do ônibus na companhia de um grupo de pessoas, tanto parisienses quanto turistas, Justine viu-se diante do amplo complexo no coração da cidade que compunha o Museu do Louvre. Os conceitos de velho e novo, clássico e moderno, eram unidos pela arquitetura requintada do antigo Palácio do Louvre, ou Palais du Louvre, originalmente concebido como uma fortaleza pelo rei Felipe II na Idade Média e desde então várias vezes modificado e restaurado, e a imponente pirâmide de vidro e metal no pátio principal, erigida durante a década de 80 com a proposta de renovar o aspecto da construção e que atualmente servia de entrada principal aos visitantes. Ao menos na Sorbonne, Clare sabia que tal edificação de cunho futurista causava muita controvérsia tanto entre alunos quanto professores. Enquanto alguns aprovavam o caráter de modernidade que ela fornecia ao museu, outros a achavam uma extravagância do então presidente François Mitterrand e defendiam firmemente a opinião de que ela zombava de tudo que o Louvre representava.

A jovem fitou o céu nublado e pensou que lhe seria bastante favorável se chovesse, pois assim poderia propositalmente molhar-se e os sintomas de uma gripe reforçariam sua desculpa de que faltara à universidade devido a uma doença inesperada. Afinal, um mundo que há pouco se recuperara de uma pretensa pandemia causada pelo vírus H1N1 se tornara um tanto paranóico no tocante a tais coisas. Antes de dirigir-se até o saguão subterrâneo embaixo da pirâmide para poder ter acesso às diversas alas do museu, Justine apalpou discretamente a bolsa que carregava, só voltando a andar naturalmente quando tateou em seu interior as dimensões do Death Note. Como o caderno seria sua única defesa contra o eventual maníaco, era prudente certificar-se uma última vez de que o trazia consigo antes de adentrar o território inimigo. Aliviada, ela então enfiou as mãos nos bolsos e, forjando um leve sorriso de admiração pelas instalações ao seu redor, somou-se a uma pequena aglomeração de turistas japoneses, avançando até o interior do Louvre. Ainda era de manhã. Tinha o dia todo pela frente para poder cumprir seu intento.

 

- - - - - - - -

 

No monótono dormitório, a misteriosa mulher vagava para lá e para cá, como se algo a atordoasse, a afligisse profundamente. Suas botas pisavam o carpete de modo inconformado, incerto. Nas sombras, como sempre, a demoníaca silhueta alada de seu companheiro inumano apenas a observava, imóvel e quieta. De repente a atordoada personagem parou, como que cansada, respirando pesadamente. Faltava-lhe ar, como se o sentimento que a envolvia fosse mais desgastante do que um intenso esforço físico. Então se voltou para o soturno espectador de suas emoções perguntando, lívida e sincera:

         Por que as pessoas nunca mudam?

Ele moveu de leve a cabeça e replicou, no tom mais natural que sua voz permitia:

         No início eu acreditava que esta minha nova condição me tornaria capaz de compreender melhor os seres humanos, mas percebo que na verdade a cada dia eles me parecem mais estranhos.

A moça jogou-se sobre a cama num suspiro e, com os braços abertos sobre o lençol, passou a fitar o teto fixamente. Como queria que aquela cobertura branca, sólida e imutável lhe fornecesse as respostas das quais necessitava! Assim ela conseguiria mais forças para continuar lutando, levar seu plano adiante. Fechou os olhos. Teria de conviver com aquelas repentinas ondas de desespero durante mais algum tempo.

         A esta altura, nossos inimigos já devem estar cientes de nossas ações e que seus objetivos estão comprometidos... – considerou a criatura.

         Eu sei disso... – ela respondeu, mais calma, porém ainda com seus pensamentos dominados por lâminas que ceifavam suas esperanças. – E por esse motivo, a partir de agora... nós não podemos errar!

Estava coberta de razão. Mas será que conseguiriam? Se eles vinham agindo sem falhas até então, não havia porque pensar que de súbito colocariam tudo a perder, mesmo considerando os imensos riscos que sempre corriam. Amavam-se, e juntos levariam aquela cruzada até o fim.

Eles não temeriam o ceifador.

