O Primeiro Massacre Quaternário escrita por AnaCarol


Capítulo 4
Catálogos, botões, Jogos. A vida é fácil assim.




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Tiro a roupa e entro debaixo do chuveiro. Tenho que tomar banho, antes que Hanny bata à minha porta me chamando para jantar e eu esteja com o rosto vermelho e inchado.

–Vamos lá, Anna. Hanny não pode te ver assim. – Eu digo para mim mesma. – Tudo está apenas começando.

Há vários botões e não sei qual devo apertar. Então me dou ao luxo de me desviar de todos os problemas e testar um por um, cada um deles. Quase uma hora depois, quando todos os botões já estavam testados, meus cabelos meio ensaboados e meio secos, minha pele meio fria e meio quente, eu decido tomar um banho de água quente e me perfumar com um sabonete que me lembra – por algum motivo estranho – o cheiro da praia. Não temos banho quente no abrigo. Mas lá eu não preciso de um sabonete caro para ter o cheiro da praia.

Quando saio, entro numa máquina que seca meu copo, ao mesmo tempo em que penteia e amacia meus cabelos. Penso no que o pessoal da Capital faz com o grande tempo de sobra que máquinas desse tipo os proporcionam.

Deixo-me levar pela sensação de riqueza e decido descobrir o que tudo significa, dentro do meu quarto, meu banheiro e dentro do trem. Talvez eu seja mesmo um bichinho de estimação da Capital. Mas se vou morrer, é melhor ser um defunto chique.

Na pia do banheiro existe um catálogo. Vinte páginas mostram as sombras que eu poderia escolher passar. Outras Trinta me mostram os batons. Quarenta extras me mostram as coisas relacionadas a cabelo, como apliques, perucas, tintura e presilhas ou glitter. E as 25 restantes me mostram coisas que eu não sei o que são: coisas como Blush, Pó Compacto e etcs...

Acabei de descobrir o que, exatamente, eles fazem.

Eu aciono um botão para me enviar um batom cor de boca, escondido entre os últimos batons das Quarenta longas páginas de predominância de cores como Roxo, Malva, Roxo escuro #910 e Roxo Claro #01. Acho que Roxo está na moda.

Uma parte no canto da mesa se abre e um prato sobe, exibindo uma caprichada e intocada caixa de batom. Fico até feliz, embora ache que é desperdício me mandarem a caixa, que o batom seja novo. A ideia de compartilhar qualquer coisa - mesmo que material - com o pessoal da Capital não me deixa nem um pouco feliz.

Passo o batom, apenas para não acharem que estava brincando com eles e coloco-o junto com sua caixa, já amassada pelas minhas tentativas de abertura do produto, no bolso do roupão Roxo Intermediário #77.

Dirijo-me até o guarda-roupa. Ele é lotado de gavetas. E como tudo no trem, aparentemente, ele vem com um catálogo. Mas esse é mais simplório.

Ele possui fotos da frente e das costas das peças de roupas e, ao lado, em qual das várias gavetas do guarda-roupa ela se encontra.

Todas as roupas do catálogo são espalhafatosas: Menos Três peças de cada. Então, de dezenas, minha escolha diminuiu para Três peças de cada tipo.

Escolho então uma camiseta azul lisa, de mangas que vão até o cotovelo; um short jeans bege; e sandálias azuis. Eu provavelmente deveria escolher peças roxas e espalhafatosas. Mas não estou tão iludida a ponto de me render à moda da Capital. E devo estar irritando Hanny ao sair por aí usando duas peças de roupa parecidas, no mesmo dia. Regatas azuis de manhã, camiseta azul de noite. Que antiquado de minha parte! Oh!

Arrumada, eu saio de meu quarto e procuro, entre os vagões do trem, onde nós deveríamos jantar. Encontrei uma Avox de cabelos pretos compridos, caídos sobre os olhos e ela me indicou com as mãos.

Sentei-me a mesa por último. Até mesmo a pomposa Hanny Bellun já estava esperando. Se bem que eles já haviam começado a comer, então não acho que minha chegada tenha surtido algum efeito sobre qualquer um dos que jantavam.

–Você está usando roupas parecidas com as que você usou hoje de tarde. – Disse a mulher que de manhã vestiu um vestido roxo #33 e de noite, calças coladas roxas #34.

–Sabe, não é educado falar quando se tem uma folha de alface no dente. – Eu retruco. Tento ao máximo não rir enquanto ela “discretamente” toca seus dentes impecavelmente brancos, a procura de uma folha de alface que nunca encontrará.

Ela se cala, mas continua expressando raiva. Eu me dirijo a um dos garçons com um olhar de pena. Peço para que ele me traga uma sopa de legumes e ele logo sai da sala, apressado.

–Me falem sobre vocês. –Disse Hanny, desesperada por outro assunto, mas abrindo a boca ainda menos do que o costume. Nenhum de nós três respondeu. Todos já sabíamos o bastante sobre Troy. Não me importava com o que John, o menino com olhos inchados e vermelhos ao meu lado, diria. E também não queria falar de mim com uma pessoa da Capital, um adolescente carrancudo e um chorão. Ela insiste. – Vamos, não vai doer, seus bobinhos.

Ao ouvi-la falar conosco como se fossemos seus animais novamente, eu não aguento.

–Não sou bobinha. – Eu solto. – Tiro as melhores notas possíveis no abrigo.

–Isso, isso! Continue. – Ela diz, mas ninguém faz mais perguntas. – De que abrigo está falando?

Eu a encaro.

–O abrigo do Distrito Quatro. – Fecho a boca antes que deixe escapar o xingamento que passou pela minha cabeça. – Pra órfãos.

–Oh! Coitadinha! O que aconteceu com seus pais?

Eu bato a mão na mesa. Minha raiva sobe, sobe, sobe! Ela é tão idiota a ponto de perguntar a uma criança órfã o motivo de ela estar órfã?

Quanto dou por mim, meu prato está no chão, espalhando sopa no tapete caro da Capital. Oh! Será que vai manchar? Eu piso em cima do alimento, apenas para piorar a situação. Estou saindo da sala, quando ouço uma voz rouca. Lágrimas caem livremente por meu rosto.

–Acho que a coitada não quer falar. – Diz a voz, provavelmente vinda de John Turnit.

Eu me viro. Não bata nele, Anna. Você pode ser punida por isso.

Engulo em seco e cerro os punhos, determinada a não distribuir os socos que deveria.

–Meus pais morreram. – Eu digo, puxando brutamente o garfo de Hanny de suas mãos e espetando com raiva no bife com batatas em seu prato. Eu olho diretamente em seus olhos assustados e percebo que ela está usando lentes de contato. É claro. Ela está com novas todos os anos, mas nunca parei para pensar que ela usaria isso por precisar usar óculos. Num momento de fraqueza sinto pena dela. Ela nunca saberá quem poderia ter sido, ou o que ela poderia ter feito além de seguir a moda... Além da Capital. Mas a raiva é muito forte e ela volta. Abaixo a cabeça, por não aguentar mais um segundo olhando para ela e deixo uma lágrima cair em sua mão enluvada. Tentando ao máximo não gaguejar eu repito. – Morreram.

Claro que a informação era óbvia, mas eu nunca vou revelar o motivo para ela. Ela não merece saber.

Saio da sala a passadas pesadas, desejando ao máximo que a sala tivesse uma porta, a qual eu bateria tão forte que quebraria. Assim como faria com qualquer desconhecido que passasse em minha frente.



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