Revenge escrita por Shiroyuki, teffy-chan


Capítulo 27
Capítulo XXVII




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O dia estava incrivelmente ensolarado, combinando bem com o clima de julho. As férias de verão se aproximavam, deixando os alunos agitados e impacientes, bem mais do que o normal. Porém, durante esse período conturbado, um pequeno detalhe se colocava entre os cansados estudantes e as tão sonhadas e desejadas férias: as provas finais.

Se provas finais já são um pesadelo para qualquer ginasial comum, imagine como estavam os famosos guardiões intercambistas, que tinham a obrigação de se sair bem em avaliações feitas em uma língua completamente estranha. Ainda que houvesse as “vantagens de guardião”, nenhum deles queria ir mal nas provas, afinal estavam representando suas escolas, e por isso estavam preocupados.

Não somente as provas, mas também Matt e seus batsu-tamas ocupavam os pensamentos dos guardiões, e quase todo o seu tempo livre. Três dias haviam se passado desde o retorno deles, e o ovo negro encontrado no acampamento estava agora no Royal Garden, encerrando no interior de uma gaiola para não escapar. Tsukasa passava os dias o observando, tentando descobrir por que motivo estava tão debilitado, qual era o sonho que o criara, e alguma maneira de purifica-lo, mas não havia nenhum sinal de progresso.

Miguel estava deitado naquele momento no telhado da escola, aproveitando o horário do almoço para estudar mais um pouco para as provas, que começariam dali a dois dias. Com um dicionário posicionado logo ao lado sendo requisitado a cada minuto, ele tentava decifrar um livro de história. Não conseguia se concentrar tão bem quanto deveria.

 Perdera muitas noites de sono, dormindo com Kukai na barraca durante o acampamento. Não que ele estivesse acostumado a dividir o quarto com outro garoto, esse obstáculo havia sido superado, mas havia o fato de Miguel nunca ter dormido tão perto assim de outro menino, isso por si só já era preocupante, e além disso, Kukai era espaçoso, e estava sempre chutando ou empurrando Miguel durante o sono. E mesmo depois de voltar para casa, o caso de Matthew e os batsu-tamas ainda martelava a cabeça do português, que varava as madrugadas girando aquele medalhão entre os dedos, pensando em alguma forma de abri-lo.

Dessa forma, com a cabeça tão cheia, era impossível conseguir pensar no Shinsengumi, na Revolução Meiji ou em qualquer outra coisa que ele precisasse estudar. Já estava quase desistindo, e ia tirar uma soneca por ali mesmo, quando ouviu o ruído da porta de acesso sendo aberta.

— Eu já disse que não vou vestir isso aqui na escola, Yaya!!! – Miguel gritou, sentando-se de imediato ao imaginar por antecedência quem era que estava vindo atrapalhar o seu descanso, ou melhor, estudo.

— Sinto muito, não é a Yaya! – o rosto de Shunsuke surgiu atrás da porta, fechando-a e se aproximando logo depois – Eu imaginei que você estava aqui, então trouxe algo para a gente almoçar – ele mostrou alguns pacotes de comidas variadas que trazia nos braços, e que havia comprado na cantina.

— Ah… Shunsuke, eu pensei que fosse aquela pirralha de novo… - ele se apressou em dizer, enquanto o garoto se acomodava ao seu lado, dividindo o alimento – E-eu… não posso aceitar tudo isso de comida, é muito…

— Pensei nisso como uma contribuição para o seu estudo – Shunsuke empurrou os pães para Miguel, que não pode negar dessa vez – E então, está progredindo…?

— Mais ou menos – Miguel suspirou – Como eu pensei, aquela semana de aula que perdemos durante a viagem realmente fez falta… Você tem as anotações desses dias para me emprestar?

— Não tenho… - Shunsuke se concentrava em abrir um pacote de batatinhas – Eu… não sou muito de prestar atenção em aulas e… acabei faltando um dia ou dois também… - ele respondeu, evasivamente, e Miguel estranhou. Desde que se conheceram, Shunsuke não faltara a nenhuma aula. Ele saia mais cedo às vezes, ou sumia na hora do almoço, mas nunca faltava.

— Então é melhor estudar também! – Miguel respondeu, preocupado, mordendo um pedaço do Yakisoba pan lentamente.

