O Primeiro Massacre Quaternário escrita por AnaCarol
Não tenho condições de fazer nada além de respirar. Manquei o dia inteiro, subindo e descendo escadas, indo de um prédio a outro. Acabo pegando no sono antes de pararmos realmente. Tentei lutar contra a sonolência por muito tempo, mas ela afinal venceu. Eu sonho comigo em queda livre por todo o tempo. Quando acordo Marina está sentada alerta ao meu lado. Era para ela tomar montar guarda.
Por um momento eu me sinto bem. Se ela não me acordou durante a noite é por que John não foi para o ágape.
Errado.
Quando me viro, John não está deitado ao meu lado, e sim um cobertor amassado para imitar o calor humano. Eu me levanto e encaro Marina.
-Por que o deixou ir ao ágape?! – Eu rosno.
Ignoro suas súplicas e corro para a janela. A Cornucópia está longe e não consigo vê-la daqui. Subo as escadas até a cobertura. Minhas pernas não estão mais dormentes e posso movimentá-las livremente. Aproveito-me disso.
A Cornucópia agora é visível, mesmo que não consiga ver os tributos lutando. Está muito longe, não conseguiria chegar lá a tempo. Estou nervosa, preocupada, brava. Como ele pôde me desobedecer e arriscar sua vida desse modo? O pensamento de que possa nunca mais vê-lo me invade e eu entro em desespero. Não ligo se a Cornucópia está longe. Eu vou chegar lá nem que seja a última coisa que eu faça. Não vou simplesmente ignorar o fato como Marina está fazendo. Não vou ver o rosto de John brilhando no céu. Eu me recuso!
Desço as escadas correndo e encontro Marina as subindo. Assim que me vê, desanda a falar, mas não estou mais ouvindo. As batidas de meu coração invadem meus ouvidos e mente, e tudo o que eu consigo pensar agora é que os olhos azuis esverdeados brilhantes de John podem ter se apagado, e eu estava dormindo enquanto isso. Se isso aconteceu mesmo, eu nunca vou me perdoar.
Estou correndo na velocidade máxima e quase me esqueço da dificuldade que ainda sinto em respirar. Ofegante, chego à metade do caminho quando sou abordada pela menina do distrito Um. Achei que ela tivesse morrido na explosão, mas estou enganada.
Ela segura uma espada e seus cabelos negros estão presos em um rabo de cavalo alto, balançando com o vento. Ela corre até mim, brandindo a espada.
Eu me abaixo na última hora, percebendo o que acontece ao meu redor. Então vou para a direita, esquerda, rolo para baixo do banco de concreto. Quando penso que não há mais saída, tento a última alternativa. Corro para dentro de um prédio e, do andar térreo, quebro uma janela e a atravesso. Quebrei pouco o bastante para eu passar, mas não tenho certeza de que Distrito Um consegue. Caio no chão ofegante e quase sem ar.
Não. Eu preciso chegar até John.
Eu agarro um pedaço de vidro da janela quebrada e arremesso. O vidro vai parar em seu pescoço segundos antes de sua lâmina tentar perfurar meu rosto. Ela cai para trás agarrando seu pescoço, tentando estancar o sangue que jorra de seu ferimento. Ela consegue tirar o pedaço de vidro, mas não há mais nada a fazer. Suas costas também sangram, pois ela caiu no resto de vidro que descansava no chão. Eu fecho os olhos e lentamente me arrasto para longe. Levanto e corro, sem ao menos olhar para trás.
Eu matei alguém. Alguém que não me fez mal algum. Uma família vai me amaldiçoar e torcer para que alguém me mate do jeito mais torturante o possível.
Continuo correndo em direção à Cornucópia. Perdi muito tempo lutando contra a menina do Distrito Um (Nem ao menos sei seu nome!), e agora preciso recuperá-lo. Esqueço o que é ar, porque não consigo inspirar nada além de medo e desespero.
