Memória escrita por Guardian


Capítulo 19
Sinceridade? Talvez seja melhor não


Notas iniciais do capítulo

Lelele ~
Cumprindo minhas promessa, viram só? *-----*



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 - Eu quero que me diga a verdade, Matt.

 O garoto concordou com a cabeça, curioso com sobre o aquilo se tratava. Estava apenas procurando por algo interessante para ler na biblioteca e agora de alguma forma tinha vindo parar na sala do diretor, aparentemente prestes a ser “interrogado”; e sentado de frente para ele como estava, com os olhos escuros por detrás das lentes grossas dos óculos o encarando daquela forma, sentia como se tivesse feito algo errado e agora tivesse de confessar para receber sua repreensão.

 Pensou bem. Não tinha feito nada errado... Tinha? Talvez ele tivesse descoberto sobre a noite passada... Mas até onde sabia, fazer visitas noturnas à cozinha não era exatamente proibido. Quer dizer, ele e Mello só tinham ido tomar um bom chocolate quente e mais algumas besteiras enquanto todos dormiam, não tinha nada errado nisso, tinha?

 E mesmo se tivesse, Mello não vivia dizendo que Roger não tinha mais coragem de castiga-lo depois do que aconteceu?

O senhor cruzou os dedos em cima da mesa e seu rosto continha tal seriedade que por um momento Matt achou que talvez estivesse agora esquecendo fatos recentes também e realmente fosse culpado por algo. Mas a pergunta que veio a seguir surgiu de direção totalmente oposta:

 - Como você está passando com tudo?

 ...

 ... Como? Era... Só isso?

 Tentando manter em mente que o senhor continuava olhando-o com a mesma seriedade, procurou pensar em uma resposta para dar. Oras, não era essa a “sinceridade” que esperava que o diretor estivesse pedindo! Mas... É, ele realmente tinha o semblante preocupado. De alguma forma, ter aquele senhor preocupado com ele, até mesmo sentindo-se culpado, lhe dava uma sensação... Era difícil de descrever, mas era... Bom. Talvez fosse algo próximo a se ter a atenção de um pai.

 ...

 Pai?

 - Matt?

 - Q-quê?... Ah! Eu estou... Tudo ok, Roger – “Ah, claro, isso soou mesmo bem convincente”.

 O senhor soltou um suspiro cansado antes de ajeitar os óculos no rosto e falar com um leve tom de repreensão, quase mascarado pela paciência que parecia fazer questão de manter a cada minuto – Eu pedi a verdade, Matt.

 Internamente já concluíra quem aquela pessoa em suas lembranças confusas era, mas o significado por trás daquele sonho ainda...

 Estava prestes a obedecer e dizer qualquer coisa que o tranquilizasse, mas uma ideia súbita o acometeu.

 - Se... Se eu disser a verdade, o senhor também fará o mesmo, se eu fizer uma pergunta?

 - Que pergunta? – o diretor não conseguiu evitar mostrar certa surpresa com aquilo. Era uma promessa um tanto arriscada de se fazer.

 - Fará? – o garoto insistiu.

 Roger pensou por mais alguns instantes, mas acabou concordando. Apenas esperava não acabar se arrependendo...

 - Está bem, eu responderei o que você quiser. Mas primeiro é a sua vez.

 Matt pensou na melhor maneira de dizer, de modo que não o fizesse parecer fraco mas que ao mesmo tempo não o fizesse fugir da verdade. Não queria ter que mencionar as dores de cabeça, no entanto, queria parecer o mais sincero possível para depois ter o favor retribuído. Não duvidava que ouvisse um “Você não foi totalmente honesto comigo, então não vejo porque eu deva lhe dizer algo a mais”.

 Não, o melhor era fingir o bom menino que provavelmente nunca fora naquele orfanato. Queria... Tinha que confirmar sua teoria. Não tinha certeza se estava certo em seus pensamentos, mas era a única conclusão a qual conseguira chegar, baseada nos fragmentos que conseguira recuperar. Só queria confirmar.

 - Eu... Eu tenho me lembrado de algumas coisas. Fragmentos.

 - É mesmo? – aquela pequena parcela de informação pareceu já conseguir relaxar um pouco o semblante do senhor. Apenas um pouco.

