Entre Pontas De Faca E Velhas Histórias escrita por Ana Barbieri


Capítulo 3
Capítulo 3




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Capítulo 3

            Passei a tarde trancada no meu quarto. Hora derramando algumas lágrimas de ódio, hora lendo romances de Poe ou observando o movimento pela janela. Eventualmente, ouvia algumas batidas na porta e a voz de Holmes em seguida, insistindo para que eu a abrisse. Ignorei-o. Por mais que quisesse descer para comer, não gostaria de dar a ele o gosto da vitória. Contudo, minha fome é tanta, que me convence a fazê-lo.

            _ Gostaria de desabafar? – eu senti uma ponta afiada de um florete nas minhas costas. Não pressionado com muita força, é claro. Mas o suficiente para que eu soubesse de sua existência. Me virei, encarando meu marido com disfarçada perplexidade.

            _ Ficou me aguardando a tarde inteira? – perguntei achando graça.

            _ Não... Passei boa parte dela pensando em como faria com que falasse comigo. Então me lembrei de que me casei com uma mulher movida pelo perigo. – respondeu lançando um olhar significativo para a lâmina que possuía em uma das mãos. Havia outra, com certeza esperando o momento de ser usada.

            _ Rúm... Se meu combatente for você, não terá perigo nenhum. Apenas um pequeno joguinho. – desdenhei.

            _ Um jogo é o suficiente para mim. Só quero fazê-la desabafar. – retrucou ele, fazendo um movimento rápido com o florete no ar, entregando-me.

            _ Por que não podemos simplesmente conversar como um casal normal?! – exclamei, segurando o objeto e me pondo em guarda.

            _ Assim é mais divertido. – disse ele simplesmente, também assumindo posição.

            Soltei um riso abafado e comecei a atacá-lo. Mirando bem no rosto. Pretendia arrancar o máximo de sangue possível dele. Parecia ser um sentimento recíproco, afinal, ele também tentava me machucar. Uma situação freqüente desde que nos casamos... tentativas falhas para ganhar de mim. E, por mais que esteja zangada, tenho que admitir que isso seja melhor do que uma simples discussão normal entre um casal.

            _ Devo perguntar por que Irene Adler a deixou zangada? – indagou quando nossas lâminas estavam forçadas uma contra a outra e nossos rostos estavam a milímetros de distância.

            _ Não é com ela que estou zangada. – retruquei, passando uma rasteira nele. Corri para pegar sua arma e por um segundo, quase perdi a oportunidade. Claro, consegui no final... como sempre. Ele se recompôs com dois floretes apontados para o seu peito.

            _ O que está acontecendo aí em cima? – perguntou a senhora Hudson, preocupada.

            Retirei as lâminas da vista de Sherlock e me coloquei a descer as escadas. Ele me seguiu. A nossa senhoria nos olhou espantada. Anunciou que o jantar já estava posto na mesa, mas meu marido ainda queria terminar seu interrogatório.

            _ Então... gostaria de saber a razão da sua raiva. – pediu ele. O mirei com os olhos em chamas. Deveriam estar brilhando como a chama de uma vela. Voltei a empunhar o florete, assustando a senhora Hudson profundamente.

            _ Há dois anos eu me tornei a senhora Holmes, sabendo de todos os riscos que isso traria para mim. Por exemplo, o fato de quase morrer durante um incêndio na noite passada, a minha quase morte durante o caso de Stanpleton e... a possibilidade de ficar viúva a qualquer momento. – disse, fazendo um grande corte no peito dele. – Sempre respeitei seu trabalho e as suas horas, dias, trancado no laboratório, a sua prática de violino pela madrugada, seus experimentos com armas... – continuei, deixando-o sem saída contra a parede. – Sempre sacrifiquei minha vontade de estar ao seu lado, pelo bem do seu trabalho.

            _ Nosso trabalho! – apressou-se ele em dizer. – Eu nunca desmereci a sua ajuda...

            _ E também nunca fez os mesmos sacrifícios por mim... – murmurei, engolindo algumas lágrimas.

            _ O que um “não” para Irene Adler significaria para você?

