A Deusa Perdida escrita por mari mara


Capítulo 39
Um oferecimento, Casos de Família


Notas iniciais do capítulo

Oi pessoal!

Como estão em tempos de quarentena? Espero que bem! Eu também vou bem, obrigada. E pra incentivar ocês a NÃO SAIR DE CASA neste momento (a não ser que seja extremamente necessário), venho aqui com mais um capítulo perfeitíssimo procês

Não sei se repararam, mas teve um personagem que sumiu um pouquinho nos últimos capítulos........ Se alguém aí se atentou ao sumiço e estava preocupado/a, não se preocupe que eu não o esqueci!

Ah, e aliás: eu prometi uma aulinha básica de russo pro Matts, para não atrasar a leitura vou colocar nas notas finais pra quem quiser (:

Boa leitura s2



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39. Um oferecimento, Casos de Família

Parte I: Rachel Elizabeth Dare

Vocês devem me achar uma péssima amiga. Eu sei, eu sei. "Mas Rachel, como é que sua amiga morre e você vai passear pelos Campos Infinitos do Elíseo como se não tivesse nada acontecendo?".

Primeiro que não tinha nada melhor que eu poderia estar fazendo pra ajudar, tinha? Eu não sei reviver ninguém; isso aí é com o di Angelo, meu amor. Meu rolê é outro. Meu rolê é ter a visão que você tá morrendo e te avisar dela, pra ver se você dá um jeito de não morrer. A partir do momento em que você morre, meu bem, sinto muito mas não é mais problema meu. Pode reclamar no SAC, pode reclamar no Procon, pode reclamar com qualquer um mas eu não vou dar seu dinheiro de volta, não.

E outra. Nas palavras da Hannah, o Nico tinha sido bem claro: esperem no Elíseo! E pronto, foi isso que eu fiz. Esperei no Elíseo. E agora me diz, eu tô no PARAÍSO (paraíso mesmo, e não só jeito de falar), e a bonita tá achando que eu vou esperar sentada? Ah, vá. Me erra, Cláudia!

Claro que eu precisava dar uma passeadinha, ainda mais tendo o Muquêncio disponível pra ser meu acompanhante. Ele fica tão lindo nesse fundo verde, ensolarado, perfeito, meu Zeus do Céu.

— Ai, Muke — eu suspiro, com o braço dado com o dele. Avanços! — É lindo, não é?

— É...

Me aconchego em seu braço (e puta que pariu que homem FORTE), apoiando a cabeça em seu ombro.

— É a segunda coisa mais linda que já vi — a primeira sendo ele, claro. Mas ele já sabe disso.

De novo. Eu sei o que você vai dizer, meu caro leitor crítico. "Rachel, você é o Oráculo! Não pode!". Suspiro. Eu sei, tá legal? Eu sei. Mas não faz mal nenhum eu tirar uma casquinha, faz? Contanto que eu não coma o sorteve inteiro, uai.

Uai.

Estou admirando a rigidez fenomenal dos bíceps dele por baixo da camisa (uau), quando uma luz fortíssima cega meus olhos. Gente? Que isso? A volta de Jesus?

Quando a luz passa e consigo enxergar de novo, a Hannah sumiu.

Eita!

Pra você não vir falar MAIS UMA VEZ que sou uma amiga incompetente, largo o Muquêncio por um segundo (apesar de isso me deixar muito triste e carente) e corro até os outros, preocupada. Ela morreu de novo? Socorro. Tem uma mulher adulta, também morta, chorando igual uma condenada e abraçada com outro espírito. O que eu perdi, meus deuses? Meus parças parecem preocupados.

— Gente! Espera!

Percy e Annabeth olham pra mim suspresos. Nico está à sombra do portão. Ele parece triste, então boto a mão em seu ombro para dar meus consolos. Annabeth abre a boca para falar alguma coisa que não sei o que é, mas sei que será inteligente.

E daí não estou mais no Elíseo.

Estou num breu. No Caos.

E daí, estou caída de bunda na sombra de uma árvore.

Uai.

— Uai — repito, confusa. Me levanto. Nico está do meu lado meio encurvado, as mãos apoiadas nos joelhos — Eita, você tá bem menino?

Nico endireita o corpo, confuso.

— Rachel? O que cê tá fazendo aqui?

— Eu sei lá. Me diga você — olho em volta — A gente tá... numa escola?

Parece que é, ao menos. Estamos ao pé de uma das árvores em volta de uma quadra de futebol americano, e atrás dele um prédio bege. Só que ao contrário de Nova York, onde tudo é alto e cinzento, esse prédio é baixinho e comprido, e o céu acima de nós é tão azul e límpido quanto nunca vi em minha cidade natal.

A única coisa, como dizer, inesperada nisso tudo são as pessoas desmaiadas na grama e nas arquibancadas, caídas no chão. Espero que estejam desmaiadas. Parecem dormindo, na verdade.

— Você encostou em mim quando eu... — ele corta a própria frase com um gemido inconformado, botando a mão nas têmporas. Parece minha mãe quando está de enxaqueca.

— Hum, você parece mal.

Ele resmunga, a cara torta numa careta.

— Obrigado por notar.

Corre que o garoto tá puto.

Nico atravessa o campo de futebol a passos largos. Dou uma corridinha para alcançá-lo, me desviando de pessoas caídas no chão, que mais uma vez espero que não estejam mortas.

— É a escola da Han?

Ele tá um resmungo que me parece um "sim". Desvio de um garoto no chão, ainda vestido com o uniforme de futebol americano.

— E essa... galera aqui. Eles tão...

— Não. Tão só desacordadas — ele responde com a mão em sombra acima dos olhos, parecendo incomodado com o Sol. Eu, pelo contrário, tô felizona depois desse rolê pelo mundo dos mortos. Quase deitando ao lado dessa galera pra ver se consigo um bronzeado californiano pra combinar com meu Amor.

