[...]

 - Mas... Como nós vamos achar ele?

 - Um cachorro? – Matt indagou duvidoso. Estava dividido entre achar graça já daquele pequeno começo da história, ou desconfiar dela. Parecia um tanto... Improvável, até mesmo para eles.

 - Aquele cachorro pulguento fez a maior bagunça no escritório do Roger, e depois resolveu sumir pela cidade – Mello bufou lembrando-se do animal. Não que guardasse algum rancor do pobre cão, mas... Não, guardava sim. Lembrava muito nitidamente da bronca que levou por causa dele, para não guardar.

 - E por que nós que acabamos levando a culpa?

 - Pura paranoia dele!

O garoto loiro que parecia ter uma paixão incomum por chocolates e o ruivo que dificilmente focava sua atenção por mais do que alguns segundos em quem não lhe interessava, chegaram praticamente na mesma época ao orfanato. Com uma diferença de poucas semanas, na verdade. E não foi preciso um tempo muito longo para o diretor e os monitores do local darem-se conta de que aqueles dois não seriam os mais fáceis de se lidar. Especialmente depois que começaram a andar juntos.

 E ainda com certo episódio envolvendo uma cozinha suja até o teto de leite e chocolate em pó em mente, Roger não precisou de nenhuma palavra ou justificativa ao entrar em seu escritório certa manhã e deparar-se com uma cena, em sua opinião, autoexplicativa o bastante.

 Não quis saber o por quê, nem quis ouvir a estranha história que os dois pareciam querer contar; tudo o que seus olhos viam era os papéis, documentos e anotações, amassados e espalhados por todo o chão, as manchas escuras de terra por todo lado, uma de suas molduras gravemente trincada, fazendo companhia para o abajur agora dividido em dois, e as duas crianças no meio de tudo aquilo.

 - Paranoia? – Matt quase riu com o absurdo que aquilo soava – Sério mesmo?

 - Claro! Éramos totalmente inocentes!... Daquela vez.

 - Então foi o tal cachorro que fez tudo aquilo? – Matt tentou acompanhar a história, por mais sem sentido que ela parecesse. Soava mais como o tipo de desculpa que crianças costumavam usar para justificar um dever de casa não feito, ou um objeto quebrado no meio de uma travessura – E como foi que Roger não o viu?

 - Hunf – Mello dobrou melhor as pernas, deixando o corpo em uma posição mais confortável – Nós estávamos no jardim, tentando achar alguma coisa que tínhamos jogado lá, nem lembro mais o quê, quando aquele bicho apareceu. No começo pareceu uma boa ideia, ele parecia amigável e tudo, e começamos a brincar com ele. Até que o maldito correu pra dentro da Wammy’s, e depois de fazer a gente passar por quase todos os corredores, ele escolheu justo a sala do Roger pra transformar em playground particular.

 Matt cada vez mais achava que Mello estava improvisando toda aquela história, apenas para dar uma justificativa diferente para aquele lugar, embora não soubesse exatamente o por quê. Afinal, quais eram as chances de um cachorro, tendo o tamanho que fosse, ficar correndo pelos corredores de um orfanato sem ninguém sequer perceber?

 - Enfim. Quando o Roger teve a infelicidade de entrar na sala, o cachorro já tinha ido pra algum outro lugar fazia tempo e nós estávamos tentando – desesperadamente – arrumar tudo antes dele descobrir aquela bagunça. Acabou que não fomos rápidos o suficiente.

 Essa parte até que o ruivo conseguia imaginar bem. Uma versão menor deles perdendo em velocidade e movimento para um animal, e depois tentando formar pilhas de papéis para devolver tudo ao lugar certo, mas parando no meio do processo por não saber qual era o lugar certo.

 - Tá legal. O que eu quero entender é... Como que nós acabamos na rua procurando pelo tal cachorro? Quero dizer, dá até pra pensar que se mostrássemos o cachorro pro Roger, ele acreditasse em nós, mas... Como íamos provar que simplesmente não catamos o primeiro cachorro que encontramos na rua só pra confirmar a história?

 Era uma boa pergunta. Um pensamento básico, realmente.

 E por isso mesmo Mello pareceu meio sem jeito quando respondeu baixo, quase sem mover os lábios – Pareceu uma boa ideia na hora.

 As duas crianças aumentavam o passo gradativamente conforme iam avançando por áreas cada vez menos iluminadas e mais desertas, olhando de vez em quando por cima do ombro como se quisessem ter certeza de que não havia nada escondido nas sombras deixadas para trás.

 - Mello, tem certeza de que é por aqui? – Matt perguntou baixinho olhando para os lados.