 - Minha cabeça dói um pouco quando as memórias voltam, mas ultimamente tem diminuído – já essa conseguiu efeito contrário, então acrescentou depressa – E meu braço quase não incomoda mais também. E... Posso ainda não lembrar da maioria das pessoas daqui, mas elas não me são mais estranhas, tem sido bem mais fácil e... Agradável, viver nesse lugar.

 - Fico feliz por isso, mas... Essas dores de cabeça, os comprimidos não ajudam?

 - Um pouco, mas eu prefiro não toma-los – Matt admitiu – Me dão sono.

 Roger permaneceu em silêncio por extensos minutos, concentrado nos próprios pensamentos, todos eles voltados para o garoto sentado à sua frente. Lamentava muito as repercussões que seu castigo acabou tendo, e apesar de saber que não estava errado quando o impôs, não conseguia evitar de se culpar e arrepender. Aquela criança não merecia passar por uma situação como essa.  Nem o seu difícil número dois, reviver tais experiências dolorosas.

 Foi preciso que o ruivo chamasse a atenção dele para que se lembrasse de que agora, que o garoto havia sido tão obviamente sincero, devia-lhe qualquer resposta que pedisse, com a mesma sinceridade. Fez um gesto indicando que ele poderia falar.

 - Roger, eu quero saber... Como eu vim parar aqui? Meu pai... Como ele morreu?

 Essa era justamente a pergunta que Roger esperava que Matt não fizesse. E o garoto pôde perceber isso pela expressão do diretor às suas palavras, em uma mistura de apreensão e pesar. E havia algo nesta expressão que... Fazia-o pensar que afinal, suas conclusões estivessem erradas. Mas então, o que poderia ter acontecido? Em sua mente, era o que ainda fazia mais sentido, e se não fosse isso... Por que Roger parecia tão relutante em falar?

 - Você se lembra de algo sobre seu pai? – perguntou enfim, obviamente tentando ganhar alguns segundos a mais para pensar em como falar o que deveria.

 - Pouca coisa. Lembro de observá-lo à noite, ele parecia arrasado e... Perdido, como se estivesse sofrendo muito. E também... Do velório dele – “e de ser deixado sozinho ali”, completou em pensamento. Tinha entendido que aquela reunião escura era destinada a velar seu pai, e apesar de não conseguir se lembrar com exatidão do homem, sem a forma embolada e o cheiro permanente de álcool, ou com o porta-retratos borrado, agora toda vez que pensava naquelas imagens, conseguia sentir a tristeza que o evento causara. O abandono. Começou até a pensar que no ponto do sonho onde era deixado trancado na casa, sem conseguir seguir ninguém, talvez fosse um reflexo do sentimento de isolamento que deve ter sentido na época.

 - E de sua mãe?

 Sua mãe? Não tinha parado para pensar antes, mas de alguma forma...

 - Ela morreu antes, não foi? Era por isso que ele parecia sofrer tanto.

 ... De alguma forma sabia.

 - Você não se lembra de nada do dia... Do dia em que... – o senhor parecia não saber como continuar, que palavras usar. Não queria ter de fazer isto. Aquela criança havia esquecido de algo que certamente sempre a atormentara, não queria ser o responsável por faze-la lembrar. Não disso.

 Matt pensou por alguns instantes, repassando os flashes mentalmente, antes de responder – Acho... Tinha um carro. E uma luz forte se aproximando. E aquele cheiro estranho... Eu comecei a pensar que teve um acidente de carro, ou algo assim. Não foi isso?

 Mas pela expressão de Roger, não foi.

 Mas então...

 - Matt, o que você tem que entender é que... – Roger começou incerto. O garoto notou que ele torcia discretamente os dedos – Eu conheci seu pai, nós trabalhamos juntos há muitos anos. Ele era um bom homem, mas... A morte da sua mãe o abalou de tal forma...

 Então Roger conhecia seu pai? Era por isso que tinha sido mandado direto pra cá após a morte dele?

 - Eu não duvido que ele tenha tentado ser forte, mas ele...