— Hey! Você não quer ir à minha casa, estudar? – Shunsuke propôs, de repente. Miguel corou furiosamente, deixando cair o livro que ainda estava apoiado em sua perna.

— E-eu…

— Não aceito não como resposta!! – Shunsuke bradou, seguro. Puxou a caneta que estava rolando ao lado de Miguel, e o braço dele, esticando-o a sua direção, e começou a escrever alguma coisa na palma da mão do outro.

— Eeei, isso faz c-cócegas! – Miguel protestou, enquanto tentava disfarçar o rubor que subiu à sua face com o outro garoto tão próximo. Sentiu a mão quente de Shunsuke tocando o seu braço, e, por um breve, muito breve instante, deixou-se apreciar o toque do outro, acordando para a realidade apenas quando Shunsuke se afastou, sorrindo para ele.

— Esse aqui é o meu endereço, não vá se perder!

— Se-seus p-pais não vão ficar… irritados…? – Miguel balbuciou, desconcertado. Ainda estava meio tonto pelas ações rápidas de Shunsuke.

— Eles estarão trabalhando – Shunsuke disse de uma só vez, virando o rosto para os pés.

— Ah… sim… - Miguel desviou o olhar, se saber o que dizer nessa ocasião. Mirou a sua mão, escrita com a letra apressada e um tanto trêmula de Shunsuke. Os dois ficaram em silêncio então, apenas comendo, enquanto Miguel fingia que estava lendo o livro de história, sendo que não conhecia nem metade dos kanjis que estavam escritos ali.

Depois de algum tempo, ele bocejou longamente, com as pálpebras quase se fechando por um segundo, mas seu rosto tornou a enrubescer quando ele percebeu que Shunsuke o observava longamente.

— Se você quiser, pode dormir. – ele disse rapidamente, como se estivesse se desculpando. Miguel fez menção de se levantar, ainda constrangido.

— Mas… nós temos aula agora e…

— Não tem problema – Shunsuke o segurou pelo braço, e novamente, o toque simples fez Miguel tremer por inteiro. – A gente pode matar a aula, é educação física, afinal. Não prefere descansar para as provas?

— E-eu estou bem…

— Eu também vou dormir um pouco – Shunsuke o interrompeu novamente, tirando os óculos e cerrando os olhos, enquanto apoiava a cabeça nos braços cruzados e se acomodava melhor na sombra do telhado. Não disse mais nada, e Miguel viu que aos poucos ele relaxava. Segundos depois, estava ressonando.

— Ele… dormiu mesmo… - Miguel se impressionou com a velocidade para pegar no sono do amigo, e sentou novamente ao lado dele. Talvez pudesse tentar dormir um pouco também, embora fosse difícil de acreditar que conseguisse ficar tranquilo com o outro garoto ali bem ao seu lado.

Disfarçadamente, observou Shunsuke, com o canto dos olhos. Notou o quanto ele ficava mais atraente, sem os óculos, e com aquele semblante sereno e descansado. Seu rosto era absolutamente bonito, com aqueles traços perfeitos e retos. Sua pele refletia a luz do sol, e ele tinha cílios grandes, que Miguel nunca havia reparado antes. Os lábios entreabriram, deixando passar a respiração cadenciada, e Miguel se aproximou, seguindo a linha curva formada pelos lábios cheios, e percebendo-os com muito mais atenção do que deveria. Chegou mais perto, inconscientemente deixando-se levar por aquela minuciosa observação. Entretanto, o coração do português deu um salto, ao sentir os dedos leves do garoto roçando sem querer em sua mão ao se mover, enquanto ele se inclinava para fitar melhor Shunsuke.

Só então ele percebeu o que fazia, e se afastou como se tivesse levado um choque. Tapou a boca, tentando controlar a respiração ofegante, e saltou para mais longe de Shunsuke, escorando-se na parede e fixando o olhar no céu límpido, quase sem nuvens. Era uma sorte que Grace estivesse longe, pois ela não deixaria um evento como esse passar em branco. Mas ainda assim… O que ele estava fazendo!? Se continuasse dessa maneira, essa história acabaria tendo o mesmo final que teve com Guilherme. Seria melhor Miguel ficar mais consciente de seus atos, e parar de olhar para Shunsuke com outros olhos. Eles eram apenas amigos, era assim que deveria ser!