A gente entra no prédio, e eu preciso parar um segundo em choque quando vejo o estado lá dentro. As pessoas continuam como na quadra, dormindo no chão. Mas não dormindo, veja bem. Como se elas tivessem caído no meio de um dia de aula, desmaiadas meio tortas em cima de suas mochilas, no meio dos corredores, em ângulos que com certeza vão deixar um torcicolo ferrado quando isso tudo passar.

Nico não está tão surpreso quanto eu. Preciso dar outras corridinhas desesperadas pra alcançá-lo, já que ele está caminhando pelos corredores como se já conhecesse o lugar.

— O que diabo rolou por aqui? Ei, ei! — ele não me responde, e eu solto o ar indignada — Será que dá pra parar de me ignorar?

Ele para abrupto no corredor e se vira pra mim, bravo.

— Não importa, Rachel. Não importa o que aconteceu! A única coisa que importa agora é o que a gente vai fazer a partir de agora, e se a gente vai fazer rápido! Tá legal?

Estou meio ofendida pelo tom de voz dele, aquele tom de voz ESTOU FALADO COISAS ÓBVIAS. POR ACASO VOCÊ É BURRA?

— Tá! Mas por que você está gritando comigo? Grosso.

— Eu... — ele suspira, se acalmando um pouco. Um pouco — Olha, a Hannah morreu, eu tive que levar umas porradas e depois disso tudo ainda tive que colocar meu cu na reta pra fazer ela voltar. E justo quando as coisas já andavam uma desgraça, você me fez o favor de sem querer vir comigo pelas sombras, o que tá me dando uma dor de cabeça fudida que não vai passar até a gente conseguir terminar isso tudo e eu poder dormir em paz. Então me perdoa se eu tô sendo, como é que cê disse, grosso, mas é porque meu dia não tá sendo dos melhores e eu não acho que ele vá melhorar muito se a gente continuar empacando a própria vida. Entendeu?

Eita.

— Entendi — cruzo os braços — Mas cê ainda não precisa ser grosso com a gente.

— Tá bom. Desculpa. De verdade. Mas agora a gente tem que achar a Hannah.

Faço que sim e volto a segui-lo. Eu tenho que dar um desconto pro guri. Ele realmente parece que levou umas porradas. E a visão que eu tive da morte da Han... um horror. Tinham mortos. Sangue. A porcaria de um nazista. Credo e cruz, eu que não queria ser filha de Hades pra ficar lidando com essas coisas mórbidas o dia inteiro.

E o negócio é que todos nós ficamos chocados com a morte dela, mas é bem óbvio que pro Nico ela teve um impacto diferente, mais... Desolador.

Mas agora ela tá viva de novo! Eba! Estou feliz.

— Menino de deus — falo mais uma vez chocada, ao entrarmos num corredor que parece ter sido palco da Terceira Guerra Mundial. Vidro quebrado. Marcas de mão ensanguentadas nos armários. Muito sangue espalhado de um jeito assustador.

Foi aqui... que eu tive a visão. Foi aqui que ela morreu.

Preciso puxar o ar com calma para não passar mal.

Pro meu horror, Nico para de andar bem neste corredor específico.

—  A gente precisa ficar aqui? — pergunto, esperando que ele diga que não — Quer dizer, ela deve tá em outro lugar, outro lugar mais confortável... Mais bonitinho.

— Ela deve voltar onde morreu, mas eu não tenho certeza. Eu nunca tentei–

No meio da frase dele, acontece. O ar fica frio e outra luz fortíssima surge pra cegar meus olhos, e quando a luz sai, ela tá lá. A Han. Viva! Do mesmo jeito que parecia pela manhã, os olhos pretos de maquiagem, blusinha básica e calça jeans, cabelo naquele estado bagunçado mas bonitinho, entre seco e molhado depois de lavar. Com carinha de banho tomado, e não de defunta, o que é ótimo.

Corro até ela, tropeçando em alguns alunos caídos no processo.

— AMIGA PELO AMOR DE DEUS EU ACHEI QUE VOCÊ NUNCA MAIS IA VOLTAR — aperto a menina num abraço, emocionada. Quando afasto, ela não parece tão emocionada em me reencontrar quanto eu acho que deveria.

— Rachel? Mas o que você–

— Menina, nem me pergunte — abaixo a voz enquanto Nico se aproxima — E não pergunta pra ele também, não, que ele vai resmungar um bocado de mentiras sobre eu ter feito umas bobagens sem querer e ter dado pra ele uma enxaqueca do caramba. Tudo mentira.

Hannah franze a testa, confusa, mas por bem ou por mal realmente não pede grandes explicações. Se Nico ouviu o que eu disse ele também não demonstra, me parecendo sério demais pra alguém cuja namorada (?) acabou de não-morrer. Ele pergunta:

— Como cê tá se sentindo?

— Acho que eu tô bem... Tô ótima, na verdade — ela entorta o corpo, se alongando — Só preciso lembrar que agora eu tenho que respirar outra vez. Eu não precisava fazer isso lá embaixo.

Dou uma risadinha, mas os dois continuam sérios, e a única coisa que Nico diz é:

— Bom. Isso é bom.

Oi?

Olho pra ele, depois da Hannah, depois pra ele de novo. O quê que é isso? Reunião de divórcio? Casos de Família?

— Gente? É sério isso? — corto o climão, chocada — Depois de tudo que aconteceu, é assim que vocês se tratam? Não tem uma declaração, um mísero beijinho de reencontro?

Hannah tenta me cortar, mas continuo.

— Eu tô falando sério. Que miséria de relacionamento é esse?

Nico volta a botar a mão nas têmporas, e não sei mais se são as sombras que estão dando essa dor de cabeça. Foi mal.

— Olha, fico feliz que deu tudo certo, mas eu vou lá pegar o resto da Clave. Ok? No trailer. Enquanto isso vocês duas encontram a última parte da Clave e, hum, conversam. Sobre outras coisas. Sobre isso não, por favor. Ou que seja sobre isso, enfim, só o façam enquanto eu estiver longe o bastante pra não ter que responder.

O menino diz apressado e sai pelo corredor, evitando minha intervenção de terapeuta de casal. Olho pra Han esperando uma explicação.