 

- - - - - - - -

 

Death Note – Histórico:

 

 Acreditando que Kira possuía acesso à central de operações da polícia japonesa, “L” enviou em segredo doze agentes do FBI ao Japão para investigarem os familiares dos oficiais.

 

Logo percebendo que era seguido por um desses agentes, Raito Yagami elaborou um esquema para descobrir a identidade do investigador, forjando um assalto a ônibus graças ao Death Note. Assim soube que seu nome era Raye Penber.

 

Utilizando-se mais uma vez das propriedades do caderno, depois de devidamente testá-las, Raito utilizou Penber para eliminar todos os demais membros do FBI no Japão e o próprio Raye.

 

No entanto, Penber possuía uma noiva, chamada Naomi Misora, ex-agente do FBI. Intrigada quanto à morte do amado, decidiu utilizar sua experiência como investigadora para colaborar com a equipe de “L” e deter Kira. Raito, no entanto, encontrou Naomi antes que ela pudesse entrar em contato com os policiais e induziu-a a um suposto suicídio através do Death Note, o corpo nunca sendo encontrado...

 

- - - - - - - -

 

Justine há horas se encontrava parada diante do quadro, mãos unidas perto do ventre e cabeça ligeiramente erguida numa expressão de fascínio.

“A Liberdade Guiando o Povo” era a mais conhecida obra do pintor francês Eugène Delacroix, concebida em comemoração à Revolução de 1830 no país. Uma das imagens mais marcantes da História ocidental, retratava a Liberdade, personificada numa mulher descalça e com os seios nus, que brandia numa mão a bandeira nas cores vermelha, branca e azul que lembrava os ideais sobre os quais fora erguida a moderna nação francesa e, na outra, um mosquete munido de baioneta. Ela instigava a população, também armada e representada por pessoas oriundas de diversas camadas sociais, a esmagar seus inimigos, que jaziam mortos aos pés dos combatentes. Além de ser símbolo da era de revoluções que tivera início na França em 1789 e se estendera século XIX adentro, o quadro possuía um sentido a mais para Justine…

Ela passou a se imaginar no lugar da jovem Liberdade, conduzindo o povo à luta com a mesma determinação. No entanto, trazia numa das mãos, ao invés do mosquete, sua caneta-tinteiro. Na outra, substituindo a bandeira, erguia para todos o Death Note, símbolo e arma máximos de sua guerra contra o mal que assolava a Terra. Os mortos pelo solo eram os inimigos da justiça, desde criminosos até autoridades e governantes que impediam a punição dos mesmos e, perpetuando leis e códigos hipócritas, permitiam que todos os dias a balança da integridade fosse desequilibrada. Clare constituía aquela que mudaria tal situação, banindo as falhas legislações e julgamentos humanos e, por meio do caderno, privando do direito de viver quem cometesse atos que causassem perda e dor a outras pessoas. Ela guiaria a sociedade rumo a um novo patamar, curando a civilização do câncer que a consumia devido àqueles que não mereciam nela estar. Justine apresentaria a humanidade… a um novo mundo!

Seu devaneio terminou de forma súbita devido ao cochicho de uma dupla de holandeses que passava pelo segundo andar da Ala Sully do Louvre naquele momento, onde a obra se encontrava exposta. A universitária ainda a encarou por alguns instantes antes de baixar os olhos e se lembrar de sua meta. Tinha de encontrar e eliminar o estuprador. Ela já havia transitado por boa parte das galerias e ninguém a abordara, nem mesmo lançando-lhe um olhar de desejo ou interesse. Por quanto tempo ainda teria de agir como isca para um homem que pretendia abusar de si e depois matá-la?

Tentando aliviar a tensão, veio-lhe à mente o divertido pensamento a respeito do artista Eugène Delacroix ser algum ancestral distante de sua amiga Paule, devido a ambos possuírem o mesmo sobrenome. Logo rejeitou a idéia, porém, pois não acreditava que a garota com a qual convivia seria capaz de pintar um quadro como aquele. Nem mesmo em um milhão de anos.

         É uma obra-prima, não acha? – indagou uma voz masculina atrás de Justine, sem mais nem menos. – Adoro os artistas do Romantismo e o que eles expressam através de suas criações.