Distraído pelas suas divagações, na maioria pessimistas, Miguel nem mesmo percebera quando fechara os olhos, e escorregara para o chão. Não chegou a ouvir o sinal de início das aulas, pois havia pegado rapidamente no sono. E, evidentemente, também não vira quando Shunsuke abrira seus penetrantes olhos verdes para encará-lo diretamente. Ergueu-se, com um sorriso fraco formando-se nos lábios, e não se preocupou em colocar novamente os óculos, enquanto se aproximava de Miguel. Encarou-o por muitos segundos, e deixou seu dedo indicador passear livremente pelo rosto adormecido do garoto, sentindo a textura da pele morena e macia, e seu sorriso se encrespou, com os olhos cor de esmeralda chamuscando quase maliciosamente.

— Tenha bons sonhos… my sweet baby…

Vamos logo, garoto, nós não temos o dia todo! – parada em frente à classe de Nagihiko, Stéffanie o encarava altivamente, com as mãos na cintura. O garoto apenas resmungava qualquer coisa, guardando os materiais na mochila no seu próprio ritmo, o que muito irritava a espanhola.

— Hoy, vocês vão aonde? – Amu surgiu logo ao lado dela, curiosa.

— Estudar na biblioteca– Nagihiko respondeu prontamente, pondo-se finalmente de pé.

— Marcamos com a Anna e o Prince Char…. – ela travou, sentindo-se ridícula por usar aquele apelido tão de repente – Com o Tadase.

— Quer ir com a gente? – o valete indagou apenas por convenção, deixando bem claro no tom de voz que já havia pessoas demais em seus planos.

— Não mesmo – ela acenou, revirando os olhos – Tsukasa me chamou no Royal Garden, mesmo sendo época de provas…

— Vai tentar fazer Open Heart no batsu-tama de novo? – perguntou Nagihiko, completamente desmotivado. Nada do que eles tentaram até o momento havia dado certo, nem mesmo o ataque supremo de Amu, como esperado.

— Não. Ele quer que eu converse com o ovo, disse que pode ser que ele responda. – Amu contou, fazendo parecer que não tinha muita confiança naquela teoria. Mas não podia rejeitar completamente a sugestão, afinal, ela já havia recuperado muitos ovos corrompidos ao dialogar com eles. E eles não tinham muitas alternativas a seguir a essa altura, tinha que tentar o que pudesse.

Entonces, boa sorte! – Stéffanie desejou, quando ela e Nagihiko viraram o corredor na direção das escadas, e Amu descia para o primeiro andar. Logo depois, virou-se e deu de cara com Anna, que não estava prestando a menor atenção no caminho e esbarrara nela.

— Tome cuidado, Lewis-san!! – Tadase chamou, já perdendo a conta de quantas vezes por dia dizia essa mesma frase, em diferentes entonações.

— Vamos para a biblioteca, logo… – Nagihiko suspirou, antes que Stéffanie começasse a reclamar sobre o fato da inglesa não olhar por onde andava, e eles se encaminharam até o lugar, rapidamente.

Assim que entraram na biblioteca, os estudantes começaram a sussurrar entre si, como sempre faziam quando os guardiões entravam em qualquer recinto, ainda mais se estivessem em grupo como agora. Nagihiko e Tadase já estavam completamente acostumados a isso, e nem ligavam mais, e Stéffanie fazia o possível para parecer inabalável, embora estivesse bastante desconfortável, mas Anna não conseguia de maneira nenhuma disfarçar seu nervosismo ao ser observada tão atentamente, o que garantia cenas frequentes de tropeções e esbarrões, ainda mais do que o normal. Ela tentou se esconder em algum lugar entre Tadase e Nagihiko, mas tudo o que conseguiu foi enrolar-se nos próprios pés e quase cair – novamente – se não tivesse sido segurada bem na hora por Tadase.

As alunas gritaram, eufóricas, e a bibliotecária mandou todos fazerem silêncio. Anna corou como um tomate maduro, escondendo-se atrás da franja, e os guardiões foram orientados a seguir para a seção reservada, antes que fizessem mais tumulto e barulho ali.

