A Deusa Perdida escrita por mari mara


Capítulo 40
Nada além de uma menina pateta com seu cabo de vassoura


Notas iniciais do capítulo

Já faz oitenta e quatro anos..................................... PERDÃO
A essa altura do campeonato já tá todo mundo meio acostumado mas enfim de qualquer forma PERDÃO

Este capítulo está um pouco confuso, mas foi a maneira como consegui pra demonstrar a confusão interior da Hannah ao se tornar deusa novamente aaa

Boa leitura!! ♥



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/157251/chapter/40

40. Nada além de uma menina pateta com seu cabo de vassoura

Parte I: Hannah Nebavskaya

Imagina que um dia você vai no shopping e decide lanchar numa dessas franquias aí de lanchonete. Feito o Subway, tá ligado? Cê vai no Subway e pede uma bebida de refil, daquelas que você mesmo vai na máquina pra encher seu copo sozinho. Então você vai no refil feliz da vida, pronto pra uma Coca gelada, e começa a encher seu copinho de refri. Encheu! Muito bem. Você aperta o botão pra máquina parar de jogar refrigerante, mas ele emperra. Você aperta de novo. Emperra. Aperta de novo; ixe, não rola. Emperrou de vez!

Seu copo começa a vazar, e você entra em desespero tentando fazer parar. Coca-Cola transborda para todos os lados. A atentende do Subway começa a gritar pra você PARAR COM ISSO, NÃO TÁ VENDO QUE TÁ FAZENDO UMA BAGUNÇA, e você tenta explicar que TÔ TENTANDO MOÇA, EU TÔ TENTANDO EU TÔ–, só que ela não te escuta e continua a berrar PORQUE VOCÊ É BURRO!!, e você não sabe mais se aperta o botão ou se limpa a bagunça ou se começa a chorar e enquanto isso a Coca tá lá vazando pra todos os lados e não para e não para e NÃO PARA e a moça grita VOCÊ É BURRO?, e você todo lambrecado de refrigerante tendo um aneurisma pra parar aquela porra toda, querendo sentar no chão e chorar e gritar MAS EU NÃO TENHO CULPA MOÇA, EU NÃO TENHO CULPA ME PERDOA ME DESCULPA MOÇA EU NÃO SEI MAIS O QUE FAZER MOÇA ME AJUDA, e toda a praça de alimentação começa a te olhar como se você fosse um grande idiota que não sabe fazer algo tão simples quanto tirar a máquina da tomada, e a Coca-Cola transbordando porque não para não para não para, NÃO PARA PORRA, NÃO PARA ELA NÃO PARA AGORA ELA NÃO VAI PARAR NUNCA ELA PODE ME AFOGAR PODE ME MATAR AFOGADA VAI ME MATAR AFOGADA E VAI CONTINUAR SEM PARAR PORQUE ELA NÃO PARAAAAAAA.

Bom, é assim que eu me sinto agora.

Desculpa a história sem noção. Eu não consegui pensar num jeito melhor de explicar, a não ser dizendo que é assim que minha cabeça tá agora.

É como se tivessem feito um upload no meu sistema operacional, só que em vez de atualizar do Android  / iOS 5.2 pro 5.3, o que seria aceitável, foram do 5.2 para o 1498382853.8. Eu cheguei na ponta do barranco pronta para pular pro outro lado, mas calculei mal a distância e dei um salto maior que minha perna poderia dar. Daí em vez de parar do outro lado, parece que saí desgovernada rolando morro abaixo com o barranco inteiro deslizando pra cima da minha cara.

Meu lado mortal continua em algum lugar dentro de mim, desesperada, sem saber desligar a torneira da divinização. Gritando em desespero para tentar fazer parar, porque ela (eu?) não sabe lidar com o fato de dividir espaço com uma existência divina dentro de si. A pobre alma na máquina de refrigerante.

E meu lado divino, que tava escondido e caladinho lá nas profundezas do meu limbo até agora, tá achando meu lado mortal estúpido e medíocre por todo o drama que tá fazendo. Querendo sufocar essa Hannah Mortal até ela ficar ínfima e insignificante o suficiente para sumir por completo, porque ela (eu????) não quer dividir o espaço com uma existência humana e ordinária dentro de si. A atendente mal-amada.

