Comecei a despertar do meu sono – deveria ter sido ligada ao meu novo corpo, um golfinho provavelmente. O estranho era que eu havia mesmo sido avisada de que os golfinhos eram um pouco semelhantes aos humanos, mas não achava a diferença ainda, talvez pelo fato de ainda não estar pensando direito...

De acordo com que a minha mente foi clareando, esperei pelas memorias do ultimo momento do meu novo hospedeiro, mas antes disso uma memoria antiga de um rosto humano preencheu totalmente a minha mente e tudo o mais deixou de importar.

Uma dor insuportável me tragou. Kyle. Meu Kyle estava morto agora. O que será que havia acontecido? Ele teria vivido sua vida humana com Jodi? Teria ele sido feliz? Era tudo o que eu podia desejar agora que estava tudo acabado.

A partir do momento em que essa realidade me atingiu, toda a vontade de acordar pra minha nova vida se foi. Eu queria apenas continuar nesse estado de inércia, queria voltar a flutuar no espaço azul que eu estava quando o vi pela ultima vez. A vida não tinha mais sentindo, não se ele estivesse morto.

Em algum momento em meio a minha agonia senti a sedação ceder e logo a lucidez clareou totalmente meus pensamentos. Surpresa, percebi como meu corpo me parecia familiar. Eu não poderia ser um golfinho...

-Mandy, ela está chorando... Deveríamos dar a ela mais um corta-dor? - Uma voz preocupada soou distante.

Com toda certeza eu não era um golfinho: Era obvio. Eu estava usando a língua dos humanos, eu pensava como eles. Não era possível, era?

Alvoroçada, procurei os músculos certos para abrir meus olhos, mas não as conseguia encontrá-los. Um movimento de encontro a pele da minha mão me distraiu.

-Sunny, você está bem? Abra os olhos, por favor. - Uma nova voz pediu. Não somente uma voz – Era ele, Kyle!

O aperto em minha mão ficou mais firme e senti toques suaves em minhas bochechas. Tentei fazer o que ele pediu, ansiosa pra vê-lo novamente e saber que isso era mesmo real. Lentamente e com dificuldade levantei minhas pálpebras e encarei a luz azul baça que vinha de uma lanterna. Não era o que eu queria. Virei o rosto, procurando por Kyle e sorri quando finalmente o vi ali comigo, segurando minha mão num aperto firme que eu tentei retribuir, mas eu estava tão fraca... Será que ele podia sentir?

-Kyle! Eu estou aqui com você! - Exultei alegre, me esforçando para levantar e caindo de volta. Definitivamente estava muito, muito fraca. Ele me ajudou a levantar um pouco meu corpo de modo que eu pudesse ver a caverna onde eu estava.

Ele me olhava com um pequeno sorriso no rosto, mas havia algo mais ali... Uma tristeza profunda que parecia estar doendo muito nele. Arfei, só agora percebendo que se eu estava ali, Jodi não estava.

-Como estou aqui? E Jodi? O que aconteceu com ela? Por que não a trouxe de volta? - Disparei as perguntas de uma vez, falando rapidamente pelo nervosismo. A expressão de Kyle era morta enquanto ele explicava.

-Jodi não acordou. Tentamos reanimá-la por dias, mas ela não respondeu. - Ele parou bruscamente para aspirar o ar e cerrou os dentes. Era como se ele a tivesse perdido novamente e eu me senti imensamente tocada pela dor dele. Depois de soltar o ar numa lufada, ele prosseguiu.

-Quando pareceu que Jodi morreria, decidi recolocar você. Você ainda quer ficar, Sunny? - Ele perguntou um pouco ansioso, como se houvesse chance de um dia eu não querer ficar com ele. Alcancei a mão dele e a segurei entre as minhas.

-Eu sinto muito por Jodi. Eu quero ficar, claro. Mas eu prometo a você que eu vou procurar por ela, eu vou tentar o máximo. Obrigada por me trazer de volta. - Falei, passando pelo meu olhar que eu o entendia e o ajudaria de todos mundo que pudesse.

-Eu apreciaria isso, de verdade. - Ele agradeceu e eu assenti com um sorriso tímido. Ele sorriu de volta, por ora ele era o velho Kyle novamente, o que foi um alivio pra mim.

