Treina Comigo escrita por Carlos Abraham Duarte


Capítulo 4
Bullying + Vampire


Notas iniciais do capítulo

Cá para mim, se existisse na vida real uma criança japonesa com as características físicas da Omote-Moka - pele branquinha de porcelana, cabelos cor-de-rosa e olhões verdes - , e ela estudasse numa escola japonesa do ensino fundamental, onde 99,99% das crianças têm pele moreno-amarelada, cabelos escuros e olhos oblíquos castanho-escuros, como seria ela tratada pelos coleguinhas? E se sua mãe fosse "gaijin", estrangeira?
Todo e qualquer personagem retratado ou citado neste capítulo, e que não seja de R+V, regular ou não, é MEU personagem, criado por mim.



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Na manhã seguinte Tsukune saiu mais cedo de seu quarto no dormitório masculino e desceu para o saguão principal. Queria usar o telefone para ligar para a casa paterna, no Ningenkai, o mundo dos humanos. "Já faz mais de uma semana que eu e o pessoal lá de casa não nos falamos", pensou, sentindo saudades de sua mãe e de seu pai, e até da prima Kyoko. Usando um cartão telefônico pré-pago, teclou o número de casa. E Kasumi Aono, sua mãe, atendeu o telefone. Puseram a conversa em dia e ele prometeu dar uma passadinha em casa, antes do final das férias de verão. (Era curioso pensar que sua mãe se achava a barreiras dimensionais de distância, mas que os aparelhos telefônicos e de fax da escola, um misto de tecnologia e magia, eram capazes de transpor a kekkai e conectar uma pessoa na Youkai Gakuen com outra no Ningenkai. Chu!)

No saguão Tsukune foi cumprimentado gentilmente por duas colegas com as quais mantinha relações amistosas desde o ano letivo passado, Momoko Tsuda e Nanoha Saiga. Visualmente, ambas poderiam ser confundidas com mocinhas japonesas de aparência absolutamente comum, de seios pequenos e poucas curvas, tez moreno-amarelada, olhos fortemente oblíquos e cabelos curtos pretos e lisos (indiferentes à moda gal e ao "estilo mangá" em voga no Ningenkai), exceto pelo hábito censurável de a todo o momento negligenciar as regras da escola que obrigavam os youkais a viverem sob suas formas humanas. Momoko era uma rokurokubi que esticava a sua cabeça sobre um pescoço tão longo quanto uma anaconda, ou uma píton-reticulada. Nanoha era uma futa-kuchi-onna que possuía duas bocas, a normal e uma outra na nuca, por baixo do cabelo, com lábios, dentes e uma língua muito vermelha de dois palmos de comprimento. E, contrariando a crença popular sobre tais demônios gerados pelo carma, elas não eram nem um pouco tímidas.

Tsukune não pôde deixar de sorrir. Quando as viu pela primeira vez, cerca de um ano e maio atrás, elas lhe causaram medo e repulsa. Agora, porém, ele as considerava "boas amigas", se bem que - naturalmente! - não no mesmo patamar que Moka, Kurumu, Yukari e Mizore. "A tudo a gente se habitua", ponderou com seus botões. Talvez representasse um de muitos passos na longa senda da compreensão e da aceitação mútua, futuramente, entre youkais e seres humanos. (Mas Tsukune recordou-se casualmente de outro rokurokubi nada amistoso que conhecera logo depois de ingressar na Academia Youkai: Nagai Kubisaku, líder do Fã-Clube de Yukari Sendo, e que, junto com o noppera-bo Gouzaburou Taira, líder do Fã-Clube de Kurumu Kurono, e com o karakasa-obake Kouzou Kasahara, líder do Fã-Clube de Moka Akashiya, não perdoava a imensa estima de que o jovem humano gozava junto às suas "deusas", chegando a ponto de hostilizá-lo em público e surrá-lo. Bullying , ou ijime, como se diz no Japão. Chu!)

