Memória escrita por Guardian


Capítulo 23
Intervenção




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Instintivamente os dois deram um passo para trás em um movimento conjunto, quase sincronizado; Matt puxou Mello para mais longe do estranho, e Mello empurrou Matt mais para trás de seu próprio corpo. Nenhum deles arriscaria qualquer outro movimento no momento, entretanto...

Em um lapso muito rápido, como uma ideia que surge e desaparece com igual rapidez, Mello achou que conhecia aquela sombra, que sabia a quem ela pertencia. Descartou a possibilidade afinal, não tinha como ser possível, tinha? , mas a voz que novamente se fez ouvir em meio ao escuro soou tão familiar que foi impossível convencer a si mesmo de que estava enganado, antes mesmo de ouvir seu nome sendo dito.

- Uma lanterna seria muito bem-vinda agora, Mello.

Matt franziu o cenho, estranhando que aquela figura ainda escondida soubesse o nome de Mello, e continuou encarando aquele ponto com desconfiança. Já o loiro quase riu de alívio. Se no momento não sentisse a menor inclinação de se soltar e afastar do ruivo, sua primeira reação teria sido correr e abraçar aquele a quem tanto admirava, e que quase o matara de susto há apenas alguns segundos; então acabou decidindo por um meio termo entre uma risada e um suspiro de alegria, e por responder ao cumprimento.

- Aparecer como uma pessoa normal também.

E se Matt ficou surpreso com o imediato relaxamento na postura do loiro, essa surpresa aumentou ainda mais quando a silhueta enfim se revelou. A claridade repentina da tela de um aparelho celular ou ao menos era o que parecia proporcionou a primeira visão que teve do homem. E em meio ao seu momento de confusão, enquanto tentava reconhece-lo de outros tempos, resgatar uma situação, um nome, uma palavra, qualquer coisa, Mello se aproximou mais e sussurrou em seu ouvido: "É o L! Esse é L!". Matt teve certeza de que arregalou os olhos nessa hora.

Sem dizer nenhuma palavra, o homem e a luz se afastaram, provavelmente indo na direção de algum cômodo onde o aparelho não fosse necessário. E como se tivesse havido uma ordem para isso, Mello logo seguiu atrás puxando Matt junto. Acertara. No que parecia ter sido uma cozinha funcional há muito tempo, os raios lunares invadiam e tomavam boa parte do lugar pela grande janela rachada que ali havia.

E como mal alcançaram o cômodo Mello iniciou uma cadeia animada de comentários e perguntas ao mais velho entre eles um agradecimento por certa caixa de bombons , Matt aproveitou o momento para fazer uma análise decente daquela pessoa. Ouvira tanto o loiro falar sobre o famoso detetive L, que a realidade que via agora à sua frente não combinava em nada com a imagem que havia criado em sua mente.

Era mais do que visível a admiração brilhando nos orbes azuis do loiro, mas pouca coisa podia ser lida naqueles olhos escuros. Matt não conseguia, pelo menos. Sinceramente, sua primeira impressão, desde o momento que pusera os olhos nele, foi: estranho. O modo como portava o corpo, a aparência desleixada (em especial aquelas olheiras que pareciam talhadas na pele pálida demais), e até o timbre de sua voz. E mesmo assim, a desconfiança e insegurança que esperava continuar sentindo de quando ele era uma incógnita, sumiram. Era como se apesar da impressão que passava, aquela figura não lhe era exatamente... Estranha.

Talvez tivesse se sentido observado, ou estivesse desde o princípio disfarçadamente focando parte da atenção no garoto, mas não demorou para Ryuzaki virar o rosto e manter total foco no ruivo logo ao lado. E ser fixado por aquelas duas grandes esferas negras não estava no topo da lista de situações mais agradáveis de Matt.

- Eu não vou dizer nada a Roger sobre isso, mas acho que já é hora de voltar.

- Não vai nos entregar? - o ruivo indagou surpreso.

- Por que eu faria isso? - e como se subitamente lembrasse de algo de extrema importância, voltou rápido o rosto para o loiro - Mello, sobrou algum chocolate?

Não sabia com o que mostrar mais estupefação. Se pelo fato do detetive não dar a mínima em mudar bruscamente de tópico, ou por Mello ter conseguido esconder mais duas barras de chocolate, além das que já tinham comido, na roupa. A pergunta que mais forte ecoou pela cabeça de Matt foi: onde??

~*~

Tinham conseguido voltar fácil e rápido para o orfanato, e o melhor de tudo: ao que tudo indicava ninguém tinha notado que saíram.

