Memória escrita por Guardian


Capítulo 21
Pouco a pouco




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 - Mello?

 Matt ficou longos instantes encarando aquela figura subitamente desconhecida para ele, mas o loiro não voltou a olhá-lo, ou mesmo a erguer o rosto. E de algo o ruivo tinha certeza, sem precisar de nenhuma outra confirmação além da que sentia em seu íntimo: era a primeira vez que se deparava com uma cena como aquela. A visão do loiro daquela forma, com aquela expressão que simplesmente não combinava com ele, e com a voz baixa e quase distante, não era inédita para o “ele de agora” apenas.

 Encarar aquela imagem, a máscara de força e todas as outras que conhecia, se desintegrando e revelando pela primeira vez a face que o loiro sempre mantivera apenas para si mesmo, criava um aperto em seu peito diverso de qualquer outro que já se lembrava, e que não lembrava, de ter sentido.

 Então, antes mesmo que seu cérebro enviasse a ordem de maneira consciente, sem pensar em motivos ou significados, seus braços já envolviam o corpo frio e o trazia para mais próximo de si. A princípio, sentiu o outro enrijecer com o ato inesperado, mas não demorou a ouvir um suspiro pesado vir dele ao mesmo tempo em que  o corpo relaxava de forma quase mínima, mas significativa. Ele parecia tenso, quase cauteloso, de uma forma que apenas fez o aperto no peito de Matt se intensificar um pouco mais.

 Mello sentiu o ruivo o envolver como um choque percorrendo seu corpo, e não soube como reagir. Não tinha a menor ideia, isso sim. Era um costume de Matt, sempre fora, surpreende-lo com atitudes como esta, fosse para provoca-lo, fosse para demonstrar algo que ele não sabia colocar em palavras, mesmo que sequer precisava delas para fazer o loiro entender. Nunca achou aquilo estranho, e talvez dois simples motivos fossem os responsáveis por isso.

 Primeiro, porque a amizade deles era algo onde um simples gesto como esse bastava para passar a mensagem de conforto e segurança de ter alguém ao seu lado, mais do que as palavras talvez jamais conseguiriam. Se um percebesse que o outro estava enfrentando algo, e mesmo se não quisesse compartilhar o que quer que fosse, dava um jeito de fazer algo para lembrar que estava ali se precisasse. Brigas já foram interrompidas e tréguas feitas nesses períodos, e as estratégias eram muitas; uma brincadeira propositalmente fora de hora, um golpe nitidamente falso (quem será que adorava essa?), enfim. E quando a situação parecia ser de um nível mais alto, o mais antigo e eficiente gesto de solidariedade era posto em prática. E para falar a verdade, Mello não se lembrava de jamais ter precisado fazer isso pelo ruivo. Pelo menos não até...

 E segundo, porque isso era algo que Matt fazia apenas com Mello. Certo que no orfanato não havia ninguém mais que fosse assim próximo ao ruivo, mas mesmo sabendo que era algo óbvio, Mello sempre se sentira muito bem quando o ruivo fazia isso, por ser único. Nunca associou esse sentimento a algo mais do que a alegria e alívio que só quem sabe que tem alguém ali ao seu lado, independente do que for, conhece. Talvez devesse ter associado, assim quem sabe...

 Bem, talvez fosse um pouco mais do que só "simples". 

 Certamente ninguém que os conhecesse – ou achasse que os conhecesse – pensaria que a amizade deles chegasse a esse nível, que eles realmente se importassem tanto assim um com o outro, a ponto de certas atitudes e pensamentos serem nada mais do que naturais. Se eles fossem apenas garotos comuns, com suas famílias e somente o sabor da infância preenchendo suas visões, e que por um acaso começassem a conviver, será que teriam isso? Ou será que isso só se tornou possível graças a toda bagagem que eles já carregavam quando se conheceram?

 Não importa.

 O fato no momento, era que Mello não havia se dado conta do quanto tinha sentido falta desse simples gesto, até sentir aqueles mesmos braços ao seu redor, até ser envolvido uma vez mais por aquela certeza. Fazia tempo, um bom tempo, desde a última vez que algo como aquilo havia sido precisado, pelo menos pelo loiro. E com essas últimas semanas, com tudo o que vinha acontecendo, aquele sentimento que era despertado nele nessas horas, havia acabado se tornando algo um tanto... Abstrato. Como algo que se sabe que existe, que se lembra do sabor que tem, mas que passa a parecer tão distante, que você começa a considerar já totalmente fora de seu alcance.