— Ele tá meio cabreiro comigo — ela diz, num suspiro — Mas ele tem razão. Conversa depois. Primeiro vamos pegar a Medalha. É o último pedaço de Clave que nos resta. Eu tava com ela no pescoço quando... pifei.

— Medalha?

— É, é. É um negócio que eu ganhei uma vez quando estudava aqui. Nada demais — ela procura pelo corredor, por entre a bagunça e as pessoas, virando elas pro lado com cuidado pra ver se não estão deitadas por cima do negócio. Preciso lembrar pro meu próprio bem que elas tão só dormindo, e não mortas nesse cenário de chacina — Deve ter caído em algum lugar.

Ajudo a procurar, mas ao contrário da Han, não vou encostar meu dedo na galera. Só por precaução, né.

Vai que.

— Seria aquela medalha ali?

— Onde?

Aponto para o que parece uma medalha daquelas de honra ao mérito que a gente ganha nas aulas de natação (?), apesar de eu não querer chegar muito perto pra checar, considerando que ela tá meio sujinha e minha pobre amiga, cê sabe, bateu as botas com ela no pescoço. Meio bad vibes.

Pulo os obstáculos e me agacho para ver melhor. Apesar do meu receio, pego o metal com a ponta dos dedos. O brilho tá meio apagado pela poeira preta, mas quando limpo ela com a mão, a cor é o mesmo dourado cobreado do Cabo de Vassoura, vulgo resto da Clave. Achou!

— Menina, que sujeirada é essa — faço uma careta de desaprovação — Tenha modos e aprenda a lavar seus símbolos divinos com mais frequência, por favor?

— Ah, cê diz essa poeirinha aí? Né nada não, só as cinzas do nazista filho da puta que me matou mais cedo.

É O QUÊ.

Solto a medalha com um grito, e a Hannah me repreende com um "Rachel!" indignado antes de buscar ela de volta do chão.

— Cuidado com isso, menina!

Santo Apolo de Sunga, tem CINZAS nos meus dedos tem PEDACINHOS DE GENTE NAS MINHAS UNHAS SOCORRO.

— MENINA QUE NOJO TIRA ISSO DE PERTO DE MIM.

Enquanto eu balanço a mão como se ela estivesse pegando fogo, Han limpa a medalha, pasme, PASME, na barra da BLUSA. Ela encolhe os ombros pra minha cara de nojo.

— Eu também ia preferir que não tivesse pó de fascista na minha Clave, mas o que eu posso fazer de melhor pra limpar? Xixi? — ela semicerra os olhos — Se pá que essa é uma boa ideia, hein.

— Eu PROÍBO você de fazer uma coisa dessas.

Ela parece pensativa.

— Cuspe?

— Hannah!

— Ai, tá bom, eu vou no banheiro. Mas ainda acho que considerando tudo o que esse cara já fez, o xixi seria uma reparação histórica bem melhor.

— Banheiro? — pergunto, chocada — Tem um banheiro aqui? Com água?

— Claro que tem, ué. Onde cê acha que a gente ia quando dava um piriri no meio da aula? No mato?

— POR QUE VOCÊ NÃO FALOU ISSO ANTES?

Seguro ela pelo braço, e ela me guia com certa dificuldade ("nossa, será que era pra cá? Ou no andar de cima? Cara faz tanto tempo") até um bendito banheiro, onde dou um suspiro como se tivesse encontrado o Oásis no deserto.

— Com licença, com licença! — falo como se os desmaiados pudessem me ouvir, até abrir a torneira no máximo e enfiar as mãos na água — Nunca mais reclame de mim, amiga. Olha as coisas que eu estou passando por você.

Estou de costas pra ela, concentrada em colocar todo o sabão do mundo nas mãos, quando escuto um sonzinho familiar. Termino de me limpar (graças a Zeus) e viro pra conferir se estou ouvindo direito.

— Você está... rindo?

Sim, ela está RINDO.

Como se ISSO fosse ENGRAÇADO.

— Ah, tem que rir pra não chorar, né — gente pelo amor de Zeus ela tá RINDOOO — A situação toda é meio ridícula. Desde Niké mandando um bando de defunto atrás de mim, até um desses defuntos me fazer defunta, até você–

— Não fala. Não–

— Pegando nas–

— NÃO PRECISA ME LEMBRAR.

Acho que quando as pessoas passam por traumas elas ficam idiotas, porque isso só faz ela rir mais. Estou brava. Não é engraçado! Estou traumatizada! Pego a medalha suja das mãos dela pelo tirante e enfio debaixo da água corrente.

— Vai, vai rindo. Donzela. Mas dá um jeito de limpar a sua roupa porque eu não sou obrigada a andar com gente suja de... — eu não consigo nem pronunciar em voz alta — ...disso.

Ela dá umas batidinhas na camisa, onde usou para tentar limpar essa lástima, sorrindo.

Alguém pigarreia.

Nico está à porta do banheiro com o Cabo de Vassoura nas mãos.

— Custava vocês ficarem paradas no mesmo lugar?

A Hannah tem razão, ele parece meio cabreiro.

Nico dá uma olhada nas moças no chão antes de entrar, reparando  que estamos no banheiro feminino, mas a verdade é que tá todo mundo desmaiado e ninguém vai se importar de ter um cara entrando aqui (apesar de que ele ainda parece pensar duas vezes antes de se juntar a nós).

Ele passa pra Hannah o Cabo de Vassoura, que na verdade são todos os pedacinhos de símbolo que achamos até agora. Apesar de brava, arranco o tirante e também estendo a medalha LIMPA pra ela.

Ela olha pra minha mão, mas não pega a medalha.

— Que foi? Cê não tava toda toda rindo da minha cara? — minha voz é irônica, mas pergunto a sério — Cê vai arregar agora?

O filho de Hades me censura com o olhar, mas não diz nada em voz alta.

Esperamos.

— É que é esquisito. Isso significa que acabou?

— Bom — respondo — Não exatamente. Não é como se você estivesse morrendo. De novo.