 - Tem que ser! – Mello respondeu alto, apenas para mostrar certeza e confiança (duas coisas que tinha parado de sentir há várias esquinas de distância), mas sua voz soou estranhamente solitária no meio daquela rua escura – Aquele pulguento não tinha dono, estava sem coleira e maltratado demais pra pertencer a alguém. E hoje está muito frio, então ele não vai dormir na rua. Ele tem que estar em uma dessas casas caindo aos pedaços!

 O raciocínio era bom, principalmente para uma criança daquela idade, e Mello não tinha dúvidas da sua linha de pensamento. Apenas... Agora que os dois estavam ali, sozinhos e provavelmente perdidos, a execução de tal linha não parecia mais tão convidativa assim. A única coisa que o impedia de aceitar o olhar incerto de Matt e voltar – ou ao menos tentar – para o orfanato, era a injustiça por ter levado a culpa borbulhando dentro de si.

 - E nós acabamos chegando nessa casa – concluiu Matt, internamente achando graça que desde pequeno Mello tivesse aquela atitude de “serei um detetive um dia” – E o cachorro estava aqui?

 -... Não.

 - Não?

 - Não. Na verdade nós... – e desviou o olhar de Matt, bufando quase imperceptivelmente e só faltando cruzar os braços para completar a imagem, antes de completar –... cansamos de andar.

Aquela casa era intimidadora à primeira vista, especialmente com as sombras das árvores antigas se projetando em suas laterais como se a segurasse. Mas não tinham muita escolha. Estavam andando há o quê? Quarenta minutos? Uma hora? Mais? Não sabiam. Mas estavam cansados.

 Empurraram a pesada porta de entrada e passaram para o lado de dentro. Não foi preciso nem dar o segundo passo para sentir o cheiro do pó infestando o lugar. Andavam quase na ponta dos pés, olhando para cada canto e esperando que algo pulasse de lá de repente, talvez um mendigo, um drogado, ou mesmo o maldito cachorro.

 Conseguiram alcançar o primeiro cômodo sem nenhuma surpresa.

 Mello parou subitamente de falar com um suspiro, como se tivesse se cansado ou simplesmente não visse mais sentido naquilo.

 - Sabe, Matt – foi o que disse depois do intervalo que o ruivo pacientemente esperou passar – Não importa realmente o que tornou esse lugar um “refúgio” nosso. Quero dizer, não tem sentido eu falar. Você teria que lembrar para entender, porque senão vai parecer mesmo bastante idiota.

 - Como assim? – Matt não conseguiu esconder sua decepção, ou mesmo a pontada de indignação – Vai me deixar no suspense até que minha cabeça resolva dar um estalo? E se eu nunca lembrar? – e se arrependeu antes mesmo que as palavras terminassem de se formar em sua boca.

 Uma sombra passou pelo rosto do loiro, como algo doloroso, e desapareceu em um brilho triste em sua expressão, que também durou apenas alguns segundos antes de sumir. Mello parecia estar fazendo certo esforço para sumir com aquilo, e mostrou isso ao virar o rosto e falar bem claramente:

 - Agora é que eu não conto mesmo – desta vez ele cruzou os braços – Vai ter que se lembrar se quiser saber.

Na verdade, as ações que ocorreram naquele lugar não surpreenderiam ninguém que estivesse vendo de fora. Atos e falas sem nada de extraordinário. Porém, não era na superfície em si que os dois estavam prestando atenção.

 Era estranho, mas mesmo se conhecendo há meses agora, mesmo dividindo um quarto e metade das broncas e castigos, aquela era a primeira vez que se viam realmente. Cada um enxergava o outro com tanta clareza que chegava a surpreender, e não deixava de ser um tanto... Extraordinário.

Não sabiam explicar com exatidão em que momento aquela impressão surgiu, mas de algum modo aquele lugar havia adquirido uma atmosfera própria, única. Continuava sendo uma casa velha e suja, com as mesmas paredes descascadas e com início de vazamento, com o teto ameaçando ceder a qualquer momento e com o chão rangendo. Nada disso mudou, e nem poderia, naquele intervalo de menos de duas horas, porém, o modo como aquelas duas crianças saíram enxergando o lugar, que naquela mesma noite lhes parecera tão intimidador, mudou completamente. Talvez não fizesse nenhum sentido para mais ninguém, mas era como se tivessem acabado de encontrar um local próprio, apenas deles, onde nenhuma máscara precisava ser mantida, onde qualquer atitude seria aceita.

 “Nenhum máscara precisava ser mantida”.

 “Qualquer atitude seria aceita”.