 Mas agora, pela primeira vez Mello não sentiu a pontada de constrangimento que sempre acabava acompanhando o bem-estar, por perceber o quanto precisava daquilo. E isso porque tudo no que conseguia pensar ali era que... Matt estava voltando.

 Aquela era uma pequena parte do Matt que sempre conheceu, despertando e retornando enfim.

 Nenhum dos dois teve muita certeza de quanto tempo ficaram mergulhados naquela atmosfera indefinida – uma mistura de nostalgia, conforto, e algo fora de compreensão –, assim como nenhum deles queria despertar dela.

 Tanto que só o fizeram no instante que um pequeno roedor passou em grande velocidade próximo a onde eles estavam, só para depois se afastar em uma velocidade ainda maior de volta para o buraco de onde saíra. Talvez tenha sentido o cheiro de alimento – o chocolate de Mello ainda estava caído no chão, totalmente esquecido –, e só ao se aproximar dera-se conta de que o doce não era a única presença diferente naquele canto.

 E a grande questão acabava de se tornar: E agora?

 Por um lado, Matt não queria deixar transparecer o que a súbita mudança no loiro havia despertado nele, e principalmente, a mistura levemente eufórica que a proximidade com ele estava lhe causando. Não entendia qual era a raiz de tudo aquilo, mas estranhamente sentia que... Precisava esconder. Era como se isso, ocultar, fosse um antigo conhecido seu, uma constante em sua antiga rotina provocada por um motivo, agora desconhecido, mas importante. E que como quase tudo o mais em suas descobertas e dúvidas, tinha a ver com Mello.

 E por outro, Mello tentava a todo custo sufocar a súbita vontade de virar mais o corpo para sentir melhor o calor do ruivo, buscar um melhor ângulo para sentir mais plenamente seu aroma, saciar a vontade de mergulhar naquele verde que conhecia tão bem. Foi preciso todo seu autocontrole e racionalidade para lembrar a si mesmo dos motivos de não poder fazer isso.

 E o loiro podia não ter se dado conta, mas Matt tinha conseguido. O frio das lembranças não estava mais ali, agora tudo o que o preenchia era aquela sensação quente e a presença do ruivo. Nada mais.

~*~

 Mello havia revelado uma segunda barra de chocolate escondida – Matt achava que talvez fosse melhor não tentar descobrir como o loiro conseguia esconder todas elas em roupas que aparentemente sequer possuíam bolsos – e agora os dois estavam novamente sentados lado a lado em cima da coberta, comendo. E em um ambiente bem diverso do anterior.

 - Vai falar agora? – Matt perguntou finalmente, após engolir mais um grande pedaço do doce.

 - Falar o quê? – Mello disse distraído, ocupado em terminar de rasgar o que ainda restava da embalagem e tira-la de vez do caminho.

 - O que significa isso de “esconderijo” – e com uma ideia repentina relampejando em sua mente, completou – Nós o quê, criamos uma seita aqui?

 A embalagem foi rasgada com mais violência do que deveria ter sido quando o loiro conseguiu processar aquelas palavras.

 - Não, isso foi na estação de trem abandonada – disse com a voz controlada, tentando muito soar como se estivesse dizendo algo realmente sério.

 E Matt achou-se ridículo por ter se questionado por um segundo inteiro, quais as chances de tal afirmação ser verdadeira.

 - Hm... Laboratório secreto? – continuou jogando. Aquilo de usar a primeira ideia que lhe vinha à mente até que era interessante.

 - Temos bastante material vivo, mas não – respondeu indicando com um olhar divertido as sombras que eram o esconderijo do roedor de mais cedo.

 Matt podia realmente não fazer ideia do significado daquele lugar, ou mesmo se havia um significado a se saber, mas a atmosfera agora estava tão descontraída, leve, que estava procurando possibilidades absurdas de propósito. Ele também não tinha se dado conta de que o peso que o vinha atormentando e tanto tentara ignorar nos últimos dias, não estava mais lá.

