Pesadelo do Real escrita por Metal_Will


Capítulo 30
Capítulo 30 - Escuridão




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"A escuridão, de fato, é tão dolorosa para a mente como para a vista, mas obter luz da escuridão, por mais esforço que acarrete, será sem dúvida motivo de júbilo e deleite"

~ David Hume

Capítulo 30 - Escuridão

 Vendo-se livre do presente suspeito de Gabriel, Monalisa retorna para casa ainda pensativa sobre sua nova condição. Ainda era difícil de acreditar que estava repassando todos os momentos anteriores, com a diferença de que agora tinha consciência de quem eram seus verdadeiros adversários. O objetivo parecia simples: despertar Ariadne como guia. O problema era como fazer isso. Teria que continuar trabalhando na decifração de seus sonhos estranhos.

 Chegando em casa, tudo mais uma vez estava vazio. A loirinha deixa sua mochila perto da mesa da sala, toma um copo de água na cozinha, dá um suspiro e vê um passarinho saltitando pelo parapeito da janela. Antes que ela assimilasse a situação, o animalzinho voa para longe. Voar deve ser uma das maiores sensações de liberdade que existiam. Liberdade. Uma palavra que Monalisa passou a dar mais valor ultimamente. Uma vez que descobriu sua verdadeira situação de prisioneira do Labirinto não podia afirmar que era livre. Talvez fosse feliz ignorando tudo, mas não era livre. No fim das contas, liberdade e felicidade eram coisas bastante diferentes. A felicidade não parecia completa sem a liberdade. Tendo isso em mente, a garota parecia decididade em continuar na sua jornada, não importando as consequências a que isso pudesse levar.

 De volta à mesa, ela se espreguiça, alongando seus dedos entrelaçados nas mãos e decide verificar seu caderno de sonhos com mais atenção. Era exatamente o seu caderno usado anteriormente, com exatamente as mesmas anotações. Como o Mestre dos Relógios conseguiu preservá-lo e como conseguiu pegá-lo de seu quarto? Não sabia. Ao que parece, foi parte da ajuda dele, assim como o fato de fazê-la recomeçar todo o trajeto também foi uma ajuda e tanto. Já que teve essa sorte, não podia deixar a oportunidade escapar. Sendo assim, a mocinha gasta boa parte da tarde em reler seus sonhos anotados e tentar estabelecer algum padrão ou alguma relação entre eles. Era algo que pensava em fazer já há algum tempo, mas só agora estava determinada a descobrir algo de novo. O problema é que sendo uma garota de ensino fundamental, por mais inteligente e determinada que fosse, não teria conhecimentos avançados de psicologia e simbolismo. E mesmo que tivesse, como poderia garantir que a ciência funcionasse para sonhos específicos do Labirinto? Não havia garantias. O único padrão que percebeu foi aquilo que já sabia: cada sonho apontava para um acontecimento futuro e seus elementos simbolizavam algum tutor ou vírus que encontraria posteriormente.

  Pegando como exemplo o seu primeiro sonho, onde vira Ariadne despencar precipício abaixo, foi um evento futuro bastante longínquo da data em que teve o sonho. A única razão mais plausível para ter um sonho com ela naquela época foi o fato de tê-la conhecido exatamente no dia seguinte. Mas como poderia saber que Ariadne representava uma força tão importante? E a interpretação que sua mãe fizera quando estava se passando pela guia também fazia bastante sentido, embora distorcesse completamente a verdade (se é que poderia usar o passado nesse raciocínio, já que agora estava em uma data anterior a isso). A interpretação correta dos sonhos era fundamental para obter sucesso nas suas escolhas.

 "Mas como vou saber interpretar meus sonhos?", pensa a garota, suspirando e olhando para o teto, "É claro...se soubesse, não precisaria de uma guia. Mas para ativar a guia, preciso interpretar meus sonhos sozinha. Então como diabos eles querem que eu me vire?"

 Ela tenta reler suas anotações mais um pouco, mas percebe que não teria muitos resultados. Ao olhar para o relógio, vê que já passavam das cinco da tarde e ela ainda estava ali, sem sequer ter trocado o uniforme da escola e sem nenhuma nova ideia que pudesse dar alguma luz no seu caminho. Imaginando que sua mãe chegaria logo, resolve guardar seu caderno, tomar banho, trocar de roupa e comer alguma coisa. Nesse meio tempo, enquanto sentia a água morna escorrer pelo seu corpo, a garota pensa em como seria sua relação com sua mãe agora que sabia sobre a verdadeira natureza dela. Apesar de ter passado a vida inteira sem conversar muito com ela, não poderia evitá-la o tempo todo. No entanto, se ela mantivesse sua personalidade anterior, seria fácil evitar assuntos suspeitos. Afinal, elas só falavam sobre o essencial e cada uma ia para um canto.