 - Ele... Não conseguiu – uma sensação estranha, como um anúncio do que estava por vir, invadiu o garoto, e ele não tinha certeza do que era, mas sentia que era algo que talvez não devesse ouvir. Algo que talvez não quisesse ouvir, um aviso ecoando bem no fundo da sua mente, de um canto que tinha perdido o acesso, dizendo para deixar pra lá – O que... O que ele fez?

 - Ele... Ele tentou... – céus, de que maneira poderia dizer isso? – Ele não estava conseguindo mais fazer as coisas propriamente, então... Na sua mente cansada e cheia da dor da perda da sua mãe, ele quis partir para... Ele deve ter acreditado que era o único método de ficar tudo bem de novo, se...

 - Roger... O que ele fez? – Matt o interrompeu, ficando cada vez mais nervoso com aquela enrolação entrecortada.

 -... – Roger encheu profundamente seus pulmões antes de finalmente dizer – Ele... Tomou o caminho que muitos tomados pela desesperança tomam. Seu pai optou pelo suicídio. E... Ele nunca teve a intenção de deixa-lo sozinho, Matt.

 ...

 ...

 “Ele nunca teve a intenção de deixa-lo sozinho”.

 Foram as palavras dele. Um eufemismo. Um bondoso eufemismo. Mas a sentença não precisou ser direta para Matt entender seu significado.

 Tinha razão. Devia ter deixado para lá.

 ~*~

 Matt entrou no quarto com as palavras de Roger ecoando sem parar em sua mente, abrindo portas ali que antes pareciam estar trancadas, portas estas que davam passagem a cenas que já não queria mais decifrar. Agora era tarde para voltar atrás.

O garoto sentiu aquele cheiro atingir-lhe com toda intensidade assim que abriu a porta da casa. Sabia que aquele cheiro não era bom sinal, não era uma criança qualquer afinal. Hesitou entre seguir na direção da fonte, ou correr para fora e para longe dali. O que fez seus pés se moverem na direção oposta da rua foi um único pensamento e medo “E se meu pai estiver lá?”.

 O ruivo deixou-se cair em um canto do cômodo, segurando os lados da cabeça como se assim conseguisse algum efeito em fazê-la parar de doer. Nos últimos dias essas pontadas pareciam ter praticamente sumido, era para ser um bom sinal, mas agora voltavam com uma intensidade quase desesperadora. Talvez ficasse assim toda vez que o que acabava lembrando fosse deveras doloroso ou difícil.

Estava quase alcançando a porta fechada de por onde escapava aquele cheiro, com medo do que poderia encontrar lá, mas um barulho atrás de si o fez virar-se. Passos. Passos arrastados descendo as escadas. Com alívio imenso, o pequeno garoto viu seu pai aproximando-se, com uma expressão serena que não se lembrava jamais de tê-lo visto dar, até que ele se abaixou e o abraçou. Um abraço forte, e a despeito do constante odor de bebida que nunca o deixava, um abraço que lhe transmitia estranha certeza e segurança. Um abraço do qual sentia quase tanta falta quanto de sua mãe.

 Era a primeira vez que os detalhes daquela pessoa lhe vinham com exatidão, mas isso não parecia melhorar em nada o que sentia no momento. Cada marca de expressão no rosto cansado, a clara cicatriz acima do olho direito, cada fio rebelde do cabelo castanho, cada um dos dentes perfeitamente alinhados, outrora brancos, no entanto na época marcados pelo hábito.

Mas toda a cena mudou totalmente de rumo quando o homem, ainda com a criança segura nos braços, abriu a porta proibida os levando para o interior da pequena cozinha. O pequeno Mail sabia que não podiam ficar ali, e tentou chamar o pai à razão, tentou se soltar dos braços dele e puxá-lo para fora. Era perigoso. Tinham que sair. Mas seu pai parecia não escutá-lo, e tampouco parecia querer deixa-lo ir.

 As mãos do homem tremiam quase imperceptivelmente, mas seus braços estavam firmes e fortes. Seguros demais para que uma criança conseguisse lutar contra. Matt se lembrava muito bem disso, mas... Não, não queria mais, por que não conseguia parar?!

“Tudo bem, Mail. Eu vou cuidar de você... Juntos... Eu vou, sempre... Vou...”.

