Eu estava sozinha no meu quarto, observando a luz do relógio piscar – Três da madrugada, eu tinha que dormir, amanhã seria meu dia de ajudar com a limpeza da rua e, com certeza, Melody viria me acordar muito cedo. Mas eu não podia dormir agora, estava esperando por ele. E algo me dizia que ele viria dessa vez.

Eu estava certa: Uma vulto alto e escuro apareceu aparentemente do nada na minha janela e eu fui até ela e a abri. Era ele, meu Kyle. Ao me ver, ele sorriu aquele sorriso bobo que eu amava e entrou, se aproximando de mim.

-Kyle, eu sabia que você viria! - Cantarolei pra ele, que riu e me abraçou, me levantando e me girando, como se eu fosse um criancinha, me deliciei com a sensação de estar nos braços dele, rindo o tempo todo. Quando me colocou novamente no chão olhou diretamente em meus olhos, sua expressão se tornou tão doce e carinhosa, uma expressão que ele raramente usava, até mesmo com Jodi.

-Eu sempre voltarei por você, Jodi. Eu te amo. -Ele falou, acariciando minha face.

Aquilo foi como um tapa na cara. Olhei angustiada para ele e funguei um pouco, tentando impedir as lágrimas de saírem.

-Kyle, eu não sou Jodi. Meu nome é Luz do sol através do gelo. - Corrigi magoada, minha voz mal passava de um suspiro. Ao me ouvir, Kyle arregalou os olhos e sua expressão apaixonada se tornou enojada, a mão que acariciava minha face, desceu para meu pescoço, me impedindo de respirar.

-Você é um verme imundo que roubou o corpo da minha Jodi! Eu vou me livrar de você e ficar com ela novamente! - Ele esbravejou, gritando comigo. O ar mal conseguia chegar aos meus pulmões e eu comecei a me desesperar por não poder mais respirar. A essa altura, as lágrimas já estavam banhando meu rosto, fazendo a figura de Kyle ficar embaçada.

-Kyle, por favor! Eu te amo! Você não pode me matar! - Sussurrei com o restante do ar que eu tinha. O rosto de Kyle era pura fúria.

-Claro que posso, você é só uma ladra de corpos imunda! - Ele rosnou, aumentando a pressão em meu pescoço e tudo começou a ficar desfocado.

Eu sabia que deveria estar fazendo algo, lutando pra ficar viva, mas eu não era capaz de lidar com toda aquela violência, muito menos quando ela vinha de Kyle. A última imagem que pude ver era as mãos de Kyle em meus pescoço e aquela expressão assassina em seu rosto.

Acordei assustada e arfando por ar, como se o enforcamento que eu sofrera no sonho tivesse sido real – Na verdade, muitas coisas daquele sonho pareceram mesmo muito reais. A dor em meu peito era imensa e as lágrimas já estavam correndo úmidas pelo meu rosto.

Esse foi um dos piores pesadelos que eu tive nos meus seis anos aqui na terra, exatamente porque era muito, muito parecido com o meu melhor sonho, onde Kyle me encontrava e gostava de mim, Luz do sol através do gelo. A variação do meu sonho para um pesadelo me deixou completamente apavorada.

Só um sonho, Luz do sol. Só um sonho! - Repeti mentalmente, tentando me acalmar e me impedir de soluçar mais alto, se o fizesse, provavelmente Melody acordaria e me veria nesse estado e eu não queria deixá-la ainda mais preocupada comigo.

O rosto furioso de Kyle assombrava minha mente, me deixando desnorteada – Aquela sentimento ruim de medo se espalhando por mim. Mas o que eu estava fazendo? Tendo medo de Kyle? Do meu Kyle? Não, ele jamais faria isso comigo.

Eu precisava parar de pensar nisso, de qualquer forma. Tinha que entender de uma vez por todas que Kyle não iria aparecer, precisava me desvencilhar desses sentimentos “herdados” da minha hospedeira. Ele era um alienígena e nem ao menos o conhecia ! Como podia amá-lo tanto?

Balancei a cabeça, ainda fugando e fui até o meu banheiro para lavar os vestígios das lágrimas que estavam controladas agora. Ao terminar, olhei no espelho e observei meu rosto – o rosto de Jodi com aborrecimento, franzindo os lábios em reprovação. Eu precisava parar de me aborrecer também, isso era tão humano!

Vagarosamente, me enfiei debaixo das cobertas e, automaticamente, comecei a invocar as memórias de Kyle, coisa que eu usualmente fazia antes de dormir. Pensar em Kyle me fazia sentir melhor, então decidi que o plano de esquecê-lo ficaria para amanhã. A partir de amanhã eu começaria a evitar pensar nele.

O sono já me engolfava, quando um barulho estranho soou alto em meu quarto, me despertando. Levantei parcialmente, ficando sentada na cama. No escuro do meu quarto, pude distingui a forma de um homem alto e musculoso, a pele branca ainda mais pálida sob a luz da lua;

Ah, não! De novo não! Será que eu dormi e não percebi?

Antes que eu pudesse pensar mais sobre isso, o homem me jogou sobre os ombros como se meu peso fosse nada e pulou a janela do meu quarto, correndo apressadamente até um carro enorme. Ele me colocou no banco do jipe imenso e parou me observando com as sobrancelhas unidas, parecia intrigado com algo. Ele colocou cuidadosamente o meu cinto de segurança e foi rapidamente para o banco do motorista dando partida, o som do motor era ensurdecedor. Me limitei a encarar a provável alucinação ao meu lado, esperando o momento em que esse sonho viraria aquele pesadelo. Por que eu não acordava logo? Será que deveria me beliscar, ou algo assim?