- 'Dia, Tsukune-kun - saudou-o rapidamente uma youkai-gato, um tanto bonita, de pele morena, cabelo preto curto, olhos azuis-esverdeados, orelhas de gato negras e uma longa cauda negra também. "É outra que não dá a mínima pras regras", ele pensou, divertido, já antevendo o esporro que ela levaria de Ruby, a inspetora de plantão. Mas então foi a meiga voz de loli de Moka, Omote-Moka, tal como fazia todas as manhãs:

- Bom dia, Tsukune.

Ele virou-se para encará-la. - Bom dia, Moka-san. Desceu mais cedo pro refeitório?

- É sim. E você? Telefonando pra sua mãe?

O sorriso dela era puro alto-astral.

- Ah, eu tava sim. É bom não perder o contato com a família. E a sua mãe, Moka-san? Você nunca fala dela.

Uma sombra de tristeza perpassou fugaz pelo olhar esmeraldino de Moka.

- Minha mãe... Minha mãe desapareceu de casa pouco antes de eu ir pro Ningenkai. Ninguém sabe como nem por quê. Eu mesma quase não me lembro dela. Tudo que me restou foi este rosário. - Moka apertou com delicadeza a cruz brilhando em seu pescoço.

- Me perdoe, Moka-san.

- Tudo bem, Tsukune. Vamos tomar nosso café da manhã?

- Vamos.

Ele não conseguia desviar os olhos do corpo dela. Pensava na "outra Moka". E mentalmente fazia comparações: "A Moka-san na forma de Ura-san parece mais madura, mais sexy... A bunda e os peitos ficam maiores, mais cheios..."

Tapa mental. "Seu pervertido", recriminou-se em silêncio por tais pensamentos.

Naquela hora da manhã a cafeteria estava praticamente vazia; nem sinal de Kurumu, Yukari e Mizore. Tsukune e Moka fizeram seus respectivos pedidos à moça do balcão, e, após isso, receberam suas bandejas com o tradicional asagohan: sopa de pasta de soja, arroz, sashimi, legumes em conserva e chá verde; igualmente, cada um recebeu um par de hashis de plástico à guisa de talheres. Moka, a título de extravagância, pediu também panquecas com mel e torradas com geleia de morango.

- Eu sou meio-inglesa e meio-japonesa, sabe - ela justificou para Tsukune, com uma piscadela e um sorrisinho maroto.

Eles escolheram uma mesa bem no meio do refeitório, e sentaram-se frente a frente para comer. Ninguém se dignou a reparar num homem de aparência corriqueira que chegou depois deles, encaminhou-se para o balcão, fez seu pedido, pagou e apanhou a bandeja com a comida, indo sentar-se numa mesa no canto norte do refeitório.

- E aí, Tsukune, quais são as novidades da casa da família Aono? - perguntou Moka, alegremente. Pegou uma panqueca, entre o polegar e o médio da mão delicada, dando uma mordidela com cuidado; era coberta de mel e posta para gelar, tendo formado a camada crocante por cima da massa macia e açucarada. (Simplesmente irresistível, de-chu!)

- Tem um montão de cartas do Brasil pra mim - respondeu Tsukune, com a maior naturalidade do mundo, enquanto esvaziava sua tigela cheia de arroz com o par de hashis. - A Kyou-chan ficou de trazer pra mim na semana que vem. Além dos niguiris como só a mamãe sabe fazer, é claro. (Sendo a única humana a conhecer o segredo da Escola Youkai, somente Kyoko Aono, prima de Tsukune e amiga das amigas deste, tinha o privilégio de ir e vir entre os dois mundos, atravessando a kekkai no ônibus escolar. Chu!)

- Cartas do Brasil? - repetiu Moka, destacando as sílabas. - E desde quando o Tsukune conhece alguém que more no Brasil?

Naturalmente que Moka Akashiya estava ciente - por intermédio das aulas de geografia - da existência de um grande país chamado Brasil, que ficava num continente ou subcontinente chamado América do Sul, no hemisfério ocidental do globo terrestre - do outro lado do Mundo. Sabia que se tratava do maior país sul-americano, quinto maior do planeta em área territorial e população, além de ser o único país das Américas onde se fala português e de ser uma das nações mais multiculturais e multirraciais do mundo, inclusive com a maior comunidade de nipo-descendentes fora do Japão. Mas era tudo estatística, dados, informação didática sem qualquer utilidade prática para ela, no dia-a-dia, além das paredes da sala de aula. Pelo menos até agora.

