Se as pessoas não tivessem visto a cena toda do estranho anjo, possivelmente elas pensariam que tudo aquilo havia sido minha invenção, afinal, dada as histórias ao meu respeito que se espalhavam como lendas por todos ali, eu não era de confiança alguma. Era o fim da humanidade e as pessoas ainda se importavam com fofocas, meu Deus.

Não posso negar que os contos que eram sussurrados em minha ausência (como se, com um grupo tão restrito, eu não tivesse percebido que eles falavam de mim) eram em partes verdadeiros, mas eu ainda defendia a ideia de que as pessoas levavam muito a sério esses erros do passado.

Sem termos calendários ou outros objetos de nossa antiga rotina, é difícil precisar quantos anos se passaram desde aquele angustiante momento, porém, dadas minhas lembranças enferrujadas, eu sabia que um bom tempo havia passado.

Os governos e as cidades ainda existiam, ambos tentando se segurar em bases já há muito derrubadas. A televisão ainda funcionava em alguns lugares, e de nosso abrigo perto da lâmpada da sala (a única luz que havia sobrado naquela casa) conseguíamos ouvir os gritos desesperados de um prefeito mandando todos ter calma naquele momento difícil, que tudo aquilo já estava sob controle e que as pessoas deviam parar de se preocupar. Era fácil para ele dizer isso enquanto estava em sua casa com energia de sobra para iluminar cada canto escuro de seu quarto.

Em um desses dias encobertos pela falsa calma da mídia, a casa em que eu e meu grupo estávamos ficou sem energia no meio da noite, calando os gritos das pessoas desesperadas na televisão, e tirando de nós a única chance de sobrevivência que tínhamos: a luz.

Assim que se ouviu o estalo fraco da lâmpada se apagando, todos a minha volta entraram em pânico, se acotovelando em busca de lanternas ou velas que pudessem estar perdidas pela sala. Buscando sua salvação.

Demorou poucos segundos de procura até que o rastejar conhecido por todos chegou aos nossos ouvidos. Misturados a gritos de misericórdia e medo, as risadas sussurradas dos nightwalkers ecoavam pela sala, enquanto suas garras cravavam-se em cada um dos sobreviventes, e seus dentes começavam a rasgar a carne.

Eu já não sabia o que fazer, eu era uma criança despreparada na época, sendo protegida em situações difíceis por todos que tivessem dó da órfã perdida pela cidade, porém agora eu via meus anjos protetores sendo devorados por seus pesadelos, ouvia seus pedidos de socorro sendo afogados pelo próprio sangue que lhes subia a garganta em seus últimos instantes de vida.

Uma voz em minha mente disse que aquela era a hora em que eu morreria. Eu esperava para ver um retrocesso de minha vida, queria poder sentir tudo de bom que havia acontecido antes de tudo desmoronar, mas nem mesmo esse maldito flashback queria passar diante de meus olhos, deixando-me desamparada no escuro, aguardando o momento em que uma criatura chegaria para me tirar o último suspiro.

Algo se aproximou de mim, e eu sabia que era o fim. Senti suas mãos frias agarrarem meu braço, suas garras afiadas cortando minha pele e sujando-a com meu sangue, a boca apodrecida aproximou-se de meu pescoço, o ponto vital de meu corpo, e eu pude sentir o cheiro da morte em seu hálito. Ótimo perfume para ser o último que você sente em sua vida.

Porém a criatura parou a centímetros de meu pescoço e se afastou. Naquela escuridão, eu apenas ouvia sua respiração entrecortada, enquanto imaginava o que poderia ter acontecido para ele se distanciar repentinamente.

Senti-me sendo puxada para cima, e só então percebi que a criatura me carregava para fora da casa, seus braços gélidos em volta de meu corpo. Se eu não soubesse qual era a natureza de um nightwalker, poderia interpretar aquilo como uma atitude protetora.

Fomos para a rua, onde o brilho opaco da lua me permitiu perceber as linhas fortes do rosto de um anjo que me carregava, seus olhos sem vida olhando para frente, enquanto andava com passos decididos para algum lugar.

Não me lembro por quanto tempo andamos, minha lembrança é constantemente marcada com momentos de delírio que tive desmaiada durante a caminhada, se é que posso chamar aquilo de caminhada, porém me lembro de estar bem lúcida quando a criatura me despejou no degrau de uma escada.

Olhei para cima e percebi que uma solitária lâmpada posicionada acima da escada ainda tentava transmitir sua luz, dando-me sua proteção levemente amarelada. Olhei novamente para o anjo, que se encontrava longe do círculo de luz em que eu estava, e percebi que ele tentava sorrir, seus lábios escuros se esforçando para mostrar algo que não fosse uma careta horrenda.

Queridos, aquilo não foi um sorriso tranquilizador. O nightwalker não queria me salvar, não estava apaixonado por mim, nem nada do tipo. Ele preparava algo mais pavoroso parar mim do que uma morte rápida para servir de alimento, ele tinha um jogo planejado para mim em seus planos.

Ele se aproximou de mim, chegando o mais perto que sua escuridão permitia, e sussurrou com sua voz arrastada e pavorosa: “Esteja pronta.”.

Ele me encarou por alguns instantes, fixando seus olhos vazios nos meus, para que eu nunca esquecesse aquele momento e aquela promessa que ele fizera, e então voou para longe, deixando seu cheiro podre impregnado em minha pele.

Enquanto lágrimas de medo e ódio enchiam meus olhos, percebi a trilha irregular de algum líquido marcando o caminho que meu anjo havia feito.