            _ Que você se importa! – urrei, assustando não somente a ele ou a senhora Hudson, mas a mim mesma pela altura com que a exclamação saíra. – Durante todos os anos em que estive aqui, eu nunca pedi nada em troca dos meus favores, sacrifícios, como preferir. Contudo, eu sempre abominei Irene Adler. “A mulher” para Sherlock Holmes. Lugar que eu nunca consegui ocupar, eu suponho. Do contrário você a teria expulsado dessa casa assim que ela entrou. – minha voz estava embargada pelas lágrimas, estava sentindo espasmos pelo meu corpo, estava tremendo e mesmo assim consegui retirar forças para dizer o que ele queria saber.

            _ Anne ela simplesmente foi o trunfo que precisei para trabalhar no caso sem que...

            _ Você trabalharia nesse caso, com ou sem o consentimento de Lestrade ou de algum poder legal maior. Sei bem que faria isso Sherlock, porque conheço você muito bem. E pensei que me conhecia com a mesma intensidade também. Viu como olhei para ela! E ainda assim se atreveu a consentir algo a seu favor... Se tivesse o mínimo de consideração comigo, teria sacrificado a vontade de trabalhar nesse caso, pelo menos com a suposta legalidade... pela minha felicidade. – ouvi a porta se abrindo. Mycroft estava parado na entrada, espantado com a cena que se seguia. Transferi meu olhar dele para o irmão. – Acabou. – disse soltando o florete com força contra o chão. – Você venceu Holmes.

            Esbarrei no meu cunhado ao passar pela porta sem olhar para trás.

‡‡‡‡

            A noite já havia caído sobre Londres e não havia praticamente ninguém nas ruas. Pelo menos alguém com quem fosse seguro esbarrar. Eu deixava as lágrimas escorrerem pelo meu rosto e as secava com impaciência quando estavam prestes a pingar para baixo do queixo. Estava a caminho da casa de um casal muito estimado. Mary e John Watson. Nesta situação, tudo do que preciso é de um ombro amigo. O que só encontro realmente, com eles. Foi Watson que abriu a porta para mim quando bati.

            _ Anne?! – exclamou ele surpreso. Simplesmente o abracei com força, sem dar qualquer explicação. Ele também não as pediu, apenas retribuiu me guiando para dentro.

            _ Quem era que...? – Mary vinha caminhando da sala de estar para o hall de entrada com um sorriso no rosto, parando ao me ver naquele estado. – Anne?! Oh... venha... pobrezinha, o que aconteceu? – perguntava, enquanto me sentava em sua poltrona, ajoelhando-se ao meu lado, esperando uma resposta.

            _ O que Holmes disse a você? – indagou John, ao se sentar de frente para mim, fazendo com que eu sorrisse tristemente.

            _ Somos tão previsíveis assim? – retruquei rindo sem emoção.

            _ Certo tempo de experiência. – contrapôs gentilmente. – Então... o que ele fez?

            _ O que ele não fez, na verdade. – respondi com um sorriso de escárnio. – Deve ter visto a noticia do assassinato de Richard Longborn. Bem, logicamente, Holmes e eu fomos até lá acompanhar a investigação. Adivinharia quem estava lá?

            _ Certamente alguém de quem você não gosta. – constatou ele, evitando um riso.

            _ Godfrey Norton. – respondi com explicitas segundas intenções.

            _ Norton... o marido de Irene Adler... entendo. E o que aconteceu depois deste encontro tão promissor?

            _ Voltei para casa, dando de cara com o irmão de Holmes. Mycroft... o coitado que teve de presenciar a cena de uma das nossas famosas brigas. Por quê? Bem, simplesmente porque a famosa Irene Adler foi até Baker Street pedir para que Holmes resolvesse o caso em nome dos Norton. Um favor para ela... e ele aceitou. Pode imaginar como o meu humor ficou depois disso. – expliquei, sentindo meu sangue voltar a ferver.

            _ E agora você está subordinada a Adler. – disse ele, mais para si do que para mim. – Entretanto, sinto que não foi exatamente esse o motivo central da discussão.