 E é exatamente isso que acontece. Assim que sua mãe chega, Monalisa estava na mesa da sala, trajando um pijama verde e fazendo sua lição de Matemática (coisa que ela não fazia há um bom tempo). Eleonora mantinha a personalidade de sua mãe calada de sempre, embora Monalisa soubesse muito bem que internamente ela tinha consciência completa de tudo que estava se passando.

- Boa noite, filha - cumprimenta a mãe, sem muito entusiasmo.

- Boa noite, mãe - responde a garota, tão entusiasmada quanto.

- Com fome? - pergunta Eleonora, enquanto deixa sua bolsa em cima da mesa, do lado oposto à Monalisa. A garota observa a tudo, tentando parecer o mais natural possível, embora saber que sua própria mãe era seu principal obstáculo para alcançar seus objetivos não permitisse relaxar por completo.

- Um pouco - responde a garota, evitando olhar nos olhos de Eleonora mais do que de costume. Considerando a personalidade introvertida que sua mãe sempre demonstrara, Monalisa poderia ficar tranquila quanto a se preocupar se ela percebeu isso ou não - Só comi um pouco de pão com mortadela e leite com chocolate no lanche.

- Bom, vou preparar alguma coisa - disse a mãe - Podemos jantar logo, já que o seu pai avisou que chegará tarde de novo. 

 Ela fala isso sem muito sentimento. E por falar nisso, faz muito tempo que o pai de Monalisa demorava para chegar em casa. Sua relação com o pai não era muito diferente da com a mãe, mas nos últimos dias ela sequer trocava palavras com ele. Mesmo assim, a menina prefere ficar em silêncio, jantar tranquilamente e ir dormir cedo. Ao que parecia, a verdadeira natureza de sua mãe não iria ser ativada tão cedo, mas, por via das dúvidas, Monalisa ainda achava melhor não estalar os dedos perto dela.

 Após se deitar e pegar no sono, a menina se vê em mais um sonho misterioso. Dessa vez, não podia enxergar direito onde estava. Na verdade, não conseguia enxergar nada. Era tudo uma imensa escuridão, onde não se podia afirmar se estava em uma sala fechada ou em um campo aberto. Ao olhar para cima não havia Lua ou estrelas. Talvez estivesse mesmo em um local fechado, ou, pelo menos, com algum teto. Mesmo assim, não podia afirmar. Sabia apenas que estava descalça por sentir o chão diretamente sob seus pés, se é que podia chamar aquilo de chão. Não parecia algo sólido, mas sim algo como...água. Parecia estar andando acima da água. Também podia sentir o tecido de sua roupa. Usava um tipo de vestido ou algo parecido. Era o máximo de informação que podia obter em todo aquele breu.

 Mas apesar de quieta e introvertida, Monalisa não era covarde. Ao invés de se desesperar, ela tenta andar alguns passos e percebe que tinha algum espaço para se mover, embora não sentisse nenhuma parede em volta. Talvez estivesse em um grande pátio ou uma sala realmente grande. Contudo, ela continua a andar, andar muito, andar bastante. Parecia ter andado por horas e não encontrava nada de diferente. Não poderia saber se estava andando em círculos, se estava andando na direção certa, se estava andando exatamente na direção oposta onde deveria ir, isso se podia dizer que havia um lugar onde deveria ir. Não sabia seu destino. Não tinha a menor ideia para onde andar. Estava simplesmente perdida em meio à uma escuridão infinita. Ou pelo menos parecia infinita.

 Já cansada, ela resolve se sentar. Nisso, ela até se esquece do tipo curioso de superfície onde se encontrava. Era água. Lembra-se rapidamente ao se sentir molhada, mas ao invés de levantar resolve tentar algo mais óbvio: se era mesmo água ou algo líquido, talvez pudesse atravessá-lo. Ela tenta coloca a mão no chão e tenta forçar, mas não funciona. Embora tivesse a sensação de estar em cima da água, tudo parecia tão impenetrável quanto terra firme.

 Sem saber para onde ir e sem ter como ir para baixo, Monalisa começa a sentir mais nervosa. Não parecia ter a presença de mais ninguém ali, mas mesmo que tivesse algum monstro, ainda poderia ser uma novidade. Mas não. Ela continua a andar indefinidamente, em silêncio absoluto, ouvindo apenas o som de seus passos na "água" onde estava e sem a mínima noção de direção. Após um bom tempo ela finalmente sente lágrimas correndo por seu rosto e murmura algum descontentamento.

- Eu...eu quero sair daqui... - sua voz sai chorosa - Tem alguém aí? Qualquer coisa...apareça alguma coisa...