- Conheci há mais ou menos um ano atrás - respondeu Tsukune, que não gostava de comer com hashis de plástico por serem escorregadios e mais difíceis de manejar que os tradicionais sugi-bashi, de madeira, ou os novos e descartáveis waribashi. - Lembra dos seis meses em que a escola ficou fechada, e eu voltei pro mundo dos humanos? Pois é, foi quando eu conheci a Ana-san, uma garota brasileira de 17 anos. Ela contou que tinha vindo pro Japão pra trabalhar como modelo, em Tóquio, mas foi iludida com uma falsa promessa. Foi aliciada, raptada, vendida, obrigada a se prostituir... Horrível, simplesmente horrível! Mas eu ajudei a Ana-san a fugir dos bandidos, da máfia da prostituição... - Fez uma pausa, recordando-se da surra monumental que dera nos criminosos, usando sua força de ghoul. - Eles acabaram sendo presos, e então eu e a Kyou-chan ajudamos a Ana-san a entrar em contato com o Consulado-Geral do Brasil em Tóquio. Tudo ficou bem e ela pôde voltar pra casa. E ficamos todos amigos. Resumindo bem resumidamente, foi o que aconteceu. (Algum dia a história de como Tsukune Aono salvou a brasileira Ana Francisca Benzaquen de Araújo Lima e se tornou seu amigo poderá ser contada, de-chu!)

Moka olhava maravilhada para o amigo meio-mortal. Tsukune, um herói, defensor dos fracos e oprimidos, salvando mocinhas indefesas, chutando traseiros de malfeitores, quer no mundo dos humanos, quer dos youkais! E sem o auxílio de ninguém!

- É, muitas e muitas coisas aconteceram, como diria a Ruby-san, durante todos aqueles meses... - suspirou a bela e jovem kyuuketsuki, servindo-se de um bolinho de arroz em forma de triângulo envolto por uma folha de nori. - Me fale dessa Ana, Tsukune - pediu, em tom neutro. - Ela é humana, né?

- É sim, Moka-san - disse ele, sorvendo tranquilamente o chá. - Tenho certeza que você ia gostar dela. Inteligente, meiga, sensível, comunicativa e alegre, apesar de tudo que sofreu e com quem conviveu no nosso país. Mora com a família numa cidade chamada Belém do Pará, tem orkut e MSN, mas prefere escrever e receber cartas. E como eu não falo português e ela só arranha o japonês, a gente aprendeu a se entender em inglês mesmo.

- Bonita?

Tsukune por pouco não engasgou com o chá.

- Eh... Julgue você mesma: morena cor de canela, tipo gyaru, estatura mediana, esguia, nem magra nem gorda, cabelo negro longo e cacheado, olhos grandes, castanhos cor de mel, seios e glúteos iguais aos da Kurumu-chan. Pelo menos os brasileiros gostam.

- Ela não se apaixonou por você? Que nem a Kurumu-chan e as outras?

- Kami-sama, não! - Tsukune riu. - Ela é uma boa amiga, só isso.

- Compreendo - disse ela. - Tsukune sentia falta de ter amigos humanos, né?

Ele pensou um pouco. - Acho que sim - disse finalmente. - Não me entenda mal, Moka-san, eu adoro todas vocês, minhas amigas youkais, mas... pô, eu cresci no mundo dos humanos, minha mãe e meu pai e a Kyou-chan moram lá, e é pra lá que eu quero voltar depois que nos formarmos... Moka-san, você tá bem?

Ela sorriu, tímida e envergonhada. - Tudo bem, Tsukune. Só que, às vezes, eu fico pensando... me lembrando da minha vida no Ningenkai, no meio dos humanos, até o fim do ginasial... Antes de te conhecer. Solitária, isolada, me sentindo uma aberração da natureza.