 Improvável até para sua própria mente, mas mais tarde, quando estivesse relembrando pela décima vez a sequência daquela noite, Mello chegaria a considerar que no fundo, foi baseado unicamente naquelas duas ideias que ele levou Matt até aquele lugar. Obedecendo a uma esperança tola e habilmente escondida de si próprio, de que elas serviriam de justificativa para alguma coisa, qualquer coisa, que viesse a acontecer ali. Esperava que acontecesse? Claro, nem tinha como negar. O problema era que apenas hora depois se dera conta da existência de tais esperanças.

 Naquele momento, enquanto Matt fechava os olhos e se concentrava, tentando se lembrar de alguma coisa – e sem coragem de dizer mais nada, arrependido por levantar uma possibilidade que sabia que machucava o outro –, passando a não reparar em nada mais ao seu redor, Mello passou a ouvir um estranho e irritante zumbido em seus ouvidos ao voltar a fixar o olhar no ruivo. Como se de uma hora para outra estivesse mergulhado em uma outra dimensão. Uma dimensão nova e alheia à sua, onde o controle de seu corpo não lhe pertencia e onde qualquer pensamento mais complicado poderia ser simplesmente dispensado, desnecessário.

 Não estava exatamente pensando. Na verdade, sua mente parecia ter esvaziado completamente. Apenas sentia. Talvez fosse um efeito do que aquele lugar sempre representou pra ele, ou quem sabe simplesmente houvesse atingido um ponto aquém de seus limites. Não sabia e estava longe de se importar. Naquela hora.

 Sentia o cheiro do ruivo, em um rastro que se recusava a desaparecer no ar; sentia o fantasma do calor dele o envolvendo ainda; o bater forte de seu coração, assim tão próximo ao dele. Sentia uma vontade irreprimível de manter tudo isso, de repetir tudo para que jamais desaparecesse. Pela primeira vez em sua vida deixava-se levar inconsequentemente por um lado irracional até então desconhecido para si.

“E se eu nunca lembrar?”

 Tinha vaga noção de inclinar o corpo lentamente para o lado, do ruivo ainda estar com os olhos fechados e imóvel, da pele alva em um contraste impressionante com as mechas e com os lábios contraídos em uma linha de concentração. Mal registrava o vento cada vez mais frio que entrava pelo buraco no teto, sua franja caindo sob os olhos, ou que estava cada vez mais próximo do outro, mais e mais.

 Até que ele acordou.

 Como se somente naquele segundo ele tomasse consciência de que estivera se movendo, congelou como estava, os olhos arregalados. Seu braço estava erguido e sua mão, a meio centímetro da nuca do ruivo, com os dedos fazendo clara menção de fecharem-se ali. Sem falar no modo como seu corpo estava quase jogado para aquele lado, a tão pouca distância de Matt que se o ruivo ainda não estivesse sob o efeito dos próprios pensamentos, certamente já teria se afastado em puro e simples reflexo.

 O que... O que estava prestes a fazer?

 De repente reparou que sua mão tremia, e tentou abaixá-la e trazê-la de volta para si. Não conseguiu. O máximo que foi capaz de fazer foi apoia-la no ombro de Matt. Péssimo. Isso fez com que o ruivo também despertasse e virasse enfim para o loiro, parecendo ligeiramente desapontado consigo mesmo por não ter conseguido nenhum resultado, e imediatamente se preocupasse com os olhos azuis arregalados e a face pálida dele.

 - Mello? – chamou incerto. Ele parecia... Podia estar enganado, mas aquela expressão... Ele não parecia estar assustado com algo? Mas com o quê? Será que o que dissera o tinha atingido tanto assim? Teve vontade de bater em si mesmo – Mello, o que foi?

 - Eu...

 Sua mente estava completamente em branco, só que agora não por causa do nevoeiro quase místico, hipnotizante, de instantes antes. Agora o que o visitava era o branco do pânico; pânico dos que não sabem como agir, dos que subitamente se veem perdidos em uma situação aparentemente fora de seu controle.

 Tudo que conseguia fazer no momento era tentar assimilar o fato de que estivera prestes a fazer exatamente o que vinha tentando evitar nas últimas semanas, e encarar assustado a expressão preocupada de Matt.

 Talvez as palavras que sem querer Matt soltara tivessem enfim tocado o limite do que Mello era capaz de aguentar. Talvez, a possibilidade pronunciada pelo próprio ruivo, tivesse atingido tanto seu subconsciente, que este resolveu tentar dar um fim naquilo à sua própria maneira.

 Quem sabe esta fosse a parte dele que queria colocar de uma vez um fim definitivo naquilo, e deixar as palavras escorregarem e formarem a sentença que até o momento não se atrevera a verbalizar sequer para si mesmo. Mas a outra, do lado mais racional que o tornava o número dois da Wammy’s, mesmo que quase que totalmente entorpecido agora, ainda brigava fracamente pelo controle. Estava bem perto de ser derrotada, a bem da verdade.