            As lágrimas voltaram de repente e eu escondi o rosto entre as mãos. Mary colocou uma das mãos sobre meus ombros, tentando me confortar. Contudo, a única pessoa que faria com que me sentisse melhor, era a razão de minhas lágrimas.

            _ Só o que eu queria era um não. – murmurei. – Uma simples negação para aquela monstra. Depois de tudo o que sacrifiquei por amá-lo demais, quando ele tem a chance de retribuir... põe tudo a perder. Eu não aguentei...

            _ Perder para ela? – deduziu Watson sabiamente. – Anne, minha cara, eu lhe disse uma vez que entre Sherlock e Adler sempre houve mais uma competição do que amor puro...

            De repente, o próprio Sherlock Holmes adentrou a sala da casa, parecendo cansado e com uma expressão taciturna. Contudo, bastou que eu olhasse mais um pouco para seus olhos para descobrir a dor que se escondia neles, a súplica. Bem merecido. John e Mary se entreolharam, saindo dali em direção a cozinha, deixando-nos a sós.

            Permaneci sentada, desviando seu olhar, somente esperando o que viria a seguir. Ele se ajoelhou ao meu lado, colocando as mãos sobre as minhas.

            _ Anne... – começou no que eu retirei minhas mãos das dele e as encolhi contra meu colo.

            _ Não quero falar.

            _ Ótimo, porque eu só quero que me escute.

            Voltei a encará-lo, sem que houvesse alguma brecha de resignação.

            _ Jamais ignorei os sacrifícios que fez por mim. Ao contrário, eu tenho muito a lhe agradecer querida. É a melhor esposa que eu poderia querer e sua felicidade é muito importante para mim.

            _ Então porque não mandou Adler embora?!  - exclamei, me levantando para ficar próxima a janela.

            _ Anne... se por acaso pensa que algum dia já amei Irene Adler, é porque não me conhece tão bem quanto diz. Muito bem, admito que a considerasse uma pessoa intrigante a principio, mas nunca passou disso. Ela nunca exerceu sobre mim o mesmo poder que você minha querida Bergerac. Eu imploro para que não me odeie... não poderia conviver com isso...

            _ Posso ter perdido um caso para ela. Mas você... Perder você é um sacrifício que não estou disposto a fazer. – ele me abraçou por trás. Sussurrando essas últimas linhas ao pé do meu ouvido. Contra minha vontade, escapei de seus braços, encarando-o de frente.

            _ Eu confio em você Sherlock. – assegurei. – É nela que não confio. É racional demais para perceber a maneira como ela olha para você. Claro, muitas já o consideraram um homem bonito, mas desistiram ao perceberem que você não daria brechas. Ela não... Irene não vai desistir até ter sanado sua curiosidade. Por isso a odeio tanto... mas nunca você. Jamais poderia odiar o meu detetive Pomposo. – assumi entre risos. Holmes me fitou por um momento, sério.

            _ Pois muito bem, ela que se atreva. Sei que estou muito bem protegido enquanto você estiver de vigia. Entretanto se por algum acaso essa proteção falhar, não me sentiria nenhum pouco culpado de machucar Irene Adler. – ponderou ele, pomposamente.

            _ Ah... Holmes... – suspirei, fingindo estar totalmente encantada com seu discurso, pulando em seus braços para abraçá-lo.

            _ Por que será, em nome de St. George, que vocês nunca me deixam perder esses momentos? – brincou Watson, parado atrás de nós com Mary nos braços.

            _ Sempre está metido neles meu amigo, querendo ou não. – retrucou Holmes sorrindo.

            _ Acho melhor irmos agora. – disse um tanto constrangida. – Me perdoem por chegar assim...

            _ Uma entrada teatral Anne. – disse Mary, rindo. Ela caminhou até mim, me abraçando gentilmente. – Sempre que precisar... – sussurrou para que somente eu pudesse ouvir. Sorri em troca.