- Eu sei, eu sei. Você me falou como odiava as pessoas de lá, odiava os humanos por se considerar uma excluída, uma pária no meio deles. Uma "não-pessoa". Uma youkai obrigada a se esconder no mundo humano que negava a própria existência dos youkais.

- Mas não era só isso. Eu nunca te falei que havia uma "galerinha" na escola que me atormentava por causa da minha aparência física. Meu cabelo, meus olhos... Eu não parecia uma japonesa de verdade. Era completamente diferente das outras crianças da escola.

Num primeiro momento, Tsukune ficou surpreso. Habituado que estava, como tantos jovens nipônicos, ao "estilo otaku" de cabelos tingidos e lentes de contato coloridas que aumentam o tamanho dos olhos, parecia-lhe chocante a ideia de se discriminar alguém pela forma e cor dos cabelos e dos olhos. No entanto, depois de refletir, chegou à conclusão de que uma criança com o biotipo da Omote-Moka, de olhos verdes e cabelos cor-de-rosa, pareceria inevitavelmente deslocada entre as crianças japonesas normais do Ensino Fundamental, quase todas de olhos e cabelos negros ou castanho-escuros. E ele não ignorava quão preconceituosas as crianças podiam ser, ou, pelo menos, algumas delas, em relação ao "diferente" (porque assim lhes foi ensinado, inculcado).

A pele de "boneca de louça" de Moka, muito branca, tipo bihaku, tão decantada pela preferência nacional dos japoneses, tanto podia suscitar olhares de cobiça e desejo quanto de inveja e rancor. (Taí uma faceta da vida da Moka-san que o Tsukune-kun jamais imaginou existir, de-chu!)

- Às vezes me perguntavam se eu pintava o cabelo de rosa e usava lentes de contato verdes, do tipo Anime Eyes - ela prosseguiu com a voz átona. - Eu respondia que não, que meus olhos eram verdes e meus cabelos rosados de natureza. Porque a minha mãe era estrangeira, da Inglaterra, e eu parecia com ela. Então passaram a me zoar, me achincalhar em coro... me chamando de "gaijin" e de "mestiça". E ai de mim se ousasse abrir a boca pra revidar! Ah, Tsukune, eu era a criatura mais infeliz na face da Terra!

"Bullying", pensou Tsukune com desagrado. Já testemunhara inúmeras vezes, até na velha Hikonari Chugakko, onde estudara até o ginasial, a realidade da violência nas escolas japonesas, em particular contra os filhos de estrangeiros, mestiços, etas, enfim, todo aquele que não lograsse se enquadrar nos padrões exigidos por uma sociedade preconceituosa. Porém, saber que Moka, a sua doce Moka, fora igualmente vítima dessa prática condenável e odiosa enchia Tsukune de indignação. Malditos xenófobos!

Pensou em Ana Francisca, sua nova amiga brasileira, cruelmente maltratada pelos colegas da escola japonesa onde estudava por ser de origem estrangeira e ter a pele morena, trabalhar como top model e sorrir "em demasia", alegre "demais" - tal qual uma ganguro de antigamente... Enganada, raptada e entregue à máfia da prostituição pelos canalhas cheios de preconceitos da escola... Tsukune sentia-se envergonhado, como ser humano e como japonês, por tudo de mau que a moça sofrera durante sua estadia no Japão.

Por quê, afinal? Vezes e vezes sem conta ele se fez essa pergunta. Humanos ou não, orientais ou ocidentais, pretos ou brancos... Não somos todos reflexos da mesma Luz? Não é um mesmo o Pai de todos nós? Por que razão, então, tanto ódio, incompreensão?

Moka percebeu o desconforto de Tsukune. Sem pensar duas vezes, colocou a mão no rosto dele carinhosamente, e disse: - Foi por isso que eu fiquei do seu lado, Tsukune, desde o princípio, aqui na Academia Youkai. E também saí em defesa da Yukari-chan, quando todo mundo, até você, estava contra ela. Porque eu sei o que é ser discriminada, aprendi na própria pele. Bullying nunca mais! Nunca mais, com ninguém!