Chego ao prédio do alçapão e me escondo nele. Levanto os olhos para olhar pela janela do térreo e os tributos ainda estão lutando. Minha visão, agora melhor, procura freneticamente por John, mas ainda não o acho. Isso me tranquiliza por um tempo, pois se eu não o acho, pode ser que tenha corrido de lá. O aerodeslizador só recolhe os corpos depois que os matadores se afastam.
Mas então eu o vejo. Caído num canto afastado do chifre, de onde ainda lutam pela comida, está uma versão detonada de John.
Seus olhos viajam em medo e sua panturrilha sangra em excesso. Sem me preocupar com os outros – estão ocupados demais lutando entre si – corro até ele e me ajoelho. Ele arregala os olhos.
-Anna, desculpa! Eu não podia te deixar passar fome, então eu vim enquanto você dormia e...
-Shh. Cale a boca. – Eu digo. – A gente conversa mais tarde. O que aconteceu com você?
-Distrito Dois.
Eu me viro e vejo um menino alto e grandalhão se mover entre a luta. Seu oponente – o menino do distrito Cinco – caí no chão; Sua perna desconectada do corpo. Seu grito estridente faz meus ouvidos doerem e logo me viro de volta para John.
-Ele foi bonzinho com você. – Eu comento. John balança a cabeça.
-Está vendo aquele corte no rosto dele?
Olho novamente e vejo-o lutando contra a menina do distrito Sete e seu machado. Ela consegue cortar sua barriga, mas ele nem sequer grita. A menina se vira e corre para longe dele. Pelo jeito desistiu da comida. Distrito Dois tem um corte no rosto mais parecido com uma garra de urso. Dele escorre sangue e mais sangue, e se seu dono não conseguir pará-lo, vai morrer em duas ou três horas (menos, se juntar o fato de que sua barriga agora sangra como ninguém).
-Bom trabalho. – Eu digo, passando minha cabeça por debaixo de seu braço e o levantando. John é mais leve do que eu pensei, mas mesmo assim não conseguiria levá-lo para longe mais do que quinhentos metros. Decido que é isso ou nada, e começo a andar.
Consigo levá-lo até o alçapão e entramos lá sem que ninguém repare. John respira com dificuldade e, assim como eu, busca o ar abafado do túnel. Ele diz que precisamos continuar andando, mas eu o interrompo.
-Seu idiota! – Quero lhe dar um tapa, mas ele está muito machucado para isso. Então eu o abraço, quase o sufocando. Minha respiração toma lugar em seus ouvidos e eu o aperto ainda mais. Lágrimas correm pelo meu rosto antes que possa detê-las.
John me abraça de volta e ficamos assim por mais ou menos dois minutos.
-Você podia ter morrido enquanto eu dormia! Sabe o quanto ruim isso seria?
-Você sentiria a minha falta. – Ele cantarola sorrindo. – Anna sentiria falta do John.
-Não! – Eu o corrijo. – Só que eu ia ter que ficar sozinha com a Marina.
-Sentiria. Admita.
-Se você repetir isso eu vou te jogar para fora desse túnel agora.
Ele ri, mas assente. Eu me levanto, levantando levemente a tampa do alçapão para ver a cornucópia. O menino do Distrito Dois luta com o menino do Distrito Doze.
-Eu volto já.
-O que? Você não vai lutar no ágape, Anna Madison!
Eu pego rapidamente um tridente e saio do túnel, ignorando suas reclamações e pedidos.
De onde estou arremesso o tridente. Ele viaja e vai parar nas costas de Distrito Dois. Ele cai para frente, e para reforçar meu golpe e ter certeza de que ele morreu, Distrito Doze o chuta na barriga. Ele olha para mim; Seus olhos brilhando em medo e confusão. Eu assinto e corro para o primeiro andar do prédio. Talvez, se voltasse para o alçapão, ele me seguisse. E não quero mais aliados ou amigos e muito menos ameaças. Já chega.
Como eu previ, distrito Doze me segue até o primeiro andar. Estamos congelados, um na frente do outro.
-Obrigada. – Ele começa. Eu assinto.
-Estava lhe devendo essa.
Ele concorda e se vira, saindo do prédio. Olho para os lados e entro no alçapão, minutos depois. John suspira de alívio quando chego.