E enquanto isso, no meio disso tudo, tem... eu? Todas sou eu? Nenhuma sou eu? Sei lá. Parece que eu sou aquilo que sempre fui, e ao mesmo tempo, sou muitas outras coisas. Me afogando em existências e percepções que jamais pensaria ser capaz de ter, inundada em sensações que tornam a mortalidade completamente sem sentido; vendo, sentindo e sendo de forma que não lembrava ter visto, sentido ou sido antigamente.

O céu tá nublado em Lagos, na Nigéria, já tem algumas horas. Dá pra sentir o vento úmido se espalhado pela cidade. Ao longe, vejo pontinhos brincando nas ruas da periferia da cidade. Também chove em algum lugar do sul da Ásia; eu não sei onde é, mas sei que chove bastante e a muito tempo, a exatamente seis dias, duas horas e quarenta e oito minutos. E vai chover por mais uns bons meses, porque é período de monções. Eu deveria saber o que são monções?

Eu também vejo algo ao norte da América do Sul, quase no Pacífico. Parece uma vila... ou uma aldeia. Uma cidadezinha. Não sei. Chove muito. As pessoas não estão tão felizes quanto no sul da Ásia, onde a chuva é um presente que vai trazer um bom desempenho na colheita. Na América parece que não tá nada bem. Boa parte das construções já perdeu o telhado. Algumas casas já foram levadas pela enxurrada. As pessoas tentam nadar. Eu já vi essa cena antes... várias vezes.

Meu lado divino diz que eu não devo me importar com os pontinhos, até porque quando cê olha de cima eles não parecem pessoas, são pontos mesmo. Feito formiguinhas. Quem se importa com as formigas? Quando eu era pequena, eu brincava com as outras crianças de jogar água nos formigueiros para ver as as pobres desesperadas correndo pra fora em busca de terra firme. De vez em quando elas se afogavam, e eu ficava impressionada com o quanto elas se contorciam antes de morrer. Podiam levar minutos. Horas.

— Você está bem?

Eu não tô bem. Eu não consigo parar de olhar pros pontos se debatendo em desespero, se contorcendo como insetos... Mas não são insetos. É muito fácil confundir os dois quando cê olha lá de cima, então eu preciso ficar me repetindo. Não são formigas. São pessoas. E isso não tá certo. Tá? Não tá. Meu lado divino insiste em repetir que isso não importa, que não é problema meu, mas o pouco que me restou de humana diz que isso não é certo.

Parou de chover na América do Sul.

Eu nem precisei torcer o nariz.

Vejo ao mesmo tempo, junto com a enchente e as monções e as crianças do interior de Lagos, e junto com o mundo inteiro, o Nico e a Rachel olhando pra mim. Pro meu corpo físico, que permanece lá como um aplicativo de segundo plano, que executa tarefas enquanto tá minimizado no celular. Uma parte ínfima de mim se preocupa em estar lá com eles.

A maior parte lida com todas as outras coisas que já mencionei; com uma colisão de ventos úmidos no meio do Pacífico que pode causar uma tempestade tropical de precipiração de cento e quarenta e dois milímetros de chuva na costa de Bora Bora, com as enchentes em Medellín, com o céu em Reykjavik em Praga em Dakar e em Seoul, com  as movimentações no meio-oeste dos Estados Unidos que podem, ou melhor, que vão se tornar tornados e todos os tipos de nuvens que existem no mundo, as cumulus nimbus as cumulus as cirrus as stratus e as cirrostratus altostratus nimbostratus e o que cada uma delas significa e o que cada uma delas faz onde cada uma delas está e onde vai chover onde vai fazer Sol onde vai nevar e por que vai nevar e a Hannah mortal sufocada no meio disso tudo faz a pergunta mais importante do mundo que é por que diabos eu sei disso tudo por que por que por que mas que saco por que essa existência medíocre e mortal fica querendo saber o porquê de tudo, não tem por que, é porque sim e pronto acabou eu sei disso tudo eu sou isso tudo eu sei que sou mas não sei como sou mas isso não importa para quê querer dar motivo pra tudo, as coisas às vezes não tem motivo e eu não aguento mais essa vozinha no fundo da minha cabeça dizendo que nada disso faz sentido, porque não faz sentido pra ela mas faz sentido pra mim, só que eu sou ela e ela sou eu e porra como assim eu sou as duas e se eu não for nenhuma das duas e se eu não for nada além da força metafísica maluca e transcendental que afogou as pessoas na Colômbia isso quer dizer que na verdade eu sou um monstro?????? Eu não sei eu não sei eu nÃO SEI EU NÃO SEI eu me sinto novamente sendo afogada por toda a metáfora da Coca-Cola infinita.