Clare voltou-se com o coração acelerado. Viu a poucos metros de si um rapaz de prováveis vinte e cinco anos de idade, de cabelos pretos, óculos no rosto sereno e físico mediano. O tronco estava coberto por uma jaqueta e uma camiseta negras, esta última possuindo estampa de uma banda de rock francesa, as pernas dentro de uma calça jeans e os pés em tênis novos. Parecia ser alguém bastante culto e amistoso, o tipo que atrairia uma garota universitária de imediato. Mas, claro, Justine não era uma garota universitária como outra qualquer…

         A arte muitas vezes está carregada de ideologia – disse ela, sorrindo.

         Quase sempre, eu diria – a resposta dele veio cheia de simpatia e de disposição quanto a iniciar uma boa conversa. – Você é estudante?

         Era. Formei-me apenas no colegial. Agora estou arriscando trabalhar com belas-artes. Tento pintar quadros.

         É uma pessoa bem talentosa, pelo que vejo. Sou Louis e estudo Filosofia em Bordeaux. Estou passando férias aqui em Paris.

         Prazer. Sou Marianne Fontaigne.

Obviamente, a órfã optou por apresentar-se utilizando um nome falso. Minimizar os riscos lhe era algo prioritário. Preparava-se para falar algo mais ao garoto, imaginando como conduziria o bate-papo de modo a descobrir se ele era o maníaco ou não, quando o ouviu chamar alguém que estava em algum local próximo na galeria:

         René, venha cá! Encontrei alguém que irá gostar de conhecer!

Eis que em seguida um outro rapaz, que até então admirava o retrato do rei Luís XIV pintado por Hyacinthe Rigaud, aproximou-se do amigo com uma expressão de superioridade em seu semblante. Tinha cabelos loiros assim como Justine, membros um tanto bem-definidos – evidência de que destinava algum tempo a atividades físicas – e vestes mais requintadas: um terno verde-escuro com calças da mesma cor, peito adornado por uma gravata vinho e sapatos italianos nos pés. Um pouco mais velho do que Louis, parecia ser um homem de certa nobreza em seu ar.

         O que houve para gritar assim por mim em pleno interior do museu? – ele perguntou em tom baixo logo que chegou perto o suficiente.

         Esta é Marianne Fontaigne! – o jovem de óculos o apresentou à bela moça. – Parece ser uma exímia pintora!

         Pintora, hem? Sou René Vallenau. Estou encantado.

E, dizendo isso, apanhou a mão direita de Clare com delicadeza e beijou a mesma usando de atencioso requinte. Ela achou tal atitude totalmente ridícula, mas precisava manter o disfarce. Assim, abriu um sorriso feliz, como se houvesse sido arrebatada em cheio pelo charme do garoto.

         E você, o que faz? – ela inquiriu simulando interesse.

         Sou um estudioso das artes, porém creio que na verdade vivo para poder encontrar pessoas tão deslumbrantes quanto você!

         Ora... muito obrigada!

Justine não conseguiu corar, nem mesmo se forçando a isso. Aquela pieguice toda apenas a deixava mais e mais enojada! Como aquele conquistador barato acreditava que poderia ganhar o amor de uma mulher daquele jeito? Era certo que existiam sim aquelas que adoravam homens como René, mas... será que não percebiam como eram idiotas, talvez até mais do que ele? O mais interessante era que Louis permanecia alheio à situação, face inexpressiva. Ou já estava acostumado aos modos do amigo, ou então se sentia tão constrangido quanto a estudante de Direito.

         Por que não damos uma volta pelo museu? – propôs o loiro. – Nada melhor do que obras de arte unidas a uma conversa agradável! Creio que, por ser uma artista, teremos ótimos assuntos a tratar!

         Por mim tudo bem... – assentiu Justine que, apesar de incomodada, não desejava separar-se dos dois antes de ter certeza de que estavam acima de suspeitas.

         Certo – Louis também concordou, apesar de não demonstrar muito ânimo.

Os três então passaram a caminhar pelo pavilhão, rumo às escadas que conduziam ao andar inferior. Clare desejava apenas que tudo aquilo terminasse o quanto antes...