Rachel — Nico me censura, e eu percebo que foi cedo demais. Mas acho que a Hannah não se importou. Ela parece preocupada (não com meu humor fora de hora, porém).

— Vocês acham que eu vou mudar?

— É claro que não. A Clave não muda quem você é — apesar de estar cabreiro, a voz de Nico tem um tom tranquilizador — É disso que você tem medo?

— Um pouco.

Ele assente, e como não diz mais nada, penso que é minha vez de tentar ajudar.

— Se esse é o problema, você pode continuar sendo semideusa. Ou... o que quer que você seja agora. A gente some com as Claves de novo e você finge que nada disso nunca aconteceu.

Minha psicologia reversa funciona, porque ela arregala os olhos só de ouvir essa possibilidade.

— Não! Não, vocês tem razão. Nós não passamos por tanta coisa para nada — ela balança a cabeça num não — Mas como é que funciona esse rolê? É só eu juntar tudo que a mágica acontece?

Dou de ombros.

— Acho que sim.

— Tá legal. Tá legal. É só–

Ela pega a medalha de minha mão, e no momento em que aproxima ela do Cabo de Vassoura, o brilho dourado da Clave aumenta até ficar desconfortável e eu precisar cobrir os olhos com a mão. Escuto ela dizendo um "ooopa!" surpreso, mas não posso ver por quê. Ainda vou ficar cega até o final dessa busca, anota aí.

A luz volta ao normal. Descubro os olhos e solto um "gente!" surpreso.

É a Hannah, mas não parece ser a nossa Hannah. Ela parece mais alta, ou talvez seja só a postura corcunda que melhorou. O rosto limpo, sem as espinhas adolescentes e sem lápis em volta dos olhos, que estão ainda mais claros do que estavam antes, um azul quase branco que eu nunca tinha visto nos olhos de alguém. O cabelo dela não tem mais mechas coloridas, o que eu acho uma pena, e a pele que antes era pálida tem um brilho bem leve, como se ela tivesse passado iluminador.

Uma... Hannah 2.0. Versão melhorada.

— Eu amei. Eu amei! — é tudo que eu consigo dizer — Arrasou. Não é mesmo, Nicodemo?

Ele parece meio chocado com isso tudo.

— É... É, tá... diferente. Né?

Mas acho que ela não tá prestando atenção na gente. Ela tá com os olhos arregalados, surpresos, olhando pra nós sem realmente nos ver.

— Socorro — ela diz — Tem tantas coisas. Na minha cabeça agora. Meu deus.

— Você está bem?

Ela olha pro Nico como se estivesse vendo ele ali pela primeira vez.

— Acho que sim. Só meio esquisita. Parece que fizeram um upload de uma caralhada de coisa na minha cabeça, e eu não tô sabendo lidar muito bem... Mas acho que vou acabar me acostumando.

— Ótimo. Ótimo! — eu digo — Perfeito! Agora, a primeira coisa que você precisa fazer é botar uma roupinha nova que combine com seu novo visual, porque eu não vou te deixar entrar no Olimpo borrada de... daquilo.

Nico franze a testa pra mim. Eu que não vou repetir aquela lástima.

A Hannah faz um "hum", e PUF. Adeus look básico de calça jeans, olá toga grega fashion casual. PUF mesmo. Até tênis off-white combinando. Na hora! Tipo trocar roupa de The Sims.

Estamos todos chocados.

Ela principalmente.

— Eita! Eu fiz isso! Eu fiz isso?

— Parece que sim, amiga.

— Meu deus! Meu deus — ela arregala os olhos pálidos, a mesma cara de Annabeth faz quando tem uma ideia muito incrível — Espera, isso quer dizer que a gente não precisa arranjar um jeito ir pro Olimpo. É só eu querer estar no Olimpo, que a gente–

PUF!

Coloco a mão na frente da boca. Santo Zeus.

Nico completa a frase que uma Hannah em choque não consegue terminar:

— Que a gente vai estar nele.

Bem no meio do salão dos Doze, que já estão em grande parte presentes e sentadinhos em seus tronos, muito obrigada.

Estou começando a gostar desse negócio.

~~

Parte II: Annabeth Chase

Gosto de pensar que sou uma pessoa de muitos talentos. Sou boa em criar coisas. Resolver coisas. Pensar em planos e soluções, distrações, etc. Também dizem que sou muito inteligente, mas sou modesta para dizer que, imagina! Só o bastante pra deixar minha mãe orgulhosa.

Mas se tem um negócio para o qual eu não nasci pra fazer, é pra ser babá. Babá de garotos amnésicos, menos ainda.

Não que o Muke dê tanto trabalho assim. Ele só faz muitas perguntas, feito uma criança (o que agora, em termos de idade mental, é meio que verdade).

— Então quer dizer que a fantasma não é um fantasma mais.

Ele diz com a seriedade de alguém que tenta entender um assunto muito complexo, e eu respondo pela milionésima vez no mesmo tom de voz de uma mãe cansada que mal pode esperar pelo momento em que o filho agitado vai finalmente dormir para ela poder ter um pouco de paz

— Sim, Muke, ela não morreu mais. Ressucitou. E o nome dela é Hannah, por sinal.

— E por que é que ela morreu, pra início de conversa?

Suspiro. Tem sido assim por vários minutos. Vários longos e tenebrosos minutos.

Estamos eu, ele e Percy subindo pela escadaria de Orfeu, que desemboca logo no Central Park, a alguns quarteirões da entrada do Olimpo em Nova York. Mais esperto que sair de volta por Los Angeles, não acha? O único problema é que a porta de Orfeu fica, como sabem, do outro lado do país. Ou seja: uma boa caminhada.

Apesar de que não posso reclamar, já que a caminhada é bem menor do que seria se fosse no Mundo Superior — óbvio. De Los Angeles a Nova York temos mais de quatro mil quilômetros, umas cinco horas de avião, quem dirá a pé... Umas mil horas? Um mês? Me lembrem de fazer as contas mais tarde.