-Estava quase indo te buscar. – Eu sinto vontade de rir, pois com esse machucado na perna ele não conseguiria nem sair do alçapão sozinho. – Onde está seu tridente?
-Nas costas do Distrito Dois. – Eu comento, buscando ar.
Ele sorri. Eu pego na mochila o resto dos primeiros socorros que temos e começo a cuidar de seu ferimento ele geme e eu rio.
O chão treme levemente e eu tiro a cabeça para fora do alçapão para ver o que está acontecendo. Só sobraram dois lutadores pela comida, o resto foi embora ou morreu. Distrito Doze e Distrito Sete se engalfinham no chão poeirento enquanto uma mesa longa sobe dele.
-Tá de brincadeira! – Eu exclamo.
-O que? O que?
Eu volto a me sentar ao seu lado.
-Toda essa luta... – Eu olho para seus machucados. – Para aquilo. Sabe o que tinha na mesa? O banquete pelo qual tantos morreram?
-O que?
-Dois pássaros engaiolados, pássaros pequenos, e duas garrafinhas de água. – Eu olho para o fim do túnel com a cabeça dando voltas. – Só isso.
John não se manifesta, fazendo o mesmo que eu.
-Que droga. – Ele finalmente abre a boca. Eu concordo.
-Troy bem que podia nos mandar mantimentos, não é? Quer dizer... Só sobraram sete de nós, mas eu estou morrendo de fome.
-Sinto muito, Anna. Eu podia ter pegado a comida. A culpa foi desse machucado idiota.
Eu rio.
-Tudo bem. Vamos sair daqui antes que eles comam e venham nos ver.
Eu o ajudo a levantar e o carrego até onde consigo. O resto eu o puxo, enquanto engatinho. Demoramos aproximadamente três horas para sair do túnel, e eu decidi que nunca vai vou entrar num túnel de novo.
Sentamos na escada, nos preparando para sair. Meu estômago reclama e estou quase desmaiando, quando o alçapão se abre e o menino do distrito Onze entra. Eu arregalo os olhos, assim como John. Ele parece assustado. Não nos movemos, muito menos ele. Até que, num movimento súbito, ele se vira e começa a percorrer o túnel, mas cai antes de chegar à curva. Está morto.
Seu canhão soa.
-O que você fez?! – Eu me assusto, indo até o corpo morto do tributo e retirando a faca de seu crânio, amedrontada com o sangue que escorre por ele.
-Não temos outra escolha. Desculpa. Mesmo! – Ele pega a xícara e coloca na altura da curva de seu pescoço. A xícara se enche de sangue em segundos, e com repulsa John vira a xícara e engole seu sangue.
-Isso é canibalismo, Turnit!
-Isso é sobrevivência. – Ele me corrige, sinistramente bebendo outra xícara. Então me passa. Eu a encaro por alguns segundos, mas a dor em minha barriga vence e peço desculpas algumas mil vezes enquanto bebo três xícaras de seu sangue.
John começa a cortar sua barriga. Acho que vou vomitar. Com as mãos sujas, ele chacoalha a carne do tributo e a coloca na boca.
-Ah! – Eu grito, me virando e tampando a boca. Não vou vomitar, não vou vomitar.
Ele toca meu ombro e logo me afasto. Meu ombro desnudo está sujo de sangue.
-Sinto muito. – Ele me entrega um pedaço de carne. Tremula, eu o recebo. O tributo era alto e forte, então, mesmo odiando a ideia, vai nos proporcionar tardes com os estômagos satisfeitos. – Mas não posso te deixar morrer.
Eu assinto, ignorando a última frase.
Relutante engulo o pedaço de carne, e por mais que não goste de admitir, o alimento faz meu estomago se revirar e a dor é levemente aliviada. Depois de bilhões de desculpas e vários pedaços de carne engolidos, a dor é nula.
-A gente deveria procurar por Marina? – Eu pergunto.
-Acho que não. – Ele balança a cabeça. – Só sobraram sete de nós... A essa altura ela já nos daria facadas pelas costas.