Ryuzaki cumpriu o que disse e todos continuaram sem saber. Na verdade, chegou a ser uma cena engraçada a que ocorreu no dia seguinte. Roger chamou os dois garotos para a sala dele, e chegando lá eles tiveram que fingir-se surpresos em encontrar o detetive. Mello representou admiravelmente a animação de um reencontro há muito esperado e a expressão que Matt fazia ao tentar esconder qualquer vestígio de graça foi oportunamente interpretada por Roger como apreensão frente a alguém que deveria se lembrar de conhecer.

Mas o cumprimento a um senhor que lhe apresentaram ali o nome era Watari, se não se enganava foi verdadeiro. Gostara dele.

Agora, o ruivo estava deitado com algum jogo aleatório em frente, mais para ter algo ocupando as mãos e não ficar simplesmente encarando o teto do que para se distrair de fato, devaneando sobre a noite anterior. No início, mais sobre o que não se lembrava do tal motivo que Mello mencionara, passando depressa depois para L, e de tal modo que não conseguiu precisar a linha de conexão entre um pensamento e outro, o que passou a ocupar sua mente então foi o antes do encontro com o detetive.

Voltava a visualizar a expressão assustada de Mello, os olhos daquele azul tão brilhante, a mão ligeiramente trêmula apoiada em seu ombro, e algo se mexeu em seu peito. Já tinha sentido aquilo antes, mas não tão forte quanto agora. E também, não com aquela nota de nostalgia quase urgente pulsando como um ser vivo dentro de si.

E estava tão envolvido em tentar desvendar o que aquilo significava que acabou deixando o portátil cair ruidosamente no chão ao ouvir batidas claras e ritmadas na porta.

Levou alguns instantes para abrir a porta e deixar L entrar.

- Assustei você? - o homem indagou olhando de relance para o aparelho no chão e para a pele clara do garoto, para logo em seguida fixar o olhar nos do garoto.

Dos três, Matt sempre havia sido o mais difícil e ao mesmo tempo o mais fácil de ler. Fácil, porque o que basicamente compunha seu jeito de ser era apoiado em pontos em comum e relativamente fáceis de se perceber, para um bom observador. E difícil, porque era nessa aparente simplicidade que muito era escondido, e tão bem, que às vezes era como se esse muito simplesmente não existisse. Mais do que a habilidade em computação e em conseguir estabilizar (de alguma forma) o temperamento de Mello, o que Ryuzaki achava realmente fascinante no ruivo era como ele conseguia ostentar uma máscara que sequer parecia ser uma máscara.

- Não - o garoto respondeu rápido, sem conseguir evitar de desviar o olhar. Não importava que mesmo inconscientemente já confiasse no homem, aquele olhar preso no dele ainda era inquietante.

Ryuzaki não demorou muito mais encarando-o, porém. Quando o ruivo se deu conta, o mais velho estava abrindo gavetas da mesa de Mello e retirando pequenas barras de chocolate com as pontas dos dedos, de um jeito bem engraçado. Não admirava que Mello e Near tivessem características... Peculiares daquele jeito. Olhe só em quem eles se espelhavam!

O garoto não sabia o que falar, ou mesmo se devia dizer algo, e apesar de aparentemente o mais velho ter tido um motivo para ir até ali (sem ser o de assaltar o estoque de Mello) agora parecia completamente esquecido dele. Ou só gostava de manter aquele silêncio forçado mesmo.

- Eu não vou perguntar do que você já se lembrou, se é isso o que o incomoda - falou finalmente, e para alívio do ruivo, ainda com o olhar totalmente centrado em uma embalagem particularmente teimosa.

Queria dizer que não se incomodava, pelo menos não se fosse ele perguntando, mas tudo o que saiu foi um grunhido de concordância.

- Mas... - Ryuzaki continuou - Há algo que eu quero saber.

- O quê?

E nessa hora os olhos negros se voltaram para ele, brilhantes e indecifráveis Como está sendo a convivência de vocês? Você e Mello, quero dizer.

Matt ergueu uma sobrancelha, sem entender o sentido daquela pergunta. O que ele queria dizer com isso? Queria saber se ele não sentia mais como se o loiro fosse um desconhecido? Ou se o clima entre eles parecia natural, como se nunca houvesse sido rompido? Sem querer acabou lembrando uma vez mais da expressão assustada do loiro, e a sensação em seu peito voltou.

- Como... Como assim?

- Você não sente nada estranho?

Essa pergunta pegou Matt de surpresa, e a expressão que não conseguiu esconder a tempo foi rapidamente percebida pelo detetive.
- Sente, não sente?