E daí tem a Rachel. E o Nico, que estava bravo comigo porque eu... o que foi que eu fiz, mesmo?

Ah, é. Eu possuí o garoto. Meu Deus.

Os dois não parecem notar que eu estou pensando em uma porrada de coisas ao mesmo tempo. Será que faz diferença? Que eu não estou realmente lá? Não faz, mas deveria fazer. Isso me faz pensar em todas as vezes em que estive em segundo (terceiro, quarto, quinto...) plano ao conversar com meu pai. Quantas outras coisas mais importantes ele fazia durante nossas conversas? Será que em algum momento ele realmente prestou atenção no que eu tinha a dizer?

Mas isso não importa. Se você se propõe a conviver com deuses, tem de aceitar que eles sempre terão coisas mais importantes para fazer do que lidar com você.

Esse pensamento me leva a uma sensação estranha que a Hannah divina não sabe direito diferenciar. Algo como... culpa. Medo. Medo que isso tudo faça com que eu cometa agora os mesmos erros que cometi na primeira vez, com minha mãe. Erros que os outros deuses cometem todos os dias, e que me pareciam terríveis a menos de uma hora atrás. Erros que me parecem acertos agora. Mas a voz sufocada dentro mim ainda tenta gritar alguma coisa, ainda tenta me dizer que são erros dos quais eu me arrependeria bastante.

O que foi que o Nico me falou mesmo, antes de juntarmos a Clave? Que ela não mudaria quem eu sou? Ele deveria ter razão. Um pedaço de metal não deveria ser capaz de mudar o que eu sinto, apesar de que todos esses sentimentos me parecem distantes e sem sentido agora. Mas eles faziam sentido antes, e isso deveria valer de alguma coisa.

Todas essas palavras e percepções sem sentido duram uma eternidade em minha cabeça, mas acontecem num milésimo de segundo se formos pensar pelo tempo cronológico contado pelos humanos. Ainda posso ouvir Nico perguntando:

— Você está bem?

Meu lado divino quer dizer que sim em segundo plano, e continuar lidando com coisas mais importantes. A tempestade de raios que se inicia na rota de colisão no Pacífico. Os ventos que continuam fortes. Os pontinhos que continuam em desespero, apesar de que agora helicópteros passam por mim e descem até eles para ajudar. Coisas muito mais importantes.

Já meu lado mortal quer se preocupar com feitos menos grandiosos: estar aqui de verdade. Mas não é tão fácil quanto parece. É como fingir que não escuta alguém que grita no seu ouvido.

Mas eu faço um esforço. Fecho os olhos para a América do Sul, e para o Pacífico, e para o mundo inteiro, e deixo abertos apenas aqueles que realmente são meus.

— Acho que sim — minha voz é a mesma que sempre foi, e quase me faz pensar que nada mudou desde a última vez em que a usei — Só meio esquisita. Parece que fizeram um upload de uma caralhada de coisa na minha cabeça e eu não tô sabendo lidar muito bem, mas acho que vou acabar me acostumando.

Quando termino a frase, acontece. A Hannah divina para de sufocar a Hannah mortal, que suspira aliviada. Elas concordam em andar juntas pelo bem da minha sanidade, de forma que eu consiga ser as duas ao mesmo tempo. Até porque não há duas, há apenas eu. Seja lá o que diabo isso signifique.

A máquina de refrigerante finalmente para de jorrar.

 

Apesar de parecer que estou super confortável com minhas novas percepções, ainda não sei lidar muito bem com esse rolê de poderes. Por exemplo, quando sem querer levo a gente para o Olimpo.