 As palavras mal eram ouvidas, e aos poucos deixaram de ser pronunciadas. O garoto enterrou o rosto no casaco do mais velho, lembrando-se dos tantos programas de televisão que já vira, e tentando desesperadamente não respirar aquele ar contaminado. Isso lhe deu apenas mais alguns momentos a mais. Mal sentiu o baque quando o corpo inerte de seu pai atingiu o chão junto a ele, mas agora também, não tinha mais nenhuma chance de se arrastar para fora dali. Era tarde. O cheiro daquela substância* o dominava e o gás anulava cada um dos seus sentidos, toda sensação a mais que pudesse sentir.

 Lembrava-se da tontura, do medo, de se sentir sufocado. E lembrar o fazia reviver essas sensações no presente, tanto que bateu algumas vezes no próprio peito, como se para forçar o ar a circular propriamente dentro de si. Sabia que morte por asfixia de gás era rápida, e na maioria das vezes, indolor. Quase não se sentia. Então por quê? Não deveria sentir... Não deveria ter sentido tudo aquilo. Havia algo a mais naquela mistura que... Não, já chega!

Em um rápido vislumbre de consciência, o garoto já não via os azulejos da cozinha, ou os braços de seu pai pesando sobre seu corpo. Juntamente com as manchas negras que agora formavam sua visão, achou ter visto uma luz forte se aproximando, uma luz avermelhada. A vaga sensação de estar em um veículo em movimento, tão rápido, foi a última que sentiu antes de mergulhar uma vez mais nas tão convidativas trevas.

 A luz e o carro que se lembrava eram ambos impressões da ambulância... Alguém tinha chamado por ajuda e conseguiram chegar a tempo para salvá-lo, mas seu pai... Esse era o pensamento que ele tinha de “cuidar”? Acabar com tudo rápido... Juntos... Sempre...

 - Para... – ouviu-se dizer baixinho, como se implorasse a um ser invisível que parasse de fazê-lo sentir essas coisas. Tinha sido deixado sozinho... Mas seu pai não queria deixa-lo sozinho, ele queria que fossem juntos... Não funcionou... E estava sozinho agora, sentindo tudo de novo...

 ...

 ... Sozinho?

 “Lembrando ou não, você sempre me teve ao seu lado. E isso não vai mudar”.

 ...

 “Eu nunca te deixaria sozinho”.

 ...

 - M-Mello...

 Isso, Mello tinha dito isso... Não tinha? E ele, Matt, tinha acreditado, então...

 Ainda parecia haver uma pressão na sua cabeça, e a despeito da ardência nos seus olhos e do peito parecer pesado demais, pensar nisso fez tudo tornar-se bem mais... Suportável.

 Outra vez.

 Isso já tinha acontecido antes, quando começou a se lembrar do dia que se machucou, e como daquela vez, Matt ficou confuso ao constatar o quanto imaginar o modo como o loiro ficava ao seu lado, o ajudava a deixar de lado a dor e o medo. Não fazia o menor sentido, como podia ser...

 Desde o momento em que abriu os olhos naquele hospital, e descobriu que não sabia quem era, que tinha aparentemente perdido todos os anos já vividos de sua vida, sentiu-se desamparado como alguém que se afoga e não encontra nada em que se segurar. Era indescritível o sentimento de olhar um ambiente que deveria lhe ser familiar, falar com pessoas que supostamente conhecia, e não sentir nada, como se fosse um espírito invasor em um corpo estranho.

 No entanto, aquele garoto que antes era absolutamente desconhecido para si, estivera ao seu lado desde o instante em que acordou naquele lugar, e de alguma forma curiosa, conseguia compensar todo o vazio que o consumiria caso estivesse realmente sozinho. Como isso era possível? Mesmo que fosse seu melhor amigo (e quanto a isso nunca teve a menor dúvida), a forma como apenas pensar que ele não o deixaria para trás diminuía o que tais lembranças desencadeavam, o fazia pensar...


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Notas finais do capítulo

Eu sei que no mangá diz que o Roger na verdade não gostava de crianças, mas eu não consigo imagina-lo assim. Pra mim, ele é o senhor que se preocupa com os órfãos que Watari o encarrega de cuidar, e nada me tira essa imagem =/
*Mercaptano é a substância que dá o cheiro ao gás de cozinha, que por si só é totalmente inodoro.