Eles adentraram por uma divisória de janelas fechadas, com várias estantes com livros aleatórios de estudo. Normalmente, aquele espaço era utilizado pelos professores para fazer reuniões, ou para os alunos fazerem trabalhos em grupo, mesmo que todos preferissem as mesas regulares da biblioteca, e essa sala devesse ser reservada com antecedência (claro que os guardiões não necessitavam desse tipo de formalidade). Tadase se apressou em abrir as persianas das janelas externas, iluminando ao lugar com a luz do sol e deixando aparecer a paisagem da floresta que rodeava a escola, e que dava acesso à divisão elementar.

I’m sorry, e-eu não queria… - Anna nem sabia por onde começar a se desculpar.

— Está tudo bien, mira. Estábamos en una habitación separada, es mucho mejor…

Daijoubu, Lewis-san, ninguém reparou em você – Tadase tentou tranquilizar a inglesa, que apenas corou com mais vontade, ao lembrar-se de mais de um vexame que protagonizara.

— Yare yare, vamos logo começar a estudar. Então, no que vocês têm dificuldade? – Nagihiko decidiu que focar nos problemas específicos de cada um era um método mais eficaz de estudar em grupo. Assim, quem era melhor em uma matéria, podia ajudar ao outro.

— Kanjis! – Anna e Stéffanie responderam em uníssono, com veemência.

— Isso engloba todas as matérias… - Nagihiko observou, sentindo-se cada vez menos impelido a estudar. Teriam um longo caminho pela frente, pelo visto.

But… eu posso ajudar vocês in English! – Anna tentou parecer boa em pelo menos alguma coisa, apesar de que ser fluente na sua própria língua não fosse algo tão impressionante assim.

— Oh, sim, será de grande ajuda, Lewis-san – Tadase a incentivou, mesmo que seus motivos para querer ficar melhor em inglês não fossem somente as provas – Eu posso ajudar com Geografia…

Soy un poco buena en matemática ...– Stéffanie resmungou – Después de todo, los números son universales, no tiene  kanji ...

— Isso é bom – Nagihiko sorriu para ela, tentando ser um pouco mais agradável, mas tudo o que conseguiu foi fazê-la virar novamente o rosto para o lado oposto – Bom, eu posso ajuda-los com História e com Literatura…

— Então vamos começar com Literatura? – Tadase sugeriu – Assim podemos enfrentar logo de cara o problema com kanjis…

— Sim, sim – Nagihiko puxou seu livro – Vocês conseguiram ler o livro que o professor pediu?

— Somewhat… M-mais ou menos… - Anna baixou o olhar, embaraçada.

Por supuesto que si, idiota, com quem pensa que estas hablando? – Steffanie bufou, desdenhosamente –  E-embora… aunque algunos ideogramas realmente difícil de leer ...

— Ah, sim… vai ser uma longa tarde de estudos… - Nagihiko sentiu uma gota descer pelo seu cenho, vendo as duas garotas se retorcerem sobre as cadeiras.

— Mas nós vamos conseguir! – Tadase, otimista, tentou levantar os ânimos.

E todos suspiraram ao mesmo tempo. Nagihiko tinha toda a razão. Ia ser uma longa, looooonga tarde de estudos.

Miguel avançou alguns passos pela relva macia, até chegar ao brilhante lago, que brilhava com luz da lua, refletindo seu brilho e o de todas as estrelas ao redor. Estava sonhando, e tinha certeza disso. Primeiro, por que ele estava no acampamento, de onde havia ido embora há dias. E segundo… por que aquela cena já havia se repetido antes, era o que uma vozinha em sua mente alertava seguramente. Era um sonho dentro de um sonho? Ou… apenas uma lembrança…

Deixou para trás as roupas e os sapatos, entrando na água fria do lago lentamente apenas com a roupa de baixo e deixando que sua pele se acostumasse com aquela temperatura baixa. Teria sido muito melhor tomar banho ali durante o dia, mas ele não queria causar nenhum constrangimento a nenhum dos outros garotos, de modo que preferiu deixar para tomar banho em um horário que não houvesse ninguém por perto. Era o primeiro dia de acampamento, e todos já dormiam, cansados por causa de todos aqueles preparativos e das extensas caminhadas floresta adentro durante a tarde.