Como consigo ouvir a Rachel pensando, alto demais para chamar minha atenção: PUF.

As conversas se calam e os Olimpianos olham para nós com curiosidade, e me sinto como as pessoas minúsculas da Colômbia: uma formiga em meio a colossos.

Quando eu pedi a Hades para convocar uma assembleia, eu não pensei muito bem que seria, cê sabe, uma assembleia. Com, cê sabe, deuses. Para falar de mim. Na hora pareceu que seria simples, eu diria "e aí, tudo bom? Pois é, fiquem sabendo que eu tô de volta. Agora eu vou ali lidar com minhas monções e já volto, tá legal?". Não imaginei que seria eu parada feito uma idiota sem saber o que dizer, carregando meu símbolo divino / cabo de vassoura enquanto as pessoas (deuses) esperam que eu diga algo inteligente. Por que eu não trouxe Annabeth? Ela poderia explicar minha situação melhor que eu mesma, nesse momento.

Meu pai, parecendo um gigante do alto de seu trono, sorri ao se adressar a nós:

— Minha filha. Seja bem-vinda novamente.

Hera, no trono ao lado, faz uma cara de desgosto. O ódio nos olhos dela me deixa sem jeito para responder.

— Hum, oi pai. E aí?

Eu deveria dizer mais alguma coisa, mas é como apresentar um trabalho na frente da sala com toda a turma te julgando. Meu silêncio ecoa pelas colunas douradas e perfeitas da sala dos tronos, e os Olimpianos me observam atentamente, como...  como se eu fosse uma grande idiota que não sabe fazer algo tão simples quanto tirar a máquina de refrigerante da tomada. Então eles são a plateia na praça de alimentação.

Nico dá um passo à frente antes que o silêncio se torne longo demais para me fazer parecer idiota:

— Obrigado por seguirem o pedido de meu pai para se reunirem aqui. Como vocês podem ver, nós completamos a busca–

A expressão de meu pai transparece um desgosto igual, se não maior que o de minha madrasta.

— Obrigado por tomar a palavra, filho de Hades, mas tenho certeza de que minha filha não precisa de ninguém que fale por ela.

Apesar das boas intenções, Nico não termina sua frase. Ele faz uma pequena reverência com a cabeça e recua novamente.

Não sei o que me dá coragem de falar. Talvez seja a arrogância de meu pai ao dizer filho de Hades, como se fosse uma doença. Talvez seja o fato de o próprio Hades, mesmo sabendo que os outros não vão com a sua cara, ter solicitando que todos estivessem aqui. Não tenho certeza de como, já que ele não pode entrar no Olimpo sem permissão, mas o fez mesmo assim.

Os deuses escutaram o pedido, mas como ele não está aqui, suponho que não foi permitida a sua presença. Zeus não permitiu. Meu pai.

— Está tudo bem — digo — Ele não fala por mim, nós falamos juntos. O que ele quer dizer é que busca está terminada, então agora precisamos falar sobre quem a  causou.

Apenas dois dos doze deuses não estão presentes: Apolo e Senhor D. Não sei de Dioníso, mas é bom saber que Apolo não está aqui no momento. Será que Hades não o convocou? Hades sabia?

— Fui traída por meu irmão, Apolo. Descobrimos que ele estava por trás disso tudo.

A revelação quebra o silêncio entre os deuses e levanta contestações indignadas, vozes perplexas e enfurecidas que falam por cima das outras como torcidas num jogo de futebol.

Rachel agarra meu braço com os olhos verdes arregalados, e lembro que ela não sabia desse detalhe.

— Apolo?! Meu Apolo? Tem certeza?

— Impossível, ele não faria–

— É o quê? Não entendo–

— ... uma coisa tão cruel!

— Mas por quê?

— Meu PRÓPRIO FILHO!

— ... escutou direito? Apolo? Tem certeza?

— Menina, não diga tolices — diz o deus ao lado de meu pai que reconheço como Poseidon, pela similaridade com Percy  — Essa é uma acusação muito séria.