-Com licença, mas precisamos tratar de algo urgente: Você precisa comer, mocinha. - Doc avisou sorrindo e vindo se postar do outro lado do meu catre. Atrás dele, a hospedeira da curandeira me olhava ansiosa.

-Eu não estou sentindo fome... Mas eu me sinto estranhamente vazia e sem energia, é estranho. - Murmurei distraída com a confusão que era meu corpo.

-É o efeito do corta-dor. Você precisa comer um pouco, deve estar faminta. - A curandeira disse, sua voz era calma e amável, me lembrava de Doc.

-Você precisa mesmo comer. Está pálida, Sunny. Eu vou até a cozinha buscar algo. - Kyle falou, já levantando e o pavor tomou conta de mim.

-Não! Não me deixe sozinha, por favor! - Pedi segurando a mão de Kyle o mais forte que pude.

-vai ser rapidinho. Você não vai ficar sozinha. - Ele afirmou, mas continuei o encarando apavorada. Ele respirou fundo e olhou pros lados, parecendo ter uma ideia. - Hey, Ian! Você pode ficar com ela enquanto eu vou até a cozinha? - Kyle perguntou e só agora percebi Ian sentando no catre mais distante de mim segurando um tanque em suas mãos. Ele olhou pra nós e assentiu, vindo se colocar ao lado de Kyle.

Chamar Ian para me acalmar não foi uma boa ideia. Eu sabia que foi rude da minha parte, mas eu me encolhi pra longe dele, apavorada com a ultima lembrança que eu tinha de seu rosto enfurecido enquanto ele carregava Peg.

-Não Kyle! Por favor! - Implorei, não querendo ficar sozinha com Ian. Kyle olhou para o irmão com uma cara pidona.

-Ian, você poderia ir até a cozinha e...

-Não. - Ian interrompeu antes mesmo que Kyle terminasse. - Não tem nenhuma chance de eu deixar Peg e eu não vou sair por aí carregando ela, pode acontecer algum acidente. - Ele respondeu e eu franzi a testa confusa.

-Onde está a Peg? - Perguntei, a curiosidade vencendo o medo. Ian fez uma careta e pela segunda vez hoje, eu assistia a dor nos olhos azuis de um O'Shea.

-Peg etá neste tanque. - Ele falou, segurando o criotanque contra o peito com um carinho que me comoveu. Mas... Espera um minuto: Peg estava num criotanque?

-Ela está indo pra outro planeta? Não! Ela deveria ficar! Ela parece gostar tanto daqui, de vocês! Ela merece! - Comecei a defendê-la até perceber que, ao contrario do que eu esperava, Ian estava concordando com a cabeça e não discutindo comigo.

-Eu sei. Ela não vai a lugar algum. Agora mesmo os outros devem estar procurando um corpo pra ela. - Ele respondeu, parecendo convencer a si mesmo disso. Sorri ao perceber que ele realmente gostava dela, de uma alma. Ian ainda era o mesmo das memorias de Jodi, afinal.

-Então, eu posso ir Sunny? - Kyle checou, percebendo meu sorriso e eu acenei minimamente.

-Por favor, não demore. - Pedi e ele riu, já se retirando do hospital.

Ian sentou no lugar onde o irmão dele estava há segundos e ficou olhando pro tanque em sua mãos, seu olhar era tão amável e carinhoso que me fez sorrir – Peg teria gostado disso. Eu diria a ela depois, quando ela voltasse. Imaginando como seria morar com os humanos, soltei uma risadinha baixa, que chamou a atenção de Ian.

-O que foi? - Ele perguntou e eu dei de ombros.

-Eu estou feliz por ficar com vocês... Isso é tão maluco! - Confessei e ele riu.

Quando ele se moveu, fez um barulho que me deu um susto e mais por instinto que por qualquer outra coisa, me afastei dele sobressaltada. Ian me olhou com culpa enquanto eu tentava colocar na minha cabeça que ele era apenas Ian e não precisava ter medo dele.

-Desculpe por aquele dia. Eu fiquei um pouco fora de mim quando soube que Peg planejava ir embora. Acho que não causei uma boa impressão, não é? - Ele se desculpou um pouco sem graça e eu assenti.

-Eu entendo... Eu sei que você não é assim, eu meio que te conheço das memorias de Jodi. - Expliquei, o acalmando. Ficamos alguns minutos em silêncio até ele falar de novo.

