Colorblind escrita por HeyWonderland


Capítulo 19
Bounded


Notas iniciais do capítulo

Gran finale chegando! Acompanhem!



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Não havia janelas. Minha noção do mundo lá fora se resumia ao vidro usado para observação médica, que me permitia ver nada além de uma sala branca e preta. Como sempre. Hoje eu teria alta da ala intensiva e poderia voltar à minha vida normal no dia seguinte. Quero dizer, quase normal.

Sozinha penso um monte de besteiras. Eu ainda estava me adaptando à ideia de quê meu pai abandonou uma garota grávida e depois teve coragem de fazer o quê fez... E de quê essa garota era Anny, minha enfermeira-chefe. Acho que a pior coisa para se aceitar e entender foi o fato de quê o sangue que corria nas veias de Kyle era o mesmo que o meu. De quê as lesões no sistema nervoso central que ele tinha eram as mesmas que as minhas. Que éramos irmãos de verdade, e não só de alma.

– Ally, querida! - Anny voltara ao quarto, sorrindo. Ela tinha dito "conversamos mais tarde", mas não sabia que seria mais tarde do dia seguinte. Mas apenas sorri de volta.

– Vamos esclarecer as coisas agora? - Eu pedi.

– Mais? - Nós rimos e ela puxou uma cadeira, sentando-se ao lado da minha cama. - Bom, tenho que ser direta e sincera, filha.

Era estranho ouvir aquela palavra sair da boca dela, e saber que se dirigia a mim. Mas de certa forma era revigorante.

– Então vá em frente.

– Medicaram você com Talidomida, um medicamento extremamente eficaz com enjoos e desconfortos estomacais, mas tão perigoso quanto milagroso. - Ela respirou fundo, e eu apenas observava seu discurso discorrer. - O quê houve em seu sistema nervoso foi quê: a Talidomida tem uma restrição que se aplica a mulheres em seu período fértil e também... Às grávidas. Componentes do medicamento trazem consequências muito graves ao feto, desde deformações físicas externas e internas até... - Ela se ajeitou na cadeira, parecia desconfortável. Eu preferi não tirar conclusões da breve explicação. - Até o aborto.

– E... - Eu me manifestei, procurando por respostas.

– Achamos que você tinha um nódulo no útero. Também chegamos a achar que você tinha algum tipo de câncer... Mas você só está grávida, Alice. -Ela olhou fundo em meus olhos do jeito que só ela sabe fazer. Isso tinha acontecido bastante por esses tempos. “Só” grávida? Eu estava assustada e não queria esconder esse fato desta vez. Eu não podia estar grávida.

Desde criança eu sempre tive essa vontade de ser mãe. De carregar no colo uma versão pequenina dos traços de alguém que eu amasse muito se misturando aos meus, de descobrir como é essa ligação maternal capaz de te fazer passar frio, fome e qualquer outro tipo de moléstia para dar tudo a alguém que ainda não sabe sequer falar ou andar. Alguém de depende de você. Sempre quis sentir o amor de mãe... Até o momento em quê fui diagnosticada com esclerose. 5 a 10% dos casos são hereditários. O meu não foi, mas havia chances de eu passar a uma daquelas coisinhas frágeis e delicadas, o pior pesadelo da minha vida... E eu não podia suportar essa ideia mesmo antes de conceber.

Esse era meu estado. Tudo estava confuso na minha cabeça. Dessa vez tinha que ser um erro, tinha que ser um engano. Eu preferia que fosse qualquer outra coisa inchando meu abdômen, mas a expressão na face de Anny não indicava qualquer hipótese de erro médico.

– Você diz "está" conjugando o verbo no presente? - Eu a encarava, e provavelmente minha expressão não era muito boa, visto que ela apenas se levantou e me abraçou. - Por que eu não abortei Anny? - E novas lágrimas rolavam meu rosto.

– Seu sistema nervoso ficou sobrecarregado. Não entendeu a informação quando deveria ter abortado e simplesmente... Desligou. Mas agora você vai ter muitas outras restrições e cuidados, também vam... - Ela dizia, alisando meus cabelos, quando eu a interrompi.

– Eu não posso ter essa criança, Anny! Não dá! - Pela primeira vez nesses anos todos de desespero, eu sentia um desespero tão esmagador quanto um rolo compressor na minha mente.

– Alice. Olhe. - Ele me fitou calmamente, me fazendo ficar mais serena. - Eu deixei as coisas mais preciosas que poderia ter irem embora. Não faça o mesmo. Você não sabe como é caminhar pelas ruas com o sentimento de quê todos que te olham sabem o quê você fez. - Ela desviou o olhar por um momento e voltou a me abraçar, encostando a mão na saliência da minha barriga. - Faça por ele, ou por ela, tudo o quê eu não fiz por você e por Kyle. Seja corajosa.

Ela me apertou forte e nos soltamos.

Eu realmente estava assustada agora. Eram tantas informações que não ficaria surpresa se meu sistema nervoso desligasse outra vez. Eu iria ser mãe? Como? E se eu tiver crises e ficar na cadeira? Eu vou morar aqui com o meu filho? E se ele for normal, ele vai morar numa clínica de gente doente? E se ele tiver esclerose, como vou cuidar dele e de mim?

Eram muitas perguntas e poucas respostas.

– Cadê ele, Anny? - Eu segurava as lágrimas. Não queria pronunciar seu nome, pois algo dentro de mim palpitava que ele havia escolhido os holofotes assim como o meu pai. Anjos quebrados, só fazem peso na terra.

– Ele está aí fora. Esperando por você acordar... - Eu a interrompi novamente.

– Mas eu já estou acordada há dois dias!

