Memória escrita por Guardian


Capítulo 20
Já chega...




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 Os dias têm sido estranhos.

 Matt tem estado estranho.

 E Mello não fazia ideia do porquê.

 Desde o dia em que o loiro entrou no quarto e encontrou o ruivo deitado na cama completamente concentrado em um game, com os olhos quase vidrados na tela, uma cena com a qual ele não se deparava há um bom tempo, ele sabia que algo estava diferente. E talvez não de um jeito bom.

 Preferiu não comentar nada, já que obviamente Matt não estava a fim de conversar sobre o quer que fosse, mas isso não queria dizer que estava encarando aquele súbito silêncio com bons olhos. Parecia que tinha voltado aos primeiros dias de convivência, onde tudo o que o ruivo enxergava era aqueles malditos jogos, e onde tudo o mais parecia ser apenas um incômodo detalhe que não demoraria a desaparecer com o tempo caso ele ignorasse.

 O que teria acontecido para isso? Era a pergunta que Mello fazia a si mesmo. Matt parecia se lembrar do “aviso” do loiro no dia que voltou ao orfanato, porque não passou nenhuma madrugada grudado naquela tela; mas tampouco parecia usar esse tempo para descansar.

 Antes de Mello falar sobre o “jogo de nomes” que os dois mantinham há anos, Matt também andava diferente, estranhamente distante, mas não chegava nem perto de como estava agindo agora. Antes, parecia que ele simplesmente estava ignorando as coisas ao seu redor por estar ocupado demais pensando em algo; mas agora, era como se ele tivesse se fechado até para si mesmo, e estivesse usando os jogos para calar absolutamente todas as vozes que o tentassem atingir. E apesar do loiro sentir que seria preciso bem mais do que uma brincadeira de “relembrar os bons dias” para tirar o ruivo desse estado, ele não tinha ideia do que então deveria fazer. E todo o silêncio dos últimos dias, e tudo o mais que ele englobava, despertava “algo” nele.

 Então, por mais que não gostasse nem tivesse o costume, esperou. Pelo menos até o jantar daquela noite.

 Tinha virado um costume os dois fazerem pelo menos uma refeição por dia no quarto; em parte para escapar dos colegas mais “sociáveis” que costumavam procura-los nessas horas, e em parte porque lá podiam ficar jogando ou assistindo filmes enquanto comiam. Mas durante esse jantar em particular, Matt jogava e Mello olhava feio para o lado oposto. Nenhum dos dois deu mais do que duas garfadas no picadinho de carne antes de deixar as bandejas totalmente esquecidas de lado.

 Matt apertava os botões do portátil de maneira frenética, completamente alheio à carranca cada vez mais acentuada do loiro, e só se deu conta de que não era o único sem fome naquele quarto quando Mello soltou um sonoro “Já chega!” e arrancou o jogo das mãos dele, jogando-o longe. Tinha aguentado a máximo que podia, mas aquela maldita musiquinha do Mario estava testando seus limites já!

 - Mello, o que você... – Matt começou a indagar ao ver o outro abrir a porta do guarda-roupa e começar a vasculhar lá dentro.

 - Veste isso – Mello mandou, jogando um casaco qualquer para o ruivo e pegando um para si mesmo. Matt não queria falar sobre seja o que fosse? Ótimo. Mas daquele jeito ele não ficava mais.

 - Pra que... – mas novamente foi interrompido, desta vez pelo loiro puxando-o pelo braço bom, e que ainda segurava o agasalho, rumo à porta.

 - Nós vamos sair – Mello falou simplesmente, tomando o cuidado de olhar para os lados no corredor para ter certeza de que não havia ninguém. Muito bem, todos ainda deviam estar ou nos próprios quartos ou no salão jantando – E fique em silêncio.

 Matt estava confuso de onde tinha surgido aquela atitude súbita, e não pôde fazer muita coisa além de deixar-se conduzir pelo outro em silêncio, sem ideia de para onde estavam indo, como Mello planejava sair do orfanato durante a noite, e principalmente, do por que ele parecia tão irritado. Era a primeira vez que Matt o via daquele jeito consigo, e a constatação não deixava de ser... Curiosa.

 Parte dele se sentia mal em se ver como o alvo de tal humor, afinal, Mello era sua mais forte ligação... Com tudo. Desde que conseguira se lembrar... Daquilo, ele procurou desviar seus pensamentos daquelas cenas, nem que fosse por alguns poucos instantes, refletindo sobre o modo como, mesmo inconsciente, o loiro o fazia encontrar os mais inesperados pontos de apoio para suportar a situação. Na verdade, ele próprio era seu principal ponto de apoio. Apenas se perguntava se isso era algo de agora, ou se sempre fora assim.

 E a outra parte, se sentia invadida por um sentimento de enorme nostalgia, como se a irritação do loiro fosse uma constante imutável em seu antigo dia-a-dia, e mais do que não se importar, gostasse de tal detalhe. E como quase tudo o que sentia e pensava que envolvia o outro, não deixava de ser estranho.