 Talvez fosse melhor assim, mesmo que temesse a reação do ruivo. Não poderia ser tão ruim... Poderia?

 Para sua sorte – ou não – quando estava prestes a abrir a boca para falar, um estrondoso barulho vindo do andar inferior fez ambos saltarem no lugar, desviando-lhes totalmente a atenção.

 Foi o suficiente para o cérebro de Mello acordar.

 Os dois se encaram por poucos instantes, até que Matt sussurrou incerto:

 - Sem-tetos?

 Mello negou com a cabeça. Há muito ninguém, que não eles, usava aquele lugar para se abrigar ou esconder; não sabia muito bem do por que, mas ninguém na região, fosse mendigo, traficante, ou simplesmente algum perdido, se aproximava daquela casa. Talvez alguém tivesse espalhado boatos de que era mal-assombrada ou algo parecido.

 Ambos permaneceram em silêncio, apenas escutando. Estavam quase suspirando aliviados, quando um novo barulho, mais baixo que o anterior, soou.

 Mello deu alguns passos, cauteloso para o chão não ranger, e alcançando a porta do quarto fez sinal para Matt o seguir. O ruivo hesitou por um segundo, mas logo estava andando bem atrás do loiro e assim como ele, prestando atenção a cada novo ruído. Não era como se estivessem esperando por um ladrão ou algo assim, mas que alguém entrar em uma casa abandonada e caindo aos pedaços, no meio da noite, era suspeito, isso era. Claro que relevavam o fato deles terem entrado na tal casa abandonada e caindo aos pedaços no meio da noite primeiro.

 Quem quer que fosse, continuava no andar de baixo. Mello pensou se seria melhor descer e conferir se precisavam realmente se preocupar, ou ficar ali quietos até que a pessoa decidisse ir embora. Olhou de esguelha para Matt e concluiu que ficar esperando ali no escuro não era uma opção.

 O ruivo estava pálido e os olhos verdes, fixos nos degraus de madeira da longa escadaria praticamente engolida pela pouca luz que ali batia. Sem querer, ouviu o eco da lembrança das risadas de deboche dos caras que o atacaram, e com isso era como se seu braço tivesse ficado mole, subitamente sem vida. Sabia que não tinha nenhuma lógica, aqueles caras estavam presos, mas por um momento, um único instante, sentiu medo.

 Mello deve ter percebido isso, porque arriscou dar o primeiro passo em direção à escada em seguida segurando forte a mão do ruivo. O fantasma daquela sensação de medo desapareceu de Matt no segundo que sentiu-se ser segurado, e sua mão então não estava mais fria. Pelo contrário.

 Encarou rapidamente o brilho azul dos olhos de Mello e retribuiu o aperto, começando os dois a vencer degrau após degrau abaixo. Sentiam na mão um do outro, a certeza de que podiam ir, sem cair ou fazer qualquer barulho.

 Quando finalmente alcançaram o patamar inferior, seguraram suas respirações instintivamente ao ouvir o inconfundível som de passos se arrastando por ali. Não estava longe.

 Mello tentou perceber de que direção o som vinha, enquanto que Matt olhava ao redor tentando ver qualquer indício da outra presença. Nada.

 Os passos estavam cada vez mais próximos, mas aquela parte da casa não era banhada por quase nenhuma luz e os dois continuaram apenas podendo ouvir. Aproximaram-se mais um do outro, e apertavam tanto as mãos que qualquer um que os visse diria que estavam, acima de tudo, com medo de serem afastados. Não estaria de todo errado. Juntos, podiam até conseguir se controlar o suficiente para pensar em algo caso alguma coisa acontecesse. Separados, a confiança e o controle cairiam pela metade, se não menos.

 Um som seco, de algo batendo na parede. Mais passos.

 Até que cessou.

 Silêncio absoluto.

 - Bu.

 Uma voz soou extremamente próxima deles, praticamente ao lado de Mello, e apesar de não ter passado de um sussurro, quase como um sopro, teve o mesmo efeito caso tivesse sido um grito.

 Era possível ouvir claramente o batimento acelerado e descompassado do coração dos garotos, e o pulo que ambos deram pelo susto devia ter feito meia camada de poeira acumulada se erguer do chão. Teriam gritado algo se conseguissem encontrar espaço na garganta para a voz sair. Automaticamente Mello tinha movido o corpo para ficar ligeiramente na frente do de Matt, como que o cobrindo.

 Os olhos verdes e azuis viraram na direção da voz, arregalados e brilhantes, como quatro grandes luas, e muito dificilmente conseguiram distinguir uma silhueta ali. Alta. Desleixada. Encurvada.