Em vez disso, nossa caminhada dura menos de meia hora, apesar de eu não ter relógio para conferir. Acho que as distâncias funcionam diferentemente no Mundo Inferior. Ou as portas lá para cima não são portas de verdade, e sim portais que nos transportam pra Los Angeles ou Nova York, consequentemente. Não sei. Odeio admitir, mas não sei. Vou perguntar ao Nico mais tarde. Se tudo–

Me dou uma bronca mental. "Se" não. Quando isso tudo der certo. Porque tem que dar. Nós estávamos indo tão bem... E partiu meu coração ouvir a Hannah dizer que queria ficar aqui embaixo. Que era sozinha antes, que não era feliz. Ela merece uma segunda chance, e eu ficaria arrasada de perder mais uma amiga. Quando se é semideus, acaba perdendo muitos deles.

Mas vai dar certo, tenho certeza. A essa altura do campeonato, os três já devem de ter pegado a Clave... se é que o Nico não morreu desmaiado depois do pequeno deslize da Rachel.

Me dou outra bronca. Pense positivo, Annabeth! Pense positivo. Pense...

Ok, tudo bem, admito: estou preocupada. E ansiosa. Lá no fundo, não gosto muito dessa ideia de separar os grupos porque me deixa no escuro quanto ao que está acontecendo com os outros. Se algo ruim acontecer, eu não–

— Então a fan... quer dizer, a Hannah. Ela ressucitou. Isso eu entendi. Mas e vocês, onde é que vocês ficam no meio disso tudo?

Meia hora. Meia hora, e ele AINDA tem perguntas. Eu nunca vou ser mãe.

Até porque Percy, o suposto pai de meu novo filho adotivo, não está sendo de grande ajuda a não ser achar graça da situação.

— Nós somos amigos dela, e é isso que os amigos fazem — digo — Ajudam os outros quando eles tem problemas.

— Tipo morrer?

— Hum, é, tipo morrer.

O Muke faz uma pausa, uma linda e longa pausa de poucos segundos, nos quais eu consigo me concentrar em subir mais degraus desta escada maldita que parece não acabar nunca, e ouvir os meus próprios pensamentos. Paz.

Mas como toda paz que se preze, a minha não dura muito tempo.

— Mas eu também sou amigo dela?

Percy dá uma tossida. Ele ainda não teve tempo de me dizer o que descobriu sobre o papel de Muke nisso tudo, mas depois de tantos anos de namoro nós conseguimos nos comunicar apenas por olhares, bem o bastante para eu saber que não foi um papel muito bento. Papel esse que inclusive, eu suponho, acabou levando ele a perder a própria memória.

O que não é de todo ruim, porque antes ele era meio irritante. Apesar de ele continuar me irritando de qualquer jeito, só que agora por outros motivos.

— Claro que é — respondo, afinal — Você é um grande amigo dela. E você ainda salvou o Nico de cair no Rio Lete, algo pelo qual ela, e a gente também, será eternamente grato.

Percebo que Muke parou de subir a escada, e paro alguns degraus acima para ver o que há de errado.

— Eu não lembro — o incômodo na voz dele me dá pena, daí fico brava comigo mesma por sentir pena de alguém tão horrível, daí fico brava outra vez porque o que quer que tenha feito, não foi esse Muke mais que fez.

— Eu sei, cara, e deve ser um saco. Mas você é, e é isso que importa — Percy dá tapinhas no ombro do filho de Apolo — E você é nosso amigo também, não é, Annie?

E então ele olha pra mim, esperando que eu complete a história. Ah, agora o bonitão quer minha ajuda, é isso? Engraçado.

— Claro que é — dou meu melhor sorriso — A partir de agora, você definitivamente é meu filho de Apolo preferido.

Meu namorado me lança um olhar, mas dessa vez não entendo o que ele quer dizer. Ele não queria minha ajuda? Pois então.

Muke arregala os olhos esverdeados para mim. Odeio ter que admitir que mesmo agora, ele continua muito bonito.

— Meu pai? Você conhece ele?

— Mas é claro que conheço — respondo, e Percy dá uma tossida — Apolo é incrível. O deus do Sol, da Medicina, e do que mais... Da música não sei se é mais, acho que agora é a Hannah — Percy dá outra tossida, mas ele é meio alérgico e nós estamos no Inferno, tudo cheira a mofo e morte e umidade, então não há muito que eu possa fazer — Ele é super descolado. E super bonito, também! Apesar de que não me faz diferença, porque eu sou comprometida, claro — Percy dá outra tossida de um velho asmático, e agora eu me preocupo — Querido, você está bem? Você está engasgado?

— O quê? Não, não, foi só uma poeirinha — ele faz não com a mão, depois faz um gesto como que cortando o próprio pescoço, o que me faz franzir a testa. O túnel não é muito iluminado, então pode ser que eu não esteja enxergando.

— E minha mãe? — Muke pergunta, animado, e eu vou dizer que não sei porque não quero ser quem vai dar a informação de que ele vivia num orfanato, quando Percy tem outro acesso de tosse como se fosse um velho asmático de noventa anos engasgado com um pedaço de pão seco depois de fumar um maço inteiro de cigarro de palha.

Bato nas suas costas, e apesar de não estar engasgado de verdade, o efeito placebo é incrível porque ele para de tossir.

— Desculpem, é o ar do Mundo Inferior. Ele me deixa alérgico — ele tosse mais uma vez e funga — Mas já estou... ei, ali por acaso já é a porta?

Graças aos deuses! Chegamos ao fim da escadaria, onde um amontoado de... pedras? Enormes e pesadas? São a única coisa entre nós e o Central Park.

Mas é claro que não ia ser fácil.

Dou outro suspiro.

— Então, o que a gente faz agora? Empurra elas pra fora?

— Não, nós precisamos de música — diz Percy, com a voz limpa e perfeita demais para alguém que acabou de ter uma crise alérgica — É a única forma de abrir a porta.

— Música? — Muke pergunta com a voz curiosa, achando graça da situação. Ele não deve se lembrar quem é Orfeu, o mocinho com a Lira que abriu um caminho até o Mundo Inferior para salvar sua amada, mas agora não é hora de explicar.