– Eu contei a ele ontem. Ele não saiu daqui. - Anny continuou, ignorando minha intervenção. - Todas as vezes que eu dizia que você ainda estava desacordada, ele marejava os olhos e sentava novamente na poltrona, soltando somente uma frase: "Tudo bem, vou ficar aqui esperando ela acordar e torcendo para ser um menino com os olhos dela.”.

Minhas lágrimas vieram quase que automaticamente. Eu não consegui contê-las nem por uma fração de segundos quando ouvi aquela frase. Era como se eu conseguisse escutar a voz de Harry falando aquilo, era como se cada lágrima que caia no lençol, levasse em si toda a raiva e incerteza que eu estava sentindo.

– Por que você fez isso?

– Ele te ama de verdade, filha. Eu não queria que você se tornasse uma nova versão... De mim. - Anny tinha os olhos marejados. - Eu fui um fracasso a maior parte do tempo. Você sempre foi forte independente de qualquer coisa. E eu não queria ver ninguém quebrar você no momento que você mais precisa dessa força.

Eu sorri, fazendo Anny sorrir junto comigo.

– Você não é um fracasso. Você é o meu anjo da guarda. - A abracei forte.

– Eu preciso ir checar as coisas, querida. Vou pedir que ele entre. -Ela me olhou como quem precisa de um aval.

– O mais rápido possível. - Sorri e ela saiu.

Fitei o teto por um momento, enquanto estava sozinha outra vez. Minhas mãos alcançaram meu abdômen, agora alto, apesar de todo meu corpo ser magro, como sempre. Fiz alguns cálculos mentais e conclui, mais ou menos, seis meses. E se não tivessem me dado o medicamento? Eu entraria em trabalho de parto sem saber que estava tendo um filho?

Ria de mim mesma, quando a porta se abriu e direcionei meus olhos exatamente para os dele. O silêncio tomava conta da sala, exceto pela marcação dos meus batimentos cardíacos, que ao vê-lo, aumentaram relativamente.

Harry se dirigiu até mim no mesmo silêncio, sentou-se na beira da cama e sua mão direita chegou à minha barriga. Estava quente, como sempre esteve. Eu sentia minhas pernas formigarem, mas não fazia diferença naquele momento. Harry me beijou sem tirar as mãos da minha barriga, que agora já tinha meus dedos entrelaçados nos seus, fazendo-me apoiar na saliência também.

– Eu mal consigo acreditar. -Ele olhou para minha barriga e voltou a me fitar. - Isso é...

– Loucura. - Eu concluí, sorrindo. - Tudo aconteceu muito rápido, Hazz. Tudo está mudando depressa demais. Eu não sei o quê fazer da minha vida, e agora eu vou ter que saber o quê fazer da vida de outra pessoa, muito mais frágil e dependente do quê eu, o quê vai acontecer agora? - Meu sorriso tinha se desfeito nos meus traços preocupados.

– Agora, a gente vai esperar o nosso bebê chegar, comprar tudo o quê for necessário e até mais, e cuidar dele como se fosse a nossa vida. - Ele sorriu e beijou minha testa.

– Ele pode nascer como eu. - Serrei os lábios e Harry pesou o ar.

– E daí? Eu te amo exatamente como você, eu vou amá-lo exatamente como ele for. Nós vamos conseguir. Vamos fazer isso junto. Eu prometo que eu vou fazer tudo o quê eu puder. - Ele sussurrou. - Eu juro pra você, Alice.

Nos fitamos por um tempo.

– Se for um menino, vai ser Joshua, não importa o quê você diga! – Harry disse, abrindo um largo sorriso.

– E se for uma menina, vai ser Joanne, sem direito a objeções também!

Sorrimos juntos. Voltei a beijá-lo quando... Opa, alguém se mexeu!

Deus, que sensação esquisita! Como se meu útero estivesse pulando, meu estômago estivesse subindo. Como se alguém estivesse bagunçando tudo dentro de mim.

Ei! Cuidado, sua mãe já tem muita bagunça para viver arrumando. Só aceito mais bagunças se forem dos teus brinquedos jogados no chão, enquanto teu pai te faz dormir.

– Me desculpe a intromissão. – Anny entrou no quarto com um papel na mão e olhamos para ela.

– Sem problemas. – Harry sorriu.

– Eu acho que vocês vão gostar de saber que enquanto Ally estava desacordada, fizemos alguns ultrassons... E já sabemos quem vem por aí.

– O quê? – Harry se levantou da cama, impaciente. – Vamos, me dê isso aqui, Anny, ou abre, não sei!

– Você sempre atropela as próprias palavras. – Eu deixei escapar.

Eles me encararam, sem entender muito porque eu havia dito aquilo. Nem eu entendi muito bem, mas era algo que eu adorava em Harry.

– Pois bem. – Anny abriu e observou o exame. Ao fechar novamente ela sorriu.

– Fala logo, Anny!

– Vai, mãe! – E a última palavra escapou por entre meus lábios. Eu estava quase me levantando e arrancando aquele monte de aparelhos.

– É...

Harry tentou pegar o exame da mão dela, mas não obteve sucesso.

– É uma menina! – Anny disse, sorrindo. Harry a abraçou.

Aquele abraço pode não ter significado nada para nenhum dos dois, mas para mim, teve o maior significado do mundo.

Ambos vieram me abraçar e depois Harry me beijou com ternura.

– Joanne. –Eu sorri ao acariciar minha barriga, que logo em seguida recebeu um beijo de Harry.

– Oi, filha. – Ele sussurrou. – Eu amo você, vou te amar de qualquer forma e tal... Mas seria bem legal você ter os olhos da mamãe.

E nós rimos.


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