- Domo arigato... Obrigado por ser minha amiga, Moka-san.

Ele hesitou antes de decidir não retribuir a carícia. Vendo que constrangia o amigo, Moka resolveu mudar de assunto. Disse: - E que tal o primeiro dia de treinamento com a Ura-chan? A "outra eu" não pegou leve com você, certo Tsukune?

- Pegar leve? - Tsukune repetiu, rindo. - A "outra você" pegou pesadão! Meu pobre queixo que o diga... - ele passou a mão no maxilar inferior. - Você não lembra de nada?

Moka deu uma dentada numa das suas panquecas. - Lembro... em certa medida. Escuta, quando a Ura-chan desperta e assume o controle eu não "apago" de todo, mas fico apenas com uma vaga consciência, ou estado alterado de consciência, como num transe. E só posso me recordar do que a "outra eu" fez ou falou como se fosse um sonho. Acredito que ela tenha uma percepção interna semiconsciente, ou extrassensorial, das pessoas e coisas mesmo quando dorme e eu assumo, mas não sei ao certo. Ela não me conta tudo, nem sequer quando "conversamos" por telepatia usando o rosário como "link mental". - Apanhou outra panqueca e a ofereceu a Tsukune. - Servido?

Tsukune agradeceu, e, tentando imitar Moka, besuntou de geleia de morango a pequena panqueca antes de mordê-la. - Hmmm... É deliciosa - disse ele, dando outra mordida devagar e levemente. - Eu nunca provei nada igual.

- Chama-se pikelet, e é uma típica panqueca escocesa, embora seja muito popular na Austrália e na Nova Zelândia - explicou a sorridente Moka. De repente, o semblante bonito da garota vampira voltou a ficar sério. - Tsukune, me perdoe se durante o treino eu... digo, a "outra eu", te trato com brutalidade, te machuco e ainda fico falando coisas cruéis pra você. Eu sinto tanto, mas tanto mesmo! Por favor, me perdoe!

Tsukune fez um gesto apaziguador. - Ah, deixa disso! Não fique se culpando pelo que a Ura-san fez ou falou durante os treinos. Quem sai na chuva é pra se molhar, certo? E se colocou a mão no fogo, é pra se queimar. Eu sabia direitinho no que estava me metendo quando topei treinar com ela, sabia que seria a maior dureza. Mas, por você, Moka-san, e pela Kurumu-chan, Mizore-chan e Yukari-chan, eu vou ahuentar firme. De mais a mais...

Ele estacou e fitou-a ternamente. - De mais a mais, seja Omote ou Ura, a Moka-san continua sendo a Moka-san. Vocês duas são importantes pra mim. No fundo a Ura-san também me quer bem, só que de um jeito diferente. Eu sei. Tenho aprendido muito com ela.

- Ao menos, a Ura-chan te ensinou a usar o youriki pra sarar as feridas e o maxilar quebrado, né? Quero dizer, no fim das contas, eu te ensinei... a outra eu.

- Pois é, você, Moka-san, me ensinou. Sou muito grato por me ajudar no meu treino.

Não obstante... Um sentimento de insegurança foi tomando conta dele. Omote ou Ura... Qual das duas é a verdadeira Moka Akashiya?

A outra, o youkai violento e cruel? Ou esta, a mais sentimental, mais "humana"?

Uma parte do cérebro de Tsukune logo se lembrou com clareza e fartura de detalhes de uma conversa entre ele e Moka, pouco depois de ambos entrarem na Academia Youkai:

(Flashback)

Moka: Tsukune... Diga-ma a verdade... Se o rosário perder o efeito... e se o selo um dia não funcionar mais... você ainda vai gostar de mim?

Tsukune: É claro que vou! Eu não me importo se você ficar de dar medo ou sugar meu sangue! Para mim, você será sempre a Moka-san!

(Fim do flashback)

Mentira deslavada! Podia enganar a todos, mas era impossível enganar o seu "eu" interior. Apesar de não desgostar da Moka vampira de cabelos de prata, apesar de admitir com relutância que ela o atraía fisicamente - ainda assim, a mera possibilidade de perder a gentil Moka dos cabelos rosa, de que ela simplesmente sumisse, para nunca mais retornar, a simples ideia o fazia sentir-se mal. Deus, Pai misericordioso e clemente, não o permita!