 

Andaram por cerca de uma hora, e Justine já estava disposta a aniquilar aqueles dois mesmo se fossem inocentes. Sentia-se tão enfadada na companhia deles que começava a crer que mereciam a morte assim como o autor de um crime hediondo. Enquanto René lhe lançava cantadas melosas a quase todo momento e fazia de tudo para chamar sua atenção, Louis permanecia calado, insensível ao que acontecia ao redor de si e desse modo incapaz de salvar a moça das garras do sedutor barato que tentava ganhar seu coração.

Dominada por tais desejos homicidas, porém mesmo assim tentando manter a calma e simpatia exteriores, ela passou a se distrair com os quadros das diferentes alas do museu e percebeu que vários deles possuíam temática referente à morte. Começando por “O Martírio de São Dinis”, de Henri Bellechose, que colocava lado a lado a execução do santo padroeiro da França, prestes a ser decapitado por um carrasco barbudo, e a crucificação de Cristo, sua postura resignada na cruz denotando o ar de suplício a dominar a obra. Já “A Morte da Virgem”, de Caravaggio, focava-se no sofrimento dos Apóstolos junto ao corpo desfalecido de Maria, o pesar por uma pessoa amada que se fora. “A Exposição do Corpo de São Boaventura”, de Francisco Zurbarán, contava em seu centro com um cadáver trajado em branco que se assemelhava a um fantasma, as sombras da pintura, principalmente junto ao rosto do morto, deixando-a extremamente soturna.

Tais representações do fim da vida humana só deixavam Justine mais aflita em encontrar e eliminar o maníaco que vinha agindo no museu. Já quase convencida de que ele não poderia ser nenhum dos dois garotos que a acompanhavam, preparava-se para inventar uma desculpa e se afastar deles, quando um toque de celular foi ouvido. Louis apanhou o aparelho que trazia no bolso, constatou quem ligava e falou, um pouco desconcertado:

         Desculpem, eu volto logo!

Em seguida afastou-se, desaparecendo na curva de um corredor ao mesmo tempo em que atendia ao telefone. Clare sentia o estômago embrulhar só de pensar que estava agora sozinha com René, porém talvez pudesse trabalhar a situação a seu favor. Aquele parecia ser um ótimo momento para perguntas.

         Quem pode ter ligado para ele? – fingiu curiosidade no tocante ao rapaz moreno. – A namorada?

         Não, Louis não namora... – o loiro replicou sorrindo. – É o pai dele. Os dois se falam muito. O velho não deixa o coitado em paz um minuto sequer!

         Que estranho...

Justine estava relativamente tranqüila. Mesmo se René fosse o estuprador, seria muito imprudente da parte dele agir logo ali, com tantas pessoas ao redor e câmeras de vigilância dispostas por todo o local. Ela estava certa de que, se encontrasse o criminoso, ele lhe faria um convite para deixar o museu ou algo parecido, levando-a então a algum lugar isolado no qual pretendia cometer o delito. Todavia, talvez a jovem nem precisasse se arriscar chegando a tal etapa. Quando tivesse indícios suficientes a respeito de quem era o maníaco, apanharia o Death Note – alegando ter tido uma súbita inspiração para pintar um quadro e fazendo questão de anotar as idéias no caderno – e executaria o maldito sem que nem ele mesmo soubesse o que ocorrera. A única dificuldade seria se o bandido, assim como ela, se apresentasse utilizando um nome falso, mas tinha certeza de que, caso acontecesse, conseguiria contornar tal obstáculo.

Tudo estava sob controle.

         E então, onde você... – Justine começou a dizer, quando foi interrompida.

René agarrou-a subitamente pelo ventre e, enlaçando-a com os braços, beijou-a na boca com vontade. Os lábios permaneceram colados por três ou quatro segundos antes que Clare conseguisse se soltar e, com os olhos arregalados, afastasse o rapaz num empurrão. Surgiu no rosto dele um sorriso cínico, e atreveu-se até a dar um risinho enquanto a ofegante universitária se recuperava.

         Mas o que pensa estar fazendo? – indagou ela, irritada de verdade.

         Pardon, não pude me conter...