— Pois é, só música tira essas pedras daí. Da última vez eu chamei o Grover, mas agora... — Percy bate o dedo no queixo, concentrado. O rosto dele se ilumina, como se tivesse uma ideia. Ele olha pra mim. Dou uma risada irônica.

— Sem chance.

Ele dá um estalo decepcionado com a língua.

— Tem razão. Se você cantar, vai acabar nos matando.

— Com licença?

— Quer dizer... — ele pigarreia — Sua voz é tão linda, meu amor, que eu vou morrer de emoção. É melhor... não.

Semicerro os olhos. Vou deixar passar, mas só dessa vez.

— Por acaso você canta, Muke?

O filho de Apolo franze a testa.

— Eu não sei... Acho que não. Talvez?

— Se pá a gente possa começar por esse talvez. Já que a Annie, hã, não pode. E eu também não sou muito bom nisso.

— Mas eu não lembro de música nenhuma.

Que engraçado. Chegamos tão longe para ficarmos presos na frente das pedras porque nenhum de nós sabe cantar.

— Tenta fazer um instrumental, ou uns lalala, tche tchererê, tchu tchá... Pode ser até jingle de supermercado — Percy tenta ajudar — A pedra não liga pro seu gosto musical. Na verdade acho que quanto pior, melhor, porque ela vai sair rápido do caminho pra você calar a boca logo de uma vez.

Muke pisca.

— Mas se é assim, a Annabeth pode cantar.

COM LICENÇA.

Antes que eu dê um chute nesses dois escada abaixo, ouvimos barulhos abafados vindo do outro lado das pedras. A luz do exterior começa a entrar no túnel, e percebo que são as próprias rochas se movendo. Uma voz masculina suave, bonita, chega até nós cantando... hello darkness, my old friend?

As pedras continuam se movendo ao som da voz aveludada, que segue a canção a partir do olá escuridão, vim aqui falar com você mais uma vez. Ela fica mais alta e clara, até que todas as pedras abrem caminho para a paisagem arborizada do Central Park e para um jovem alto, de cabelos loiros encaracolados e porte de atleta que se encontra esperando por nós do outro lado.

Apolo para de cantar e sorri, os dentes tão brancos quanto só um deus poderia ter.

— Olá semideuses, meus velhos amigos. Acho que chegou a hora de eu ter uma palavrinha com vocês, mais uma vez.

Eu não sei o que me faz cortar meu cumprimento pela metade. Pode ser a coincidência de ele estar logo aqui, logo agora, como se fosse programado. Pode ser a voz dele, que soa diferente, mais... irônica? Ou a maneira como ele olha pra nós, um olhar não muito amigável que eu nunca tinha visto no rosto do deus Sol.

Tem algo de errado com ele. Não fisicamente, porque Apolo continua tão impecavelmente perfeito quanto sempre foi, mas eu tenho certeza. Tem algo de errado por aqui.

Percy diz meu nome num sussurro alarmado, apreensivo, o que confirma minhas teorias, e eu começo a imaginar o que ele ainda não teve tempo de me dizer.

— Meu filho, eu admito que não eram esses dois que eu estava esperando — o sorriso do deus parece um pouco menos feliz — E minha irmãzinha, cadê?

Estou abismada demais para dizer qualquer coisa. De todos os deuses...

— Apolo? — faço um esforço para falar, o choque saindo óbvio em minha voz — Era você?

Muke, do meu lado, parece tão perplexo quanto eu. Ver os dois assim, tão próximos um do outro, deixa ainda mais claro o quanto são parecidos, apesar de Muke ser um pouco mais jovem do que a aparência atual de Apolo. Eles parecem mais irmãos do que pai e filho. A não ser...

— Pai? — Muquêncio olha para Apolo, depois para mim, esperando uma confirmação se aquele era o Apolo de quem eu estava falando. Mas quando ele faz isso, um de seus olhos está diferente. Está preto. Não esverdeado, mas preto. Cem por cento. Feito o breu.

O susto me faz recuar, e preciso ser segurada por Percy para não cair rolando escada abaixo. Eu estou doida. Eu estou doida? Sou a única que está vendo isso? Eu já vi olhos assim em algum lugar, mas não nele. Eu já vi... Em alguém. Quem?

— Cadê ela? — a voz impaciente de Apolo interrompe meu raciocínio — Eu te dei um trabalho, Muquêncio. Não me diga que conseguiu pegar a menina errada, e ainda trouxe a cria de Poseidon para complicar ainda mais a minha vida.

Muke balbucia alguma coisa, confuso. Talvez mais que eu.

Meu namorado me chama outra vez, agora com mais urgência na voz. Será que está pensando o mesmo que eu? Provavelmente. Pensamento que seria, precisamos dar o fora daqui.

Estamos no último degrau da escadaria de Orfeu, o que quer dizer que ainda estamos no Mundo Inferior. Enquanto não passarmos para o Superior, Apolo não pode nos atingir, já que não pode entrar nos domínios de Hades sem permissão. Nossa melhor opção é descer de volta até o Elíseo e tentar algum tipo de contato com os outros. O que também é a pior das opções, porque aparentemente Apolo não sabe onde eles estão, e enquanto estiver aqui não vai poder procurar. Enquanto perde tempo conosco, ganhamos tempo para Hannah, Nico, Rachel e...

— Orchard.

— Com licença? — diz o deus — Você fala muito baixo, Annabeth. Apesar do meu corpinho sarado eu tenho quatro mil anos, estou velho demais para entender os seus sussurros.

— Orchard — repito — Rachel disse que você iria com Orchard avisar ao Olimpo que a Han estava morta. Mas era mentira. Se você é o cara mau, cadê o Orchard?

Ele parece ofendido com minhas palavras.

— Primeiro que eu não sou "o" cara mau. Eu não sou nem um cara mau, ok? Sou só o cara que precisou fazer algumas coisas passíveis de serem interpretadas como más, mas só porque outras pessoas fizeram coisas com certeza más com ele antes. Uma reparação pessoal.