-Sabe quando você conheceu Peg e ela disse o nome dela como urso? Você pareceu conhecer ela.. - Ele começou, a curiosidade brilhando em seus olhos.

-Não pessoalmente, mas eu duvido que alguém do planeta dos ursos já não tenha ouvido falar da história da Cavaleira da besta. Ela é algo como uma celebridade no meu antigo planeta. - Expliquei, fitando o rosto interessado de Ian.

-Você pode me contar a historia? Peg nunca falou disso. -Ele pediu e eu o contei a historia de como Vida nas estrelas ficou conhecida como a Cavaleira da Besta. Ian ouvia tudo maravilhado.

-Uau! Peg é incrível! - Ele sussurrou boquiaberto quando eu acabei e eu concordei avidamente. O jeito que ele falava dela e a atenção que ele dispensava ao tanque em suas mãos me deixavam mais e mais curiosa a cada segundo e eu tive que perguntar.

-Hmm... Ian, você er... O que você sente pela Peg? - Perguntei hesitante e ele ficou tenso. Me arrependi imediatamente, lembrando que apesar de eu o conhecer, ele não me conhecia. - Desculpe. Não é da minha conta, eu estou sendo intrometida.

-Não, não.. Tudo bem. Não é segredo nenhum. Eu amo a Peg, ela é o ser mais maravilhoso que eu já encontrei. - Ele disse num tom sonhador, olhando fixamente o metal frio em suas mãos. Senti meus olhos esbugalharem.

-Você a ama? Ama Peg, a alma? - Perguntei perplexa e Ian assentiu.

-Como não amaria? Peregrina é a coisa mais linda e pura do universo. - Ele respondeu convicto.

Um humano que amava uma alma! Isso era mesmo possível? Minhas esperanças tinham alguma fundação? Senti meus olhos se inundarem com lágrimas que logo transbordaram e funguei um pouco. Ian ainda fitava o tanque, por isso só percebeu um minuto depois que eu chorava.

-Sunny? O que foi? - Ele perguntou sobressaltado. Balancei a cabeça tentando acalmá-lo.

-Me desculpe. Eu acho que eu fiquei emocionada... Eu não sabia que um humano poderia se apaixonar por uma alma... - Sussurrei, minha voz morrendo enquanto eu corava. Ian abriu um sorriso.

-Você é muito legal, Sunny. Kyle foi muito sortudo em ser você a alma que está no corpo de Jodi. - Ele elogiou... Pelo menos eu acho que aquilo era um elogio. Eu sorri pra ele.

-Obrigada. - Murmurei, a timidez tomando conta e fazendo minhas bochechas ficarem vermelhas, mais uma vez. Ele achava mesmo que eu estar aqui era bom pra Kyle? Eu sempre achei que eu ter me envolvido tanto tinha apenas atrapalhado as coisas pra ele...

Ouvimos passos no corredor e Ian levantou, provavelmente pretendendo voltar ao seu local original, mas antes de sair, ele se virou pra mim.

-Hey Sunny? - Ele chamou, capturando meu olhar.

-Hmm? - Murmurei curiosa e ele deu um sorriso.

-Ele gosta de você também. Kyle não é bonzinho assim com todo mundo, acredite. - Ele comentou e eu não consegui esconder o sorriso imenso que nasceu em meu rosto enquanto a esperança enraizava em meu coração.

-Voltei... E espero que esteja com fome. - Kyle saudou, vindo se colocar ao meu lado e eu sorri pra ele, sentindo o cheiro da sopa que ele trazia e sentindo minha barriga roncar.

Kyle me passou a sopa e um pedaço de pão e eu comecei a comer avidamente- não era a melhor comida que eu já havia provado, mas meu estomago vazio agradeceu o alimento.

De momentos em momentos eu me pegava encarando Kyle, que me observava comer com a expressão satisfeita, e ficava me perguntando se, como o irmão, ele seria capaz de se apaixonar por uma alma, pelo inimigo nessa guerra que a especie dele estava vivendo. Reprimi essas ideias, decidindo não ficar tão esperançosa, afinal, ele ainda amava Jodi e eu tinha que continuar procurando por ela.

Mas mesmo com toda a minha repreensão, não consegui deixar de me sentir animada por estar aqui – Eu estava no local onde eu sentia que pertencia e, apesar de poder ser temporário, aproveitaria cada minuto.