 Mal ela acaba de enxugar suas lágrimas, ela percebe algo diferente. Havia alguma luz no horizonte. Estava longe, bem longe, mas era alguma coisa. Com um pouco de esperança, ela se levanta e caminha até a luz. Por um instante imaginou que ela fosse se afastar conforme fosse se aproximando, mas não. Estava ali. Parada. A garota continua a andar até chegar bem perto e perceber que a luz provinha de uma pessoa. Havia uma pessoa ali, sentada, abraçada nas próprias pernas com a cabeça praticamente enterrada. Ela emitia luz. Monalisa começou a se ver melhor. Usava um vestido branco idêntico ao de seu primeiro sonho e dessa vez não estava no topo de um edifício, mas ainda assim estava diante de Ariadne. Sim. Aquela pessoa era Ariadne. Monalisa pode reconhecê-la por seus cabelos.

- A..Ariadne? - gagueja a loirinha. A ruiva levanta a cabeça praticamente enterrada nas pernas e observa Monalisa. Sim. Era mesmo Ariadne, também descalça e usando o mesmo vestido branco. Monalisa suspira aliviada - Ariadne, é você!

- Monalisa - sorri ela, embora com um olhar meio distante.

- Que bom encontrá-la aqui..eu - mas assim que tenta se aproximar, um tipo de campo invisível a impede de se aproximar - O que é isso?

- Isso o quê?

- Eu...eu não consigo me aproximar de você - diz ela, tocando o ar como se tivesse alguma parede invisível.

- Do que está falando? - diz Ariadne, sem tirar o sorriso dos lábios - Não há barreira nenhuma! Você só precisa vir até aqui!

 Monalisa tenta se aproximar novamente, mas falha mais uma vez. O que estava acontecendo?

- Eu...eu não consigo....

- Você não consegue? Ou será que não quer? - agora Ariadne parecia mais séria.

- Como assim?

- Não tinha barreira nenhuma antes de você chegar - responde a ruivinha - Será que não foi você mesma quem fez isso?

 Nisso, Monalisa sente o chão de água realmente virar água. Ela estava afundando. Iria se afogar? Iria se perder no meio da água e da escuridão, afastando-se da única centelha de esperança que havia naquele lugar? Foi o que ela pensou antes de abrir os olhos e se encontrar segura em seu quarto. Mais um pesadelo.

"Nossa", pensou ela, "Esse pareceu bem real!"

 Imediatamente, a loirinha acende seu abajur e anota todos os detalhes do sonho antes que se esquecesse. A escuridão, a solidão, o desespero, a esperança, a barreira misteriosa e o mergulho nas águas. Era o segundo sonho onde Ariadne aparecia, com a diferença de que agora não era a ruivinha quem morria e sim ela mesma. O que isso poderia significar? Sua única certeza era de que aquele sonho era importante.

- Algum problema? - diz a voz de Eleonora na porta de seu quarto vestindo seu roupão. Se Monalisa não tivesse um bom controle emocional teria gritado alto, mas apenas sente um calafrio em cada célula do seu corpo. Tente se colocar na situação dela e ter sua própria mãe como inimiga e você vai entender.

- Mãe...o que está fazendo aqui? - pergunta a garota.

- Apenas acordei para usar o banheiro - responde ela - Vi um barulho no seu quarto e pensei que estivesse precisando de alguma coisa.

- Não...não preciso de nada...só...lembrei de uma coisa que precisava anotar - diz a menina, sabendo que qualquer desculpa que inventasse seria inútil, mas para manter a encenação do Labirinto era melhor fazer as coisas desse modo.

- Se é assim - diz ela, sem enrolar mais - Boa noite

- B-Boa noite - gagueja Monalisa, surpreendendo-se com o fato de nem ao menos perceber que sua mãe abriu a porta. Mas parece que Eleonora ainda permanecia como a mãe introvertida. Ainda assim, todo cuidado era pouco. 

 Monalisa guarda seu caderno, apaga a luz do abajur e, antes de pegar no sono, tenta refletir um pouco sobre seu sonho. Ele envolvia apenas Ariadne, então já sabia quem estava envolvido, o que era ótimo. Sinal de que não precisaria de tantos rodeios para chegar até a guia. Contudo, como poderia interpretar o que aconteceu?

 Nisso, ela se lembra das palavras do Mestre dos Relógios de que, mesmo sendo o único agente inconsciente do Labirinto, ela ainda podia dar conselhos corretos. Isso mesmo. Poderia falar com Ariadne sem mencionar o Labirinto mas tirar alguma informação útil dela. Isso era possível.

  "É isso!", pensou ela, "Só preciso fazer o contrário do que fiz da última vez...a partir de agora vou fazer de tudo para me aproximar de Ariadne ao invés de evitá-la. Tudo mesmo!"


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