Percy se exalta, e eu preciso segurá-lo para não passar da linha da porta de Orfeu.

— Isso não muda bosta nenhuma! Tô cansado de vocês, deuses, fazendo uma merda atrás da outra e botando a culpa nos outros.

Apolo dá um suspiro teatral.

— E é por isso, Muquêncio, que você não devia ter trazido o Jackson. Ele distorce as minhas palavras! Eu não estou culpando ninguém, só estou explicando os meus motivos. Mas enfim. Sobre o garoto, já que perguntaram, eu faço questão de mostrar.

Ele estala os dedos e Orchard, pobre Orchard, um simples filho de Deméter, uma criança, aparece ao lado do deus. Ele está desacordado, pairando a alguns centímetros da grama, o corpinho levitando para cima e para baixo como se estivesse boiando no ar. Grito seu nome, preocupada, segurando o impulso de correr até ele.

— Não se incomode, menina. Ele não vai te ouvir.

— O que você fez com ele?!

— Eu? — ele faz uma careta, como se minha pergunta fosse inconcebível — Eu não fiz nada. Meu colega Morfeu que me fez um pequeno favor e colocou ele pra dormir. O garoto fala demais! E sei lá o que diabo aconteceu, parece que alguém apertou a tecla SAP e o menino começou a falar em espanhol. Espanhol! Eu posso ser imortal, mas ainda não arranjei um tempo na minha agenda infinita pra aprender espanhol.

— Apolo — a voz de Percy é firme, como se quisesse trazê-lo de volta à realidade — Deixe ele fora disso. Deixe todos nós fora disso, inclusive a Hannah. Porque a casa já caiu pra você, primo. Seu plano não deu certo. O Muke não é mais seu capacho–

— Eu não sou mais o quê?

— Não é um bom momento! — Percy faz um gesto para ele esperar, antes de se voltar para o deus — Olha, nós sabemos de tudo. Melinoe abriu o bico, e eu não vou ficar quieto sobre o que eu ouvi. Mas se você se render agora, podemos fazer um acordo.

Melinoe. É isso! É daí que eu já vi os olhos pretos, como o de Muke. Isso quer dizer que ele... Santo Zeus.

— Comece pelo Orchard — escuto meu namorado falando, mas ainda estou muito abismada com essa nova informação — Ele não tem nada a ver com isso. Deixe ele em paz.

Apolo apoia a mão no queixo, pensativo. O filho de Deméter continua levitando ao seu lado, imerso no próprio sono.

— Hum... Belas palavras, Perseu. Você é muito eloquente. Mas não.

Ele estala os dedos novamente, e tanto ele quanto Orchard somem. Percy solta um palavrão.

— Pra onde eles foram?

— Pode ser pra qualquer lugar — respondo, apreensiva — Ele pode estar indo atrás da Hannah agora.

Depois de todo esse tempo calado, Muke sobe o último degrau até o Central Park, nos obrigando a olhar pra ele. O filho de Melinoe.

Acho que já comentei isso várias vezes, mas vamos lá. O Percy que me perdoe, mas apesar dos pesares o Muquêncio nunca foi uma vista desagradável. Muito pelo contrário. Apesar da personalidade questionável, em momentos da busca eu ainda me pegava dando umas checadinhas nele, você sabe. Só pra admirar mesmo. Sem compromisso. Apenas apreciando os lindos atributos herdados do deus Sol.

Mas agora, com ele na minha frente, tudo o que eu consigo ver é Melinoe. Quando você sabe, é óbvio. Ela está nele, escondida por trás dos traços perfeitos de Apolo, mas está. O rosto longo, o nariz levemente pontudo, e agora o olho direito cuja íris é tão escura e desconcertante quanto o de sua mãe. É como um buraco negro, um vazio profundo que me faz esquecer todo e qualquer rostinho perfeito que tenha herdado de Apolo.

Eu não consigo olhar pra ele assim. Me incomoda. Mas faço um esforço enquanto ele diz:

— Olha, eu não sei o que tá acontecendo, mas aquele cara não pode ser meu pai. Por vários motivos. Primeiro, por que ele é muito jovem. Segundo, porque ele é doido. E mau. Se ele é meu pai, sinceramente, podem me deserdar.

Percy dá um suspiro.

— Espera só até ouvir sobre sua mãe.

— Quem? Minha mãe? O que tem ela?

A voz de Apolo surge de algum canto próximo do parque, interrompendo:

— ME DIGAM ONDE ELA ESTÁ.

Os dois param de falar, e por algum motivo ambos olham para mim. Como se eu sempre tivesse as respostas para todas as coisas, o que infelizmente não é verdade.

— É uma armadilha — eu digo, preocupada — Para sairmos do Hades. Ele sabe que não pode fazer nada enquanto continuarmos aqui.

— Pode ser, mas que outra opção nós temos?

Percy tem razão.

Assim que subimos o último degrau, as pedras se arrastam de volta para o lugar com um estrondo, selando a entrada de Orfeu. Agarro um Muke desorientado pelo braço e o puxo conosco. Ele vem sem discutir.

A porta de Orfeu fica em um caminho escondido no Central Park, e quando vamos para as vias principais elas estão cheias de pessoas caminhando, descansando nos bancos ou fazendo piquenique na grama. O clima está perfeito para um dia no parque, nublado com o Sol escondido pelas nuvens — o que espero ser um bom presságio.

Nós encontramos ele no lago. Quando eu digo no lago, quero dizer literalmente no lago. Apolo está a metros de nós pairando sobre as águas, com Orchard flutuando ao seu lado no mesmo estado adormecido.

— Olha, como o deus mais gostoso e incrível do Olimpo, eu posso andar sobre as águas — ele diz, alto o bastante para que possamos escutar da margem —, mas algo me diz que seu amigo não pode.

Alguns mortais se aglomeram à nossa volta, mais curiosos do que preocupados. A Névoa deve estar fazendo-os pensar que é algum tipo de performance.

— Percy — agarro ele pelo braço — Você pode fazer alguma coisa? Tentar usar a água para trazer Orchard até aqui?