- Eu... - encarou mais profundamente aqueles dois globos tão penetrantes, e uma vozinha no fundo de sua mente começou a cutuca-lo: "Por que não?". É mesmo... Por que não? Podia confiar nele, não podia? E também, já estava cansado de tentar entender tudo aquilo sozinho - Eu não sei o que é.

Ryuzaki deixou transparecer na hora o interesse incentivado por aquela pequena prova de confiança.

- Não tem nenhuma ideia? - e ao que o ruivo negou com a cabeça, tentou encontrar o melhor jeito de conduzir aquilo - Você pode não saber exatamente o que é, mas sente que é algo importante, certo?

Um aceno afirmativo.

- E mais ou menos o que ou quem esse estranho envolve?

- S-Sim.

- Matt, você sabe por que você é o número 3?

- Por que eu não sou tão inteligente quanto Mello e Near - respondeu sem entender, nem o sentido da pergunta, nem o por que dela ser relevante naquele momento.

- Acha mesmo isso?

O ruivo pensou um pouco, na verdade sem saber por que se dava ao trabalho disso. Quer dizer, parecia óbvio, não? Os dois primeiros eram os mais inteligentes e por isso que eles eram os primeiros! Logo, sobrava o terceiro lugar para ele. Por que haveria qualquer outro motivo para tal disposição?

- O terceiro lugar é seu, porque você nunca desejou ser meu sucessor - Ryuzaki disse com toda a simplicidade.

- Não? - perguntou surpreso.

- Não. Porque para você, tinha pelo menos uma coisa que era mais importante do que virar o novo L.

Isso era estranho... Algo mais importante?

...

Verdade...

Se lutasse pelo primeiro lugar, consciente ou não, Mello me olharia de forma diferente. Por que competiria com ele? Por que, se a única coisa que transformava esse lugar em um verdadeiro refúgio, era a chance poder ficar ao lado dele?

Tal certeza o acertou em cheio, e tão fortemente, que chegou a se sentir tonto por alguns instantes.

Era isso mesmo... Nunca desejou "estar do outro lado", ser visto como um obstáculo pelo loiro. Como poderia? O que sentia em seu peito... Era como se ele...

Uma pontada forte e inesperada próxima à sua têmpora esquerda o trouxe bruscamente de volta para o "exterior". Não pôde evitar uma careta, nem de encurvar ligeiramente o corpo para frente. Droga, já estava se acostumando a não sentir mais aquilo...

Ryuzaki imediatamente saltou da cama e foi até o garoto, preocupado com a repentina feição de dor que ele mostrava. Mello dissera que as dores de cabeça eram comuns, mas que aparentemente vinham diminuindo em frequência e intensidade ultimamente. Então...

- Onde estão seus comprimidos? - perguntou sério enquanto conduzia o ruivo até a cama, onde esse permaneceu sentado, com as palmas das mãos escondendo o rosto.

- Não... Eu não quero - disse baixo, tentando não focar muito no latejamento forte e insistente - ... Isso - colocou uma das mãos sobre o peito - Eu quero me lembrar...

Ryuzaki encarou surpreso o mais novo, e após alguns segundos em completo silêncio, ergueu-se outra vez e foi em direção à porta.

- Descanse um pouco, e daqui uma hora me encontre na sala de entretenimento.

Na verdade não queria deixar o garoto sozinho daquela forma, mas... Estava na hora de uma pequena intervenção.

~*~

Os três primeiros da Wammys eram conhecidos por todos que passavam pelo orfanato, por menor que fosse sua permanência ali, aquelas três figuras não eram um conjunto a ser esquecido tão cedo. E por isso, qualquer um que passasse em frente à sala de jogos na tarde daquele dia duvidaria de seus olhos ao ver o loiro sempre tão agitado, sentado em silêncio sem ninguém à sua volta. Olhava pela janela e brincava com a embalagem amassada de um bombom entre os dedos, completamente alheio a tudo o mais.

- Ah, Mello. Estive procurando por você - Mello foi surpreendido pela voz inesperada e próxima demais, e acabou rasgando sem querer o papel laminado que torcia. Virou o rosto e teve outro sobressalto ao perceber quão próximo os negros olhos de Ryuzaki estavam.

- L... R-Ryuzaki! - afastou-se do mais velho com o susto, encostando o corpo no vidro gelado e observando-o se posicionar em sua postura peculiar de sentar na sua frente.

- Precisamos conversar.

~*~

"Mello, o diretor o está chamando".

E finalmente, voltamos ao ponto inicial desta narrativa...


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Notas finais do capítulo

Estou uma semana atrasada, mas espero que tenham gostado do capítulo *------* (que é o penúltimo, aliás).
Até o desfecho o/