Não sei se lido primeiro com os deuses ou com Rachel, que está em choque. Ela recua a passos tortos, repetindo as afirmações indignadas que não, não pode, ele não faria isso... Nico diz algo sobre levá-la pra fora que não consigo escutar direito, mas concordo. Talvez eu precise fazer isso sozinha.

Ele recua atrás dela.

Tento falar por cima das vozes, mas preciso começar a frase três vezes até eles calarem a boca e prestarem atenção.

— Eu sei que parece loucura. Eu também achei, mas precisam acreditar em mim–

Um homem que mais parece um armário de cinco portas, com roupas de motoqueiro e cabelo escuro raspado, solta uma risada irônica que sufoca minha voz. Ares. Tantos anos se passaram, irmão, e eu não senti nem um pouco a sua falta.

— Apolo? Aquele boiola não ia manjar um plano desses nem se quisesse. Acho que a mediocridade mortal corroeu seus neurônios nos últimos anos — ele dá um sorriso irônico, e cospe a frase pra cima de mim — Sabe quem deve estar por trás dessa porqueira? Hades.

O tumulto na sala muda, de questionamentos indignados para murmúrios de concordância.

— O quê? Não, meio tio não está envolvido–

Ares, deus do manterrupting, deixa a voz alta o suficiente para fazer a minha soar insignificante.

— É o que ele quer que você pense! O que ele quer que todos nós pensemos! — o fogo nos olhos dele brilham incandescentes quando ele se volta para Zeus — Eu já te falei, pai, Hades busca uma maneira de se infiltrar no Olimpo e tomar seu lugar a anos. Sequestrar a baixinha e fazer uma lavagem cerebral foi o primeiro passo. Levantar a bandeira da paz com essa história furada de convocar assembleia foi o segundo. Ainda bem que você não permitiu a vinda dele. Aquele safado quer passar de bonzinho para ter acesso irrestrito ao nosso Monte, para destronar o rei dos deuses e tornar isso daqui uma segunda Mortolândia.

Mas isso NEM FAZ SENTIDO.

Não que eles se importem. Deméter, a mulher de meia idade com trigo na cabeça, sobe a voz em meio aos murmúrios.

— Estou de acordo! Já passou da hora de alguém dar um enquadro naquele homem repugnante. Estou farta da cara feia dele e tenho medo das loucuras doentias que ele seria capaz pelo poder.

Apesar de que gostaria de ter alguém de confiança comigo, fico feliz que Nico tenha saído para acalmar Rachel. Agora eu entendo porque ele ficou fulo com a ideia do pai dele convocar essa bagunça, as pessoas aqui em cima tratam ele como um marginal.

— Hades nunca me sequestraria–

— Nunca? Mas como nunca, se ele sequestrou a minha filha?! — Deméter condiciona a raiva dela para mim — Quem rouba uma vez rouba duas vezes. Ele é um criminoso! E ainda mandou a cria malcriada dele para corromper você e fazê-la acreditar que a culpa é de outro — ela bufa — O garoto nem deveria ter direito de subir até o Olimpo! Já passou da hora de banirmos ele daqui também.

Para o meu horror, a expressão dos deuses mostra que eles estão tentados a concordar com a afirmação. Meu pai apoia o queixo na mão, a expressão pensativa.

— Faz sentido, Deméter.

— Não, não faz! Apolo está por trás de tudo. O próprio Muquêncio admitiu o plano–

Ares dá uma risada irônica.

— Quem, o deus da mentira? Bela testemunha a sua.

E é assim, falando sozinha para deuses que não se esforçam a ouvir o que tenho a dizer, que me sinto mais humana e estúpida do que me senti em qualquer outro momento da vida. Tanto drama para eu me sentir uma pateta na frente de todos, carregando um maldito cabo de vassoura gourmet. Eu sou uma vergonha.

Não, sério, eu preciso falar disso antes de continuar o rolê. É igualzinho um cabo de vassoura! Eu era muito brega quando fiz o design deste negócio, a uns quinhentos anos atrás. Credo.

Enfim, desculpa. Deixa eu continuar a narrar minha solidão.

Ártemis, que desde o início esteve observando tudo em sua figura pequena demais para um trono, decide falar pela primeira vez.

— Ela tem razão.

A voz dela tem muitas coisas. Culpa. Pesar. O bastante para calar as outras vozes, mesmo a de Ares.