            Sherlock me tomou pelo braço, se despedindo do nosso casal de amigos. Também o fiz e saí acompanhando seu ritmo. Um momento de trégua suponho, em que pela primeira vez nenhum dos dois saiu ganhando... ou talvez eu tenha vencido, como sempre. Contudo, vamos dizer que foi um empate, para que ambos os egos saiam aliciados. Pobre Mycroft. Mal chegou e já teve que presenciar uma das famosas discussões do casal Holmes.

            _ Conheço essa expressão. – comentou Sherlock, olhando para mim. – Essa massa cinzenta está pensando alguma coisa. O que seria? – quis saber, curioso.

            _ Em como seu irmão é azarado. – respondi.

            _ Pelo contrário, acredito que seja até sortudo demais...

            _ Por quê? – indaguei surpresa.

            _ No estado que você estava... foi uma grande sorte ele ainda estar vivo. – brincou Sherlock, em um dos seus raros momentos de tentar fazer uma piada. Eu sorri.

            Assim que chegamos, Mycroft abriu a porta nos recebendo. Parecia agir com extrema cautela para que eu não voltasse ao meu humor anterior, o que me fez rir um pouco de seus modos. Sherlock já estava sentado em sua poltrona, acendendo seu cachimbo. Eu, por outro lado, alcançara a caixa do meu violino que ficava sempre ao lado da minha poltrona e começara a tocar.

            _ Resolveram tudo então? – ponderou ele, sorrindo.

            _ O que o faz pensar isso? – quis saber, abafando um riso.

            _ Sinto que finalmente voltamos ao que seria uma noite normal em Baker Street. Estou enganado em supor?

            _ Não... mas eu não usaria a palavra normal. Diria apenas pacato. – retruquei, continuando a tocar.

            _ Conseguiu alguma informação nova com os Lords do Parlamento meu caro? – perguntou Holmes, de repente.

            _ Bem, ao que parece ninguém da câmara teria ousado ferir Longborn. “Não possuem motivos”, dizem eles. Mas eu duvido muito, Richard é o tipo de homem que com certeza teria muitos assuntos pendentes. – ponderou Mycroft.

            _ Do modo como fala, faz parecer que ele já lhe fez algo antes. – falei entre um acorde muito agudo e outro.

            _ Não comigo... mas já ouvi relatos de pessoas que já tiveram o prazer de sofrer pelas mãos dele. – respondeu meu cunhado com ar sombrio.

            _ Perfeito! – exclamou meu marido, extasiado. – Nos dê uma lista com os nomes, poderemos falar com eles. Algo deve nos dar uma pista de quem cometeu o assassinato. Se não uma dessas pessoas, uma ligação com outro possível suspeito. – afirmou ele, exalando uma espessa cortina de fumaça pelo ar.

            Soltei um risinho abafado. As chances de essas tais testemunhas falarem era alta, afinal Richard já está morto. Contudo, o que ele poderia ter feito para que alguém sentisse a necessidade de matá-lo? O que poderia ter sido tão terrível ao ponto de... Enfim, ele deveria ter um confidente, um amigo em quem confiasse. As mentes maliciosas de Londres nunca foram muito espertas.

            _ Haveria alguém em quem ele confiasse, a ponto de... “falar demais”? – Mycroft me lançou um olhar penetrante. Pensando sobre o assunto. De repente, a própria resposta surgiu em minha mente... e como me odiei por pensar nisso.

            _ Norton? – sugeri, escondendo minha irritação.

            _ Talvez. Era seu advogado. Estavam juntos há muito tempo, quem sabe os laços profissionais não os fez adquirir contato mais amistoso? – concordou Holmes.

            _ Quer dizer que, querendo ou não, vou precisar da família de Godfrey Norton para resolver esse caso. – disse, parando de tocar, me jogando violentamente em minha poltrona.

            Sherlock sorriu de lado para mim. Bufei, me contendo e voltei a encarar Mycroft.

            _ Então está decidido. – ponderei, obstinada. – Amanhã vamos falar com Godfrey Norton. E mesmo que, tecnicamente esteja trabalhando para Irene Adler... ela vai ter que jogar de acordo com os meus termos.


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Notas finais do capítulo

Mais um presentinho pra vcs... espero que gostem! REVIEWS!!!!!!!!!!! VOcês sabem como mimar esta autora!



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