         Ficou louco? Faça isso de novo e eu mato você! Mato, entendeu?

Apesar do loiro e das pessoas próximas, que haviam parado para observar a cena, não saberem, Justine não falava apenas em sentido figurado, possuindo mesmo um recurso para isso à mão. Com o rosto levemente corado – e odiava quando isso se dava – ajeitou a roupa e afastou-se um pouco de René enquanto o ar voltava aos seus pulmões. Precisava ter mais cuidado! Certamente lidava apenas com um garoto tarado, apesar de suas suspeitas a respeito dele agora crescerem, porém não podia abaixar a guarda como acabara fazendo há pouco sem notar!

         Voltei! – exclamou Louis, aproximando-se de novo dos colegas de passeio.

No entanto, logo que notou o clima pesado, tornou a calar-se e assumir sua postura indiferente. Os três deram continuidade à visita ao Louvre sem trocarem mais palavras entre si, até René, que certamente percebia a gravidade do que fizera, deixando de galantear Clare. Esta ficou mais aliviada devido a esse aspecto, mas o fato de ainda não ter uma suspeita concreta a respeito do maníaco a atordoava. Poderia estar seguindo pistas falsas ao mesmo tempo em que o criminoso fazia mais uma vítima inocente. Pensar nisso a deixou ainda mais atordoada, o que a levou a decidir se afastar da dupla de garotos para prosseguir com a caçada em outros locais nas imediações do museu; se Louis e René a seguissem, seria um sinal de que algo estava errado.

Infelizmente não teve tempo para levar a cabo tal mudança de planos. No momento em que se dirigiam ao saguão, Justine sentiu-se repentinamente zonza. Suas pernas oscilaram e ela por pouco não caiu. Foi amparada pelos dois rapazes, porém sabia que não estaria segura junto a eles. Um arrependimento monstruoso dominou seu ser justo quando, sem mais sentir a boca, não pôde evitar que fios de saliva escorressem de seus lábios. A tontura se intensificou, as pernas falharam de novo e, não mais podendo manter-se em pé, desabou sobre o piso do corredor, seus acompanhantes lhe segurando os braços enquanto diziam a algumas pessoas que se aproximavam para ajudar:

         Não se preocupem, ela é nossa amiga! Nós cuidaremos dela! É só um mal-estar passageiro, nós cuidaremos dela! Vamos levá-la a um hospital!

A estudante da Sorbonne via-se como uma completa imbecil. Falhara em sua missão, tornando-se presa fácil. O excesso de confiança devido à posse do Death Note a prejudicara de forma decisiva.

 

O beijo... O maldito beijo!

 

Sem sentir mais quase nenhuma parte do corpo, a última coisa que conseguiu presenciar foi a si mesma sendo arrastada para dentro de um carro estacionado perto do Louvre, e em seguida arremessada de qualquer jeito em cima do banco de trás. Ouviu então os dois jovens rindo e o som do motor sendo ligado. Logo que o veículo arrancou, Justine rolou para frente, incapaz de efetuar qualquer movimento para se segurar ou equilibrar, caindo do assento e batendo dolorosamente com a cabeça no encosto do banco do motorista.

Depois tudo se apagou.

 

- - - - - - - -

 

O inconformismo me domina

A indignação me impele

Este mundo está caótico

O mal domina livremente

 

Liguei hoje a TV

Mais um maníaco solto

Pena das vítimas que fará

Raiva do sistema que o favoreceu

 

Madame Guilhotina, faça justiça!

Reestruture este mundo de ponta-cabeça

Puna quem mereça, Madame Guilhotina

Sua justa lâmina está sedenta!

 

Madame Guilhotina, você me ouve?

Meu clamor impele seu mecanismo

Puna a todos, Madame Guilhotina!

O mundo lhe está pedindo socorro

 

- - - - - - - -

 

Prévia:

 

Hehehe, olá de novo, princesinha!

 

Pensa que vai conseguir escapar de nós? Você será nossa diversão esta noite!

 

Pareceu bem corajosa lá no museu quando a beijei... Vamos ver se ainda age assim com uma faca encostada à sua garganta!

 

Próximo capítulo: Falha


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!