— Apolo e eu temos uma conexão que não sei explicar. Não lemos os pensamentos um do outro, claro, mas podemos sentir o que o outro está sentindo — ela parece incomodada com o que tem a dizer, mas diz mesmo assim — Desde que os boatos sobre minha irmã voltar surgiram no Olimpo, semanas atrás, algo nele mudou. Ele continuava o mesmo de sempre, mas havia uma espécie de energia negativa fluindo nele. Uma tensão. Eu podia senti-la, algo ruim, só não entendia por quê.

Ela faz uma pausa, mas ninguém ousa falar.

— A última vez que senti algo do tipo vindo dele foi no século passado, perto da Primeira Guerra, que se não me engano foi perto da época em que Hannah desapareceu. Eu não me atentei para isso na época. Os mortais estavam se preparando para um conflito que levaria muitas vidas semideusas consigo, além de que uma deusa havia desaparecido. Todos nós estávamos tensos, deuses ou não. Mas agora que você diz, tudo faz sentido — ela olha pra mim e suspira — Peço desculpas e amaldiçoo minha inocência, irmã. Se houvesse percebido, poderia ter convencido Apolo a não performar algo tão caótico.

É estranho ouvir palavras tão sérias vindo de alguém tão... pequena. Apesar de ela ter o meu tamanho, o que me faz pensar que ninguém deve estar me levando a sério neste hospício porque eu pareço pequena demais.

Enquanto isso, Papai tá puto.

— Vocês querem me fazer pensar que meu filho está por trás disso? Não, nunca — ele balança a cabeça num não enfático, raivoso — Hades é o responsável, ou algum outro deus menor. Tenho certeza.

Ártemis suspira de seu trono, mas não faz objeções. Como se pensasse "bom, eu tentei".

Uma deusa pigarreia. Se parece com Annabeth daqui a alguns anos, os cabelos loiros ondulados, a pele bronzeada demais para alguém que deve passar mais tempo enfiada em livros do que ao ar livre. Antes mesmo de ela falar, já imagino que vá soltar a solução para todos os nossos problemas.

— Se me permite, meu senhor, essa dúvida pode ser facilmente resolvida — Atena fala devagar, como se todos nós fôssemos burros, o que em comparação com ela deve ser verdade — Por que você não convoca Aletéia para que se junte a nós?

— É uma ótima ideia — diz Ártemis do alto de seu trono grande demais.

Ares responde com um som de reprovação parecido com um rosnado.

— Não precisamos da deusa da verdade para confirmar que está óbvio.

A deusa... da verdade?

Atena dá uma pequena risada antes de continuar. A voz dela é tão poderosa quanto a de Ares, mas em vez de grosseira, é apenas direta. Gosto dela.

— Se lhe está tão clara a culpa de Hades, não será um problema que chequemos a honestidade da jovem. Ou você tem medo que suas teorias da conspiração não tenham fundamento?

Ares fuzila Atena com os olhos em brasa, e ela sustenta o olhar dele sem vacilar.

— Eu não tenho medo de nada, mulher.

— Então Aletéia não será um problema — ela diz — E eu não aprecio quando me chama de mulher, homem. Por mais que lhe seja difícil entender que existem modos, peço que faça um mínimo para se lembrar de tê-los ao se dirigir a mim.

No décimo trono, Afrodite, que hoje me aparece como uma versão dolorosamente parecida com minha mãe, repreende as palavras da mãe de Annie.

— Atena!

— Que foi? Eu pedi com educação.

Meu pai respira fundo. Parece cansado. Eu também estou, sinceramente. Ninguém me deu nem um banquinho.

— Atena tem razão. Que Aletéia nos diga a verdade.

Finalmente!

Ele bate duas palmas curtas, e uma... criança? Surge no meio do círculo, entre os deuses e nós. Ela não parece ter mais de oito anos. Está num vestido branco que vai até os pés descalços, os cabelos crespos castanhos como uma aura em volta da cabeça, e segura um espelho de mão dourado.

A criança pisca os olhos escuros para mim, confusa de estar aqui.