 Talvez fosse melhor parar de tentar entender.

 Após Mello fazê-los ir até a lavanderia, onde havia a porta dos fundos que dava diretamente para o lado de fora dos muros do lugar, ele sentiu-se engolfar pelo ar agradavelmente frio do início da noite. “Eles só abrem essa porta de sexta à noite, pra carregar o lixo da semana pra fora. Mas quase ninguém sabe disso, então é perfeito”, o loiro havia dito uma vez. E pelo jeito Matt estava prestes a descobrir o quão “perfeito” isso era mesmo.

 Bom, aparentemente o suficiente, porque logo ambos estavam descendo a rua de trás do casarão sem nenhum sinal de que tinham sido vistos. Matt não pôde deixar de imaginar em quantas eram as maneiras que eles tinham descoberto no decorrer dos anos, para dar suas escapadas ocasionais do orfanato. E quantas foram as vezes que foram pegos fazendo isso.

 Sem dizer uma única palavra durante todo o caminho, Mello o arrastou por grande número de ruas, cada uma mais escura e improvável do que a outra, e apesar de Matt já ter perdido a sequência na terceira “direita”, o loiro parecia saber exatamente para onde estava indo, quase como se já tivesse feito tal caminho tantas vezes, que sequer precisava prestar atenção para que suas pernas o levassem já de forma automática por ele.

 O loiro ainda deixava claro pelas linhas de seu rosto, que continuava irritado. E mesmo Matt ainda não entendendo qual seria o motivo, ele no fundo não se importava. Na verdade, mais do que para o fato de ter sido tirado de seu quarto e ser arrastado por ruas que desconhecia no meio da noite, mais do que para a curiosidade de para onde estava sendo levado, ou mesmo para tudo o que mantivera sua mente afastada nos últimos dias, sua atenção estava voltada para algo que deveria ser completamente irrelevante.

 Sua atenção parecia estar sendo capturada pelo calor que envolvia seu pulso. Pela forma como os dedos pálidos fechavam-se ali. E acima de tudo, pela sensação que aquilo lhe passava. Lembrou-se de uma cena que vislumbrara nos cantos de sua memória, onde aquele mesmo loiro lhe estendia a mão para levantar, ironicamente ou não, também em um momento de fuga. Lembrou-se de como a impressão do calor em sua pele fora o suficiente para esvaziar seu peito das angústias anteriores, e novamente teve a forte sensação de que, mais importante de qualquer outra coisa, havia algo em específico que precisava se lembrar. Algo que indiscutivelmente envolvia Mello.

 - Chegamos.

 A voz de Mello o fez voltar a prestar atenção ao seu redor, e perceber que o labirinto de ruas os havia conduzido para um lugar que certamente ninguém se importava em cuidar há muitos e muitos anos. Ficou olhando intrigado para a enorme casa semidemolida, cercada de uma grama alta demais, com a pintura descascada pelo tempo e umidade deixando alguns tijolos à mostra, e o portão de entrada torto e quase se soltando das dobradiças enferrujadas, até que sentiu Mello o cutucar em sinal para acompanha-lo. Cada vez mais curioso, o ruivo o seguiu até o interior da casa passando pela enorme porta de madeira que, surpreendentemente, era o item melhor conservado de toda a visão exterior do lugar.

 - Que lugar é este? – não conseguiu evitar perguntar.

 - Uma casa abandonada.

 ...

 “Nãão, sério mesmo? Nunca deduziria isso sozinho!” pensou contrariado.

 Matt seguia Mello pelos cômodos e olhava cada canto com atenção e curiosidade, com uma impressão de crescente familiaridade a cada novo detalhe percebido, como se mesmo sem qualquer cena formar-se em sua mente, reconhecesse aquele local apenas pelo fato de sentir-se lá dentro. Até o leve cheiro de mofo no ar dava uma sensação de dejá-vu. E quando o loiro e ele entraram em uma sala espaçosa, onde havia uma lareira provavelmente quebrada e parte do teto estava faltando, tal sensação tornou-se quase palpável de tão forte.

 Mello afastou-se para ir até o único móvel que permanecia no cômodo, um velho e grande armário de madeira, de onde tirou algo escuro e volumoso. Não, reparando melhor, devia ter se enganado. Pelas marcas no chão, provas de que durante muito tempo houve algo de tamanho, formato e peso semelhantes aos de uma cama posicionada próxima à parede dos fundos, mostravam que ao invés de uma sala, ali um dia tinha sido um quarto.

 - Mello, que lugar é esse? – repetiu a pergunta, esperando que o tom mais sério de agora fizesse o loiro dar uma resposta de verdade.

 Antes de responder, Mello estendeu o volume recém-pego, que se mostrou ser uma grossa e extensa coberta, e o estendeu no chão empoeirado próximo à lareira.

 - Já disse: uma casa abandonada – falou sem virar para o ruivo, ocupando-se em ajeitar as bordas emboladas do tecido – Nós sempre a usamos como esconderijo.

 - Esconderijo?