 - Ponto de tráfico?

 - Só se for de chocolate.

 - Já sei! Nós matamos alguém, nos livramos do corpo nesse lugar e agora voltamos no mesmo dia todo mês, sem falta, para lamentarmos e nos sentirmos culpados.

 Essa foi demais para Mello aguentar. Ele teve que rir, e riu tanto que não notou o pequeno sorriso vitorioso que surgiu no rosto do ruivo.

 - Pelo jeito não é isso também – falou, disfarçando a satisfação que sentia ao poder ouvir aquele som que tanto gostava – Tá legal, eu desisto.

 - Não é nada assim tão grande ou complicado – o loiro disse ainda ligeiramente sem ar, tentando a todo custo evitar outro ataque. Mas Matt não estava ajudando.

 - Não? Nada de trabalho de espiões ou fugas da máfia? – o ruivo não resistiu a um falso ar de decepção, como se tivesse sofrido a desilusão da sua vida.

 Certamente não estava.

 Desta vez Mello caiu de costas no chão, e pela segunda vez naquela noite o que restava de seu chocolate foi ao chão. Não que ele tivesse percebido.

 - Desculpe – falou ainda entre risadas precariamente contidas –, mas o serviço secreto da Inglaterra disse que já estava superfaturada de menores de idade e nos dispensou.

 - Começamos bem então – Matt fingiu frustração em um bufar que saiu mais parecendo um riso abafado do que qualquer outra coisa – Desempregados já nessa idade! Não quero nem ver como vai ser no futuro.

 Por um momento a sonora gargalhada que estava prestes a deixar Mello foi ameaçada por uma pontada incômoda e totalmente fora de hora. Ele estava experimentando algo que experimentou por boa parte de sua vida, e essa constatação lhe causava um sentimento estranho. Falar coisas absurdas, ter ao seu lado um Matt com todas suas brincadeiras e teatros, ainda mais naquele lugar que era tão conhecido seu, que uma faísca de tristeza e incerteza conseguia penetrar em sua bolha de alegria.

“Matt está voltando...” repetiu para si mesmo, sentindo pela primeira vez os dois gumes de tal ideia. Era ótimo, simplesmente maravilhoso que aos poucos os pontos da personalidade do ruivo estivessem voltando para onde pertenciam, mas... Quando chegaria a hora que ele voltaria por completo? E quando chegasse, ele poderia fazer algo quanto a...

 ...

 Tudo isso passou em sua mente por um único momento, até ele resolver deixar de lado e soltar enfim a gostosa risada que já estava formada em sua garganta. Não precisava pensar nisso. Não agora. Não ali.

~*~

 - Como assim, Mello? – o garoto disse com uma vozinha apreensiva – Não podemos ir...

 - E por que não? – a outra voz rebateu, olhando para os lados desconfiado antes de voltar a prosseguir pelo estreito caminho puxando o ruivo com ele.

 - Mas Roger...

 - Você acha justo o que ele fez? Ele não devia ter brigado com a gente, não fizemos nada errado! – o pequeno Mello encarou os olhos verdes do seu mais novo amigo de forma bastante séria, quase desafiadora – Se estiver com medo dele pode voltar então. Eu vou sozinho.

 E com essa leve “ameaça” praticamente todo o temor foi deixado de lado pelo pequeno Matt (ou o melhor seria dizer “engolido”?). Não queria que Mello pensasse que ele era um covarde.

 Então ao invés de virar as costas e voltar para a segurança de seu quarto, onde não havia chances dele levar uma nova bronca e ganhar de brinde mais um castigo, ele apressou seus passos e passou à frente do loiro, virando-se com uma expressão de dúvida logo depois.

 - Mas... Como nós vamos achar ele?


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Notas finais do capítulo

Não era pro capítulo acabar aí, eu ia desenvolver toda parte da casa de uma vez, mas... Minha pasta, onde tava o resto das folhas escritas, simplesmente sumiu ._. Acho que alguém acabou pegando por engano no cursinho, mas eu fui lá hoje e não tinha nada nos "Achados e Perdidos". Vou ver se encontro na segunda.
Enfim. Isso me irritou demais, e como não queria atrasar mais uma semana, termino essa parte no próximo.

Ps: me diverti pensando nas advinhações do Matt xD