Depois de refletir por um tempo eu assinto.
-Você está certo. – Eu suspiro, lambendo o sangue de meus dedos. – Parece que agora somos só nós dois.
Ele coloca o braço em meus ombros, e eu não consigo me afastar. Lágrimas silenciosas escorrem por meu rosto.
-Acha que ainda temos patrocinadores? – Eu pergunto. Não consigo encará-lo, então meu olhar foca a curva do túnel. O corpo morto já começa a soltar um cheiro podre e logo teremos que tirá-lo do alçapão.
-Como assim?
-O único paraquedas que recebemos foi o desenho. – Eu digo. – Será que eles nos julgam fracos demais para ganharmos?
A palavra me faz tremer. Ganharmos, ganharmos. John parece ler meus pensamentos e ri. Logo eu me junto a ele. Como se os dois pudessem ganhar juntos. Ha.
-Quer jogar um jogo?
Eu paro de rir e sorrio.
-Se não for o Voraz, eu topo.
Ele sorri de volta.
-Se chama “Sério”. – Ele explica. – Tudo o que precisa fazer é encarar o outro por mais tempo, sem rir.
Eu rio.
-Que fácil.
Ele começa a me encara, compenetrado.
-Vai perder Madison!
Eu paro de rir e o encaro de volta com um falsa expressão de raiva. Quatro ou cinco minutos se passam e nenhum de nós diz nada.
Não desvio o olhar de seu olhar, mas pelo canto dos olhos eu o observo atentamente. Suas mãos sangram não sei por que e ele as esfrega. Seus joelhos quase tocam os meus. Seu cabelo chamuscado está mais desarrumado do que nunca, o que lhe dá um ar sinistro de assassino de criancinhas, mas seu olhar brilha e seus lábios se curvam em um sorriso, o que ameniza sua expressão.
Não consigo não compará-lo com Jason.
Jason é loiro e tem olhos azuis. O cabelo dos dois é bagunçado e curto. O olho de Jason brilha tanto quanto o dele. Os dois nunca exibem os dentes quando sorriem e a risada de Jason é mais discreta que a de John.
Por que estou fazendo isso? Eu não deveria comparar os dois. O que John já me fez, afinal? Certo, ele salvou minha vida algumas vezes... Mas nada comparado ao que Jason já fez por mim e comigo.
Por instinto eu desvio o olhar, e John bate palmas.
-Ahá!
Mas estou séria. Não quero brincar mais. Só quero sair daqui.
-Anna?
Uma sensação claustrofóbica toma conta de mim e as paredes parecem se fechar ao meu redor. Ao longe eu ouço um canhão e imagino quem teria morrido, ou se ele era da minha imaginação. John toca meu ombro e eu me obrigo a não ficar louca novamente.
-Nada. – Eu digo, piscando e percebendo que ele ainda olha para mim, agora com um ar preocupado. Eu minto. – É esse cheiro podre. Eca.
-Vamos colocá-lo para fora. – Ele o puxa e olha para fora. Depois de minutos o corpo está fora do túnel e o cheiro se dissipa lentamente. Já é noite. Decido que eu vou ficar de guarda e John não faz nenhuma objeção. Ele apoia sua cabeça em sua mochila enquanto eu tiro a cabeça para fora para respirar e ver quem morreu. A lista total de mortos ficou assim:
Menina do 1 – Eu matei Menino do 1 - Explosão Menina do 2 (Lisa) – Eu Menino do 2 - Eu Menina do 3 (Hyllu) - Lisa Menino do 3 (Ky) - Lisa Menina do 5 - Desconhecido Menino do 5 - Distrito Dois Menina do 6 - Explosão Menino do 6 - Explosão Menino do 7 - Shelly Menino do 8 (Rev) - Jack Menina do 9 - Desconhecido Menino do 9 - Desconhecido Menina do 10 - Desconhecido Menino do 10 (Jack) – John Menina do 11 – Desconhecido Menino do 11 - Explosão Menina do 12 (Shelly) - ExplosãoTributos restantes: Seis.
E que os Jogos realmente começem.
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