Mergulhou, nadando até a metade do lago com habilidade, até chegar à enorme pedra lisa e redonda que se erguia no centro, rodeada de água por todos os lados como uma ilha, e então se recostou ali, erguendo os olhos castanhos para o céu estrelado, que parecia milhares de vezes mais bonito visto dali.

No escuro, não se ouvia nada além do barulho do vento balançando as copas das árvores. Um pio de alguma coruja ao longe. E então, um ruído um pouco mais próximo, de água se movendo, da respiração de alguma criatura, cortou o silêncio noturno.

— Tem alguém aí? – Miguel falou alto, olhando apreensivamente ao redor. Esperava que fosse algum Shugo chara, ou algum dos garotos querendo pregar uma peça nele. Possivelmente, poderia ser um batsu-tama. Mas tudo o que ele viu foi uma sombra, que tentava se manter oculto do outro lado da pedra. A figura era evidentemente humana, e possuía formas retas, o que eliminava a hipótese de ser alguma das garotas. Era um pouco mais alta do que Miguel. Podia ser Kukai, já quer era alta demais para Tadase, e um pouco baixa para Ikuto, e não tinha cabelos longos para ser Nagihiko.

— Ssshhh! – a figura, escondida pelas sombras, se pronunciou – Você não quer chamar a atenção de nenhuma criatura noturna por aqui, quer?

A voz era familiar, mas como estava sussurrando, e no escuro, Miguel não conseguia identificar. Era certamente um garoto, e até tinha um sotaque um tanto diferente dos outros japoneses, mas Miguel também não conseguia especificar esse detalhe. Aproximou-se, intrigado, ignorando completamente o perigo de estar no lago, à noite, com alguém desconhecido.

— O que você quer? – Miguel disse, embora a pergunta que queria fazer inicialmente fosse “quem é você”.

— Eu só quero tomar banho, não vou fazer nada com você, fica tranquilo – a figura tornou a dizer, ainda por trás da pedra – Se quiser… podemos até conversar…

— Conversar? – Miguel repetiu, incrédulo – Espera um pouco… você não é aquele…

— Não! – a voz disse novamente, elevando-se um pouco – Q-quero dizer… isso é tudo um sonho!

“Evidente que é um sonho!” um pensamento aleatório se formou, embora Miguel não pudesse estar consciente dele naquele momento. Era como se uma segunda consciência de Miguel assistisse à mesma cena, de fora, e ao mesmo tempo participasse ativamente da construção. Era confuso.

— Certo, um sonho… - Miguel andou na direção da figura, movendo a água ao seu redor, e a sombra fez menção de correr pelo lado oposto, para voltar a se ocultar na pedra, mas o português foi mais rápido e o segurou pelo braço – Ei! Se é um sonho, você pode me mostrar o seu rosto, não pode?

A figura pareceu ficar surpresa, e arquejou. Apesar de hesitante, ele se aproximou um passo, ficando exatamente no lugar onde a luz do luar incidia. Miguel viu os brilhantes olhos verdes o encararem, num misto de provocação e expectativa que não faziam sentido. Os cabelos loiros tinham um brilho azulado pela noite, e estavam completamente encharcados, fazendo escorrer gotas, que mais pareciam joias, cintilando friamente nos fios dourados. Ele sorriu de canto, como se estivesse desafiando Miguel a decifrar o grande enigma que ele era, ao mesmo tempo em que parecia ansioso para que ele o fizesse.

— Boa noite, Micchan… - ele sorriu ironicamente, colocando certa malícia no apelido infantil.

— S-shunsuke? – Miguel chamou, completamente aturdido. Esperava ver a face do inimigo, aquele que convocava batsu-tamas e lutava contra os guardiões, mas… quem aparecera fora seu colega de classe, que nem mesmo estava naquele lugar?

O garoto pareceu surpreso, e então um enorme sorriso de escárnio tomou forma, enquanto ele parecia ponderar sobre como agir a partir de agora.

— É assim que você me vê? Bem… eu só estou tomando… a forma que você mais deseja ver, é isso – ele respondeu com naturalidade, aproximando mais um passo na direção da luz, e consequentemente ficando mais próximo à Miguel – Obviamente,  não posso mostrar meu rosto verdadeiro tão facilmente, não é?