 Mas Mello não disse mais nada. Sentou-se em cima da coberta e fez sinal para Matt fazer o mesmo. Aquela situação também despertava uma sensação de familiaridade, quase como se ela própria fosse uma parte daquele quarto.

 O ruivo ainda esperou que o outro dissesse algo, um motivo para estarem ali, a explicação do que “esconderijo” queria dizer nesse caso, um comentário qualquer que o fizesse entender um pouco mais a situação. Mas não. Mello tirou uma grande barra de chocolate do bolso do casaco – olhando ninguém jamais adivinharia que algo daquele tamanho caberia despercebido ali –, dividiu em dois e entregou uma das metades para Matt.

 E o garoto não teve outra escolha a não ser aceitar o doce e continuar ali sentado em silêncio, encarando a lareira vazia. Mello ainda estava irritado? Era difícil dizer pela expressão dele. Agora, ele como se ele tivesse vestido uma máscara indecifrável, intencionalmente ou não, concentrado nos próprios pensamentos. Ou talvez apenas tentando encontrar a melhor forma de dizer o que queria falar ao trazer o ruivo para aquele lugar. Parecia que tinha um significado maior por trás daquela construção velha e abandonada, afinal.

 Matt definitivamente não entendia o que ocorria com aquele loiro imprevisível.

 Então resolveu, como vinha fazendo desde que abriu os olhos naquele bendito hospital, tentar compreender.

 - Você ainda está irritado? – no segundo que as palavras deixaram sua boca considerou que a pergunta certa teria sido “Por que você está irritado?”, mas por algum motivo ele não conseguia verbaliza-la. Era como se no fundo, soubesse a resposta.

 Levou alguns instantes para Mello voltar finalmente a falar, tão baixo que no primeiro momento Matt achou ter imaginado.

 - Não precisa contar.

 - O quê?

 - Seja o que for que estiver te incomodando. Não precisa dizer nada se não quiser. Não é como se fôssemos garotas para contar tudo o que acontece um ao outro – e ele realmente parecia tão fora de seu comum, diferente até mesmo do modo que agia e falava quando estava sério, que nem sua expressão nem seu tom de voz se alteraram com a ligeira brincadeira. Era como se ela não devesse ter feito parte da sentença, e sim tivesse escorregado pelas palavras sem nem ao menos perceber – Mas me irrita que dentre todas as opções, você escolha justamente se esconder naqueles malditos jogos. Sempre odiei, e não é agora que isso vai mudar.

 Não ocorreu nenhum comentário específico ao ruivo, então ele simplesmente falou a primeira coisa que lhe veio à mente.

 - Não sabia que você tinha tanto rancor assim dos jogos.

 Um bem idiota, por sinal.

 Ele achou que Mello fosse abafar uma risada, ou voltar a mostrar sua carranca irritada, mas o loiro fez algo que Matt jamais imaginaria. Ele largou o que restava do seu chocolate, pouco mais de um terço da metade inicial, e abaixou o rosto quase o encostando nos joelhos dobrados.

 Aquele não era Mello.

 Aquele era Mihael.

 Era a criança deixada sozinha em casa, sem a mãe a reconhecer e aceitar, e sem o pai encontrar formas e forças para conversar e tentar fazê-lo entender. O silêncio jamais fora seu companheiro duradouro, mas dentro daquela casa, parecia ser o único que tinha, e todas as vezes que o vinha visitar, era a mesma... Nunca encontrou uma palavra que conseguisse definir o que aquilo despertava nele, mas não precisava de um nome para odiar. Odiar e temer.

 E por muito tempo, após conhecer Matt e passar a considera-lo como o amigo que era para si, todas as vezes que o ruivo estava com algum problema que não queria compartilhar e buscava refúgio nos inseparáveis jogos, sem pronunciar uma palavra sequer, Mello deixava o mau-humor formar sua máscara e isso bastava.

 Mas agora era diferente.

 Por que era diferente?

 Não sabia direito.

 Talvez fosse pela situação em si, mas apesar da impaciência de sempre ter ainda conseguido camuflar durante algum tempo, a sensação que achava já ter subjugado completamente voltou para visita-lo. Não queria senti-la. Não queria pôr à ruína todos os muros que construiu ao longo dos anos para isola-la. Não queria perder sua máscara.

 Mas estava difícil. Tão difícil...

 Talvez estivesse cansado... Cansado demais das circunstâncias, cansado demais de forçar o próprio esquecimento, cansado demais de pensar, apenas... Cansado.

 - Mello?


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Notas finais do capítulo

Reescrevi esse capítulo diversas vezes, com diferentes situações e direções. Ainda agora não sei se estou completamente satisfeita com ele. Mas ao menos está na linha que eu queria, mostrando o Mello finalmente cedendo ao ponto de não conseguir mais manter suas defesas erguidas, o que tinha que acontecer antes do final *----*
Maninha, mais uma vez obrigada pelos cenários, teria demorado bem mais se não fosse por você *O* (no próximo haverá uma explicação pra casa, não é nada random não Kkkk)
Até o próximo ~