Passaram-se alguns minutos, muitos na verdade, sem que nada de novo acontecesse- somente eu o encarando, esperando que ele desaparecesse, falasse ou gritasse comigo e ele dando de vez em quando umas rápidas olhadas de tempos em tempos, como que para se certificar de que estava aqui ainda.

Tempo demais calados, Pensei. Se isso era um sonho, o que eu estava começando a duvidar, ele já teria feito algo. Não, isso não poderia ser só mais um sonho, era detalhista demais, vívido demais. Além disso, Kyle estava diferente das minhas lembranças, parecia mais velho, sua pele estava mais bronzeada pelo sol.

Oh! Meu Deus! Kyle está aqui! Estou finalmente conhecendo Kyle pessoalmente!

Um surto avassalador de emoções passou por mim, me deixando perdida no meio daquele turbilhão de sentimentos. No final, o que prevaleceu foi alegria e um sentimento do qual eu não estava familiarizada, era como se eu estivesse sem respirar desde que cheguei nesse planeta e agora finalmente respirasse aliviada.

-Você é o Kyle. - Declarei o óbvio, eu fórica demais para pensar em algo mais conveniente para o momento.

-É, e quem é você? - Ele perguntou com uma expressão cuidadosa no rosto. O fato de eu conhecê-lo tão bem e para ele eu ser só uma alien desconhecida me entristeceu. Parecia incrivelmente importante pra mim que Kyle me conhecesse.

-Eu sou Luz do Sol Através do Gelo. - Eu me apresentei, sorrindo animada, por estar finalmente falando meu nome para Kyle. Ele soltou um assobio.

-Uh, é um nome e tanto... - Ele murmurou olhando diretamente para a estrada. Um momento passou até ele falar de novo. - De que planeta você veio?- Ele perguntou, a pergunta esquisita me desarmou. Desde quando humanos se importavam com isso? Desde quando eles sequer sabiam que podíamos vir de mais de um planeta?

-Hã... Eu vim do... Er... Planeta dos ursos. - Eu falei hesitante, usando o apelido terrestre do meu antigo planeta. Kyle assentiu em entendimento e me fitou pensativamente. Fiquei imaginando o que ele estava procurando.

-Ouça, você não está com medo? - Ele perguntou confuso. Ah, era isso! Ele deveria estar achando estranho eu, uma alma ficar totalmente calada e calma enquanto um humano a sequestra. Bem, eu também estava achando o jeito que ele me sequestrava estranho, então, isso nos deixava quites.

-Por que teria medo? Você é Kyle. Eu confio em você. - Respondi o óbvio, me dando conta do quanto eu confiava nele. Mesmo que Kyle fosse um humano selvagem, eu confiaria minha vida a ele. Kyle pareceu surpreso com minhas palavras e pareceu refletir um pouco, sorrindo pra mim depois.

-Obrigado, er... Qual seu nome mesmo? Desculpe, esqueci. - Ele falou com um sorriso apologético.

-Luz do Sol Através do Gelo. - Repeti sorrindo e ele colocou a mão no queixo.

-Hum... Luz do Sol... Sol... Hum... Posso chamar você de Sunny? - Ele pediu. Fiquei inesperadamente emocionada com o momento: Kyle deu um apelido pra mim! Ele não estava sendo mau comigo por eu ser uma alma! Isso era mais do que eu poderia pedir. Sorri de orelha a orelha para Kyle.

-Claro que sim! Sunny é um apelido bonitinho! - Falei animada, ainda sorrindo. Kyle retribuiu meu sorriso por um tempo, mas aí a expressão dele mudou, se tornando fechada e ele voltou a dar atenção somente a estrada. O que foi que eu disse de errado?

Kyle ficou calado, então eu resolvi tomar notas de aonde ele estava me levando – Estávamos passando pelos limites de Vegas e parecia que Kyle estava com um destino traçado em mente, pelo jeito decidido que ele decidia as direções que tomava. Para onde estávamos indo afinal? Eu deveria me sentir mal por não me importar?

Eu sabia que a resposta era sim, eu não poderia ser tão inconsequente. E quando Melody e seu marido, meu pai, pra todos os efeitos, percebessem que eu tinha desaparecido? Eles ficariam muito preocupados, com certeza.

-Para onde está me levando, Kyle? - Perguntei, soando mais despreocupada do que pretendia. Kyle voltou sua atenção para mim cuidadosamente.

-Para a minha casa, Sunny. - Ele falou e eu estremeci. Como assim casa? Ele estava vivendo em algum lugar sozinho? E Ian, o irmão dele, estaria lá? Será que ele estava bem? Continuava humano?

-Ei, calma... Você está segura. Ninguém vai te fazer nenhum mal. - Kyle me assegurou, interpretando mal a minha crescente agitação. - Na verdade, no lugar em que eu vivo, tem uma alma, também. - Ele tentou me acalmar, mas, ao contrário do que ele pretendia, esse comentário só me deixou mais surpresa: Como assim uma alma? Para quê? Como os humanos conviviam com uma alma? Por quê essa alma aceitava viver com esses humanos?

-Shh... Só fique calma, ok? Vai ficar tudo bem com você. -Ele me assegurou, tirando uma das mãos do volante e, hesitante, pegando a minha mão, me confortando. O toque de nossas peles era tão enlouquecedor, que me tirou a atenção do meu futuro próximo. Eu estava com Kyle, era só isso que importava.