Miguel não engoliu aquela explicação confusa, mas também não tinha vontade de discutir ou exigir esclarecimentos. Soltou o braço do garoto, que nem reparara que ainda tinha seguro em sua mão, e o fitou por muitos segundos, apenas vendo aqueles olhos incrivelmente verdes, mesmo no escuro, que o olhavam como se pudessem ver através da sua alma.

— Você, ahn… não parece tão surpreso em me ver como o seu amigo… - Matt parecia realmente intrigado com isso. Miguel corou furiosamente, mas no escuro, ninguém seria capaz de enxergar – Você realmente queria vê-lo?

— I-isso não tem nada a ver com você – Miguel se afastou, virando o rosto e tentando desconversar – O que você quer com os guardiões e com os batsu-tamas? – indagou a primeira coisa que veio à sua cabeça, embora não fizesse sentido iniciar uma conversa como essa em um suposto sonho. Matthew soltou uma risada, que mais parecia um suspiro.

— Eu quero o embryo. Não me interessa esses ovos ou vocês guardians. Eu só quero realizar o meu desejo – ele disse, e então fechou os olhos – Eu não deveria estar dizendo essas coisas, droga. Pare de perguntar.

— Não é um sonho? Então eu posso fazer o que eu quiser. – Miguel encerrou a questão, voltando a se agachar para molhar as costas. Apesar de a água estar gelada, o tempo ainda estava abafado, e assim ficava mais agradável.

— E o que você quer fazer comigo? – Matthew provocou, agachando-se até estar na altura de Miguel. Seus cabelos, agora escuros por estarem úmidos, respingaram água no rosto dele – Sabe… eu estou te observando há muito tempo. Muito mais do que você imagina. Eu sei de tudo.

— S-sabe? – Miguel entrou em choque. Não conseguia olhar o outro garoto nos olhos mais – Sabe do que? Eu n-não sei do que está…

— Eu sei sobre você. A verdade. Eu sei o que você é realmente. – ele disse, seguramente, enquanto brincava distraidamente com a água – Não que eu me importe com isso, mas fiquei curioso… Como é… gostar de outro garoto? – ele indagou com tanta facilidade que Miguel se assustou, engasgando-se.

— P-pare de falar dessas coisas!! Isso não tem nada a ver com isso! – ele se irritou. O fato de ter a voz e o rosto de Shunsuke fazendo esse tipo de pergunta só o deixava ainda mais perturbado.

— Eu quero saber. Você não sente nada… ao ver esse rosto? – ele tornou a perguntar, usando um tom de voz comedido e calmo, assim como Shunsuke costumava usar, e se aproximou bruscamente de Miguel, encurralando-o contra a pedra lisa, forçando-o a olhá-lo nos olhos.

O coração de Miguel disparou descontroladamente, e Matt pareceu perceber, se divertindo com isso.

— Afaste-se… p-por favor… - Miguel tentou por tudo no mundo não olhar para o tórax desnudo do rapaz, e com uma imensa força de vontade, conseguiu fixar os olhos na água que se agitava logo ao seu lado. Com as mãos, tentava manter Matt a uma distância segura, mas não ousava empurrá-lo, pois não queria em hipótese alguma ter que tocá-lo diretamente daquela forma.

— Não. – Matthew respondeu, encarando-o. Obrigou Miguel a virar o rosto na sua direção, segurando-o pelo queixo, e então sorriu de canto. O português sentiu suas pernas virando gelatina, e teria ido ao chão se já não estivesse sentado no chão do lago – Você é interessante, e me deixou intrigado. Agora, eu quero saber. E… quando eu quero saber de alguma coisa, não consigo tirar mais da minha cabeça… acabo ficando obsessivo. – ele se aproximou ainda mais, e Miguel não ouviu outro jeito de mantê-lo afastado além de empurrá-lo com as mãos, tocando hesitantemente no abdômen exposto dele. A pele estava fria e úmida.

Matthew soltou um som baixo e surpreso, paralisando a poucos centímetros do rosto de Miguel. O moreno virou o rosto, bruscamente, tentando se desvencilhar. E o resultado de sua movimentação impensada foi um toque inesperado e súbito. Seus lábios se roçaram, tão leve e rapidamente que pareceu nem mesmo acontecer. Miguel empurrou Matthew para longe no mesmo instante, recuperando a força nas pernas e as usando para correr para o outro lado da margem o mais rápido que podia, apesar da resistência da água.