— Posso saber o que está acontecendo? — ela diz, palavras adultas na voz fina de pouca idade — Por que eu estava isso aqui de fazer um acusado de homicídio admitir que é culpado na frente de um júri, e se quer saber, estava bem divertido.

Eu pareço ser a única que está assustada por ver uma criança falando sobre acusados de homicídios. Meu pai acena com a cabeça para que eu fale, e apesar de essa menina me deixar um pouco intimidada, faço o que ele mandou.

— Hum, oi — dou um aceno sem graça — Meu nome é Hannah. Eu sou–

— A deusa que voltou, é, eu sei. Você não deve lembrar, mas as notícias correm rápido aqui em cima. Hermes me mandou uma mensagem avisando que vocês mandaram Hades convocar uma assembleia — ela ri, uma risada infantil esganiçada — Você tem muita coragem. Coragem ou burrice. Já que deu certo vou dizer que é coragem, mas lá no fundo ainda acho que é burrice.

Sei que estou na frente da deusa da verdade, que obviamente é cem por cento honesta por natureza, mas isso não muda o fato de que ela soa como uma criança malcriada que merece um esporro e um castigo.

Ares ri e diz "que bom que alguém concorda". Hermes, com aquela cara de quem perde o amigo mas não perde a piada, finge que não sabe do que estão falando. Fofoqueiro.

Vou ignorar a malcriação e pular para o que é importante.

— Eu disse que Apolo é o culpado pelo meu rapto, mas os deuses não acreditam que ele seria capaz de algo do tipo. Você precisa dizer que não estou mentinndo.

— Eu adoraria — diz Aletéia — Só que não posso fazer isso, mana. Cada um de nós é dono das nossas próprias verdades.

Uai? Aletéia suspira, um suspiro cansado e dramático.

— Quer dizer que eu não digo nada, garota. Quem diz é você — ela segura o espelho virado para mim — Diga a si mesma, se for capaz.

Aletéia tem metade da minha altura, então preciso me ajoelhar no mármore para ficar de frente ao reflexo. Quando o faço, me assusto com minha aparência. Está tão... perfeita. Nenhuma espinha. Nenhum cravo no nariz! A pele lisa e sem defeitos de uma bonequinha retocada no Photoshop.

A menina solta um pigarro, percebendo minha distração.

— Não tenho todo o tempo do mundo, garota! Tenho coisas melhores do ficar esperando você admirar a própria cara. Não tem espelho em casa, não?

— Ah é, foi mal, foi mal — dou uma pigarreada e olho nos meus olhos pelo reflexo — A minha verdade, é que Apolo... ele... — tento terminar, mas é como se estivesse engasgada nas palavras — Eu disse que Apolo...

Escuto a voz de Ares, exaltada.

— Tá vendo? Ela mente!

Alguém faz shhh, e ele se cala a contragosto.

Apesar de querer dar um chute na bunda dele, me concentro em não desviar o olhar do meu reflexo perfeito. Quero dizer que meu irmão me sequestrou, mas é como se alguém fechasse minha garganta. Me esforço para falar, e quando minha voz sai, direta e rápida como um tiro, não são as palavras que eu queria dizer.

— A verdade é que Muquêncio me disse que Apolo me sequestrou!

— Lá vem você falando do Muquêncio outra vez — Ares diz com ironia —  Ele é o deus da mentira! Ele pode dizer que caga cheiroso, ninguém aqui seria burro de acreditar.

Observo meu reflexo estranho, chocada. Essa não é minha verdade. Minha verdade é que Apolo...

Busco reviver o dia em que sumi. Ele continua nebuloso, talvez por relutância minha em não querer lembrar. Consigo ver flashes: eu estava em alguma cidade do leste; Kiev, talvez. Não lembro direito o que fui fazer. A Primeira Guerra se aproximava e meu país, a Rússia, não ia nada bem. Muitas revoluções. Pessoas morrendo. Talvez eu fosse buscar alguma coisa... Alguma informação. Me encontrar com alguém. Não sei. A partir daí, tudo fica nebuloso.

Lembro da emboscada, das sombras se esgueirando pelos becos de Kiev, de acordar no Mundo Inferior e ser arrastada até o Lete, mas nenhuma de Apolo... Caio sentada em cima das pernas, chocada com a informação.