— Eu não sei... Nada garante que ele vai acordar quando cair. Ele poderia se afogar.

— Mas talvez acorde.

Ele assente e levanta as mãos, e as águas do lago começam a se agitar. Apolo não fica muito feliz.

— Na-não! Nem pense em fazer isso, Jackson, que eu estalo meus dedinhos e seu amigo some daqui. Mas eu prometo que deixo ele em segurança se vocês me disserem onde a Hannah está.

Ele solta um palavrão, mas deixa as águas voltarem ao normal. É muito arriscado.

Estou bolando um plano inteligente para tentarmos chegar num acordo com o deus, quando Muquêncio grita do meu lado.

— Nós não vamos te falar! Pelo visto ela é minha amiga, e você é doido! E se você é realmente é o meu pai, eu estou muito decepcionado em ser seu filho!

Os mortais à nossa volta batem palmas.

Apolo parece feliz de ter uma plateia, porque empertiga a postura e aumenta a voz:

— Eu que estou decepcionado com você, Muquêncio! Eu te dei uma tarefa bem simples, que seria vigiar a Hannah no mundo mortal, e você fez o quê? Fez questão de se apaixonar pela menina! Ela é sua tia!

A plateia mortal faz um "oooh!" em conjunto. O filho de Apolo está tão surpreso quanto eles.

— Espera aí, eu me apaixonei pela minha tia? Que horror.

Esta conversa está tomando rumos lúdicos demais para a gravidade da situação, e eu grito de volta a pergunta que não quer calar na minha cabeça.

— Por que você odeia ela tanto assim?

A postura perfeita de Apolo vacila perante a plateia.

— Eu não odeio ela — ele diz, com a voz menos teatral do que da última vez — Ela é minha irmã. Eu nunca conseguiria odiá-la.

Chego o mais perto que consigo da margem, onde a agitação causada por Percy ainda cria pequenas ondas até a grama.

— Então qual o sentido disso tudo? Esse não é você, Apolo. Esse não é você.

O deus permanece em silêncio por tempo o suficiente para eu pensar que falei baixo demais, mas ele acaba me respondendo.

— Eu sei — ele diz, mas logo depois recompõe a compostura — Mas vocês não entendem. Ela me fez perder algo importante para mim. Desde que Hannah passou pela divinização... As coisas têm sido difíceis. Eu não quero fazer mal pra ela, eu nunca quis, mas eu precisava que ela ficasse fora disso. E ainda preciso. Se ela voltar... Se... — Apolo corta subitamente a frase e arregala os olhos — Não. Não! Não, droga, agora não–

E assim, ele desaparece.

Mas Orchard não. Orchard cai na água e afunda.

— Não!

Antes que eu termine de gritar, Percy passa correndo por mim e pula no lago. Ele nada até onde Orchard estivera e mergulha, trazendo o garoto inconsciente de volta à superfície.

Não parece nada fácil nadar com um Orchard desacordado servindo de peso morto. Espero ansiosa vários minutos até os dois chegarem na margem, onde Percy iça o garoto para fora da água, deixando um rastro de lama molhada pela grama.

— Ele é bem pesado pra uma criança — ele diz, respirando com dificuldade. Ajudo-o a arrastar Orchard até a terra firme, onde Percy se inclina sobre ele para checar a respiração.

— E aí?

— Está respirando.

— Graças aos deuses.

Orchard está pálido, e seu corpo não esboça reação enquanto Percy faz a massagem cardíaca, empurrando seu peito com as mãos para tirar a água dos pulmões.

Em toda minha vida de semideusa já passei por muitos perrengues, mas ver Orchard nesse estado me deixa sem reação. Pobre Orchard. Saiu de sua vida tranquila na roça para isso. Em toda a busca ele foi uma das pessoas que mais sofreu; primeiro com Jano, que colocou sua maldição de telenovela mexicana no garoto, e agora isso.

Depois de minutos angustiantes, Orchard arregala os olhos e tosse a água pra fora.

Me inclino sob ele, preocupada.

— Orchard, você está bem?

Ele demora alguns instantes para responder com a voz fraca.

— Mió agora, pomar das minha fazenda.

Solto um suspiro de alívio e aperto a mãozinha dele, que ainda está gelada pela água. Percy dá uma risada pelo nariz, torcendo a água da camisa.

— Vou deixar passar só porque você quase morreu, guri.

Orchard me dá um sorriso torto, como se ainda estivesse grogue pela magia de Morfeu. Sorrio de volta e dou um beijo sua mão.

Os mortais à nossa volta começam a comemorar com palmas e assovios, acreditando fielmente que somos algum tipo de entretenimento. Escuto alguém comentando que adorou a releitura de Titanic.

Percebo que Muquêncio está muito calado nesta situação, e dou uma olhada por cima do ombro procurando por ele. Percebo que também sumiu.

— Os deuses foram convocados — penso em voz alta, e pelo olhar de Percy já sei que está pensando exatamente a mesma coisa.

Isso significa a Assembleia no Olimpo acabou de começar.


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Notas finais do capítulo

GENTE CHEGOU O MOMENTO, espero que estejam tão emocionados quanto eu. Alguém tem teorias de como será a tal da Assembleia? Me contem nos comentários ♥

O próximo capítulo é, como podem imaginar, da nossa deusinha preferida... E como prometido, aproveito a deixa pra dar uma aulinha básica de russo procês arrasarem nos próximos capítulos dela:

— Olá = привет, "priviêt"
— Tudo bom? (pergunta) = как дела?, "kák dilá?"
— Tudo bom! (resposta) = я хорошо, "iá ráraxô". Significa literalmente "eu estou normal"
— Meu nome é... = меня зовут... , "mieiá zavút..."
— Obrigado/a = спасибо, "spacíba"

É isto, amigos. Até breve (:

Ps. Só observando a GALERA acompanhando até hoje (inclusive ganhei mais dois leitores desde que voltei kk) e não mandando um alô nos comentários..................... de olho nocês hein. hmmmmm



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