Matthew também pareceu ficar assustado com o quase beijo, e ficou observando o atemorizado Miguel fugir apressadamente. Levou os dedos magros até os lábios, ainda incrédulo e absolutamente atônito.

Naquela noite, Miguel retornou ao acampamento, e não disse a ninguém sobre o estranho encontro com seu inimigo. E, na manhã seguinte, quando acordou, estava tão confuso com aquela passagem, que convenceu a si mesmo de que era um sonho de fato. Durante o resto do tempo que passou ali, tentou não pensar mais nisso. Mas aquele suave roçar de lábios ainda parecia real demais para ser fruto da sua imaginação, não importava o quanto pensasse o contrário.

Miguel despertou, desnorteado e perdido, com a respiração ofegante e um semblante amedrontado. Tentou regular os batimentos cardíacos, enquanto olhava ao redor, tentando se localizar. Estava no telhado da escola, e a cor alaranjada do céu indicava que era final da tarde, e em breve as aulas terminariam. Shunsuke não estava em lugar nenhum por ali.

O português, ainda respirando com dificuldade, levantou bruscamente. Na sua mente desordenada, as imagens e sensações do sonho recente ainda estavam nítidas. E uma constatação se fazia presente, ainda mais do que antes, gritando para que ele entendesse de uma vez. Aquilo não era somente um sonho. Era seguramente… uma recordação!

Miguel olhou para a sua mão, escrita com a letra rápida de Shunsuke. Seus olhos franziram, sem conseguir acreditar na hipótese lógica que sua mente formava. Não, ele não queria acreditar que aquilo que supusera pudesse ser a verdade. Pegou os livros do chão, e se pos de pé. Girou nos calcanhares, entrando pela porta de acesso e descendo as escadas em alta velocidade, dois degraus de cada vez. O sinal para o final das aulas soou, e Miguel apressou-se ainda mais. Quase caiu mais de uma vez, mas permanecia no mesmo ritmo, correndo o máximo que suas pernas desacostumadas conseguiam. Tinha que verificar rápido aquilo, e garantir que não fosse verdade. Não podia ser verdade! Quando chegou ao terceiro andar, quase indo direto ao chão ao pular da escada, viu Kukai saindo da sala, e correu ao seu encontro.

— Ah, Miguel! – ele saudou, ao ver o português aproximando-se – O que aconteceu? Você sumiu! Eu já estava levando a sua mochila… - ele indicou a mochila a mais que estava carregando.

— Kukai… me diga, onde fica esse endereço? – ele mostrou a mão escrita. Kukai leu rapidamente, estranhando o pedido, e colocou a mão no queixo para pensar melhor.

— Hmm… acho que esse lugar fica meio longe. Você tem que pegar o mesmo trem que nós usamos para ir para casa, mas parar três estações depois. Isso parece ser em um daqueles apartamentos que ficam afastados do centro, não deve ser em um lugar tão movimentado, então acho que você deve achar facilmente… mas, se você quiser, eu posso ir junto…

— Não, eu prefiro ir sozinho. Se você não se importa, poderia levar a minha mochila para casa? – Miguel pediu, tentando falar sem ofegar tanto, e entregando os outros livros ao garoto também – Eu tenho que… confirmar uma coisa. Muito obrigado – disse, acenando rapidamente e então saiu correndo novamente, descendo as escadas como um furacão. Shunsuke não estava em nenhum lugar entre os estudantes que se precipitavam para fora, já devia ter ido embora há tempos é claro, e isso só deixava Miguel mais apreensivo.

Enquanto corria, apenas um pensamento se repetia várias vezes, até estar completamente gravado na mente de Miguel.

 “Não. Não pode ser verdade.”


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Notas finais do capítulo

Shiroyuki deeesu~
Soorry pela demora, minna-san.... realmente, não tem desculpa pra isso... eu esqueci de postar '-' podem me bater se quiserem...
Mas... aaahn, esse é um dos meus capítulos favoritooos!!!! E.... ta~nan~ que conclusões podemos tirar disso tuuuudo??? Espero pelos reviews o/



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