Aletéia me encara com os olhos curiosos.

— Interessante! Muito interessante!

— Apesar das palavras grosseiras, Ares tem razão — diz Afrodite, com sua voz aveludada — Que embasamento nós temos com o testemunho de um deus das ilusões? Um deus que é filho de uma deusa do Mundo Inferior, não podemos nos esquecer. Pode estar acobertando o verdadeiro culpado.

Deméter solta um suspiro dramático.

— Bom, eu nunca gostei daquele garoto — ela diz — Não duvido que esteja envolvido nos planos de Hades. Ele é tão esquisito quanto a mãe.

Hefesto, que ficara calado todo esse tempo apenas observando a baderna, estala a língua para falar.

— Bom, ele realmente é um pouco... estranho. Não que eu possa falar muito.

O salão ecoa alguns murmúrios de concordância.

— Irmãos, irmãs, não sejamos tolos — o burburinho é cortado novamente pela voz de Atena — Está óbvio para mim que a verdade por trás da tragédia não é desta jovem. Se queremos confirmar o culpado, precisamos dos próprios acusados.

— Está louca, Atena?! — tia Dem dá um pulo em seu trono — Trazer AQUELE homem aqui?

A mãe de Annie dá de ombros, sem se importar com os nervos da outra deusa.

— Estou apenas pensando em termos pragmáticos. Todos nós temos afazeres maiores do que ponderar quem é o culpado. Se a própria menina não sabe, que os próprios acusados provem sua inocência. Ou confessem seu martírio.

Atena tem razão. Precisamos de Apolo. Se...

— Uma confissão de homicídio? Eu ia gostar disso.

— Homicídio? — faço uma careta para Aletéia, cujos olhinhos chegam a brilhar — Que homicídio o quê, garota. Eu não morri.

Na verdade morri sim, mas ninguém aqui precisa saber.

A menina ri da mina cara.

— Não é o que Hermes vem fofocando, mana. Dizem por aí que você bateu as botas de vez. Coitada.

Fuzilo Hermes com os olhos, que aproveita o assunto para me ignorar.

— Hum, Atena tem razão — ele diz, fingindo que não anda invadindo minha privacidade — Quem somos nós para ficar debatendo a inocência alheia?

— Mas não podemos trazer Hades

— É loucura, loucura!

— Ela tem razão...

A sala dos tronos parece reunião da Câmara dos Deputados em dia de votação. Zeus se irrita e esbraveja um JÁ CHEGA que faz o salão explodir em luz e no grito de um trovão.

Dramático, mas funciona.

— Estou farto dessa bagunça! Minha filha está de volta após anos e nós mal conseguimos conversar civilizadamente para descobrir o responsável! Atena tem razão, precisamos de um julgamento. E de uma especialista.

— Mas pai–

Zeus corta a voz de Ares.

— Eu falei que nós precisamos de um julgamento!

O salão explode mais claridade, e quando a luz volta ao normal, mais três pessoas estão presentes no salão.

A primeira é uma mulher, de pé ao lado do trono de Zeus. Ela é alta de cabelos escuros e ondulados, que emolduram o rosto sério demais e os olhos  azuis, os mesmos de Kutuzov. Nêmesis.

A segunda é...

— Fantasma? É você, Fantasma? O que eu tô fazendo aqui?

Era só o que me faltava.

Muquêncio parece mais perdido que cego em tiroteio. Por que diabo trouxeram ele?

E a terceira, bom. É Apolo, mais um gigante em seu trono. Não parecendo nem um pouco surpreso comigo, a formiguinha minúscula no centro da roda que mais parece uma pateta com seu cabo de vassoura.

— Ora, ora. Quem diria que os boatos de Hermes eram verdade, não é mesmo? — ele me dá um sorriso com os dentes perfeitos, um sorriso calculado — Mal posso esperar para ouvir o que você nos tem a dizer, irmã.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado!! Perdão pela encheção de linguiça mas achei importante dar uma pausa dramática antes da confissão...... SE É QUE VAI TER UMA CONFISSÃO NÉ MINHA GENTE

Quem sabe risos

Até!! ♥



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Deusa Perdida" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.