A voz de menina de Moka trouxe o foco de atenção de Tsukune de volta ao Agora. - Ei... Tsukune, tá na hora da gente ir pra aula.

Tsukune assentiu. - Tá legal, vamos nessa.

Levantaram-se da mesa e levaram suasrespectivas bandejas de volta ao balcão. Em seguida, com as mochilas a tiracolo, encaminharam-se para a saída da cantina.

Entrementes, o "homem comum" sentado à mesa no canto norte não tirava os olhos do jovem par; au contraire, acompanhava todos os seus movimentos com um interesse frio e desapaixonado. Ou, ao menos, assim se esforçava por fazê-lo.

- Hum! - fez o estranho em voz baixa. - Aono-san, Akashiya Moka-san... Interessante, muito interessante.

************

- Moka-san, me morda!

- Tsukune?!

- Eu sei que você quer. Então, pode me morder.

- Tsukune...

Moka não se fez de rogada. Afinal, não era todo dia que Tsukune se oferecia espontaneamente para ter seu sangue sugado por ela. - Itadakimasu - ela murmurou com meiguice, passou ternamente os braços em volta dos ombros do rapaz e aproximou a boca do pescoço dele, para alongar seus caninos e cravá-los na carótida direita que pulsava sob seus lábios róseos e macios.

Kappu-chuuuuu!!!

(O êxtase sensual, para um vampiro ou vampira, em boa parte advém do fato de ele ou ela estar bebendo o sangue da pessoa amada, de-chu!)

Depois que Tsukune a saciou, Moka se dispôs a abrir um pequeno corte em seu próprio dedo, de modo a deixar seu sangue pingar em cima da mordida, assim fazendo desaparecer as marcas de perfuração no pescoço do mancebo (sendo os vampiros imortais por natureza, seu fluído vital possui incríveis propriedades regenerativas e de cura para os humanos). Mas Tsukune a deteve, dizendo:

- Moka-san... Agora olha o truquezinho.

E em questão de segundos as duas minúsculas perfurações fecharam-se e sumiram sem deixar vestígio na carne trigueira do jovem estudante.

- Gostou? - perguntou ele.

- Muito bem feito, Tsukune - disse Moka, sorrindo.

- Agora já posso curar ferimentos leves, fazendo o sangue fluir até a área afetada, só com a força de vontade - explicou o moço. - Mas isso não é nada. Tenho certeza que, com o tempo e mais treinamento, meu corpo será capaz de se regenerar rapidamente de toda e qualquer lesão, que nem um semivampiro, ou pseudovampiro. E ficar mais forte.

Era perceptível a satisfação e o orgulho de Tsukune ao dizer isso.

Os dois iam andando pelo amplo corredor, na direção da sala de aula 2-1, onde estudavam juntamente com  Kurumu, Mizore e Yukari. Moka quis responder algo do tipo "eu vou te ajudar", mas outra voz feminina que lhes era familiar, escandalosamente alta e carregada de emoção e alegria, se fez ouvir:

- TSUKUNEEEE! BOM DIA!

- Ku... Kurumu-chan!? - Tsukune balbuciou, quase sufocando (mas inegavelmente excitado) entre os vastos e generosos seios da bela súcubo de tez clara, cabelos azulados e olhos violeta que usava um pulôver por cima da camisa do uniforme escolar. A doce e apaixonada Kurumu apertava com ternura a cabeça do amigo humano/ghoul contra os peitos dela, macios e firmes, afagando-lhe os cabelos escuros, tal como fazia, entusiasticamente e com uma regularidade quase religiosa, dia após dia.

- Aaaah! Kurumu-chan! - exclamou a indignada Moka, ardendo de ciúmes (como sempre) por causa da garota-demônio cuja raça é mestra em invadir os sonhos dos homens para ter relações sexuais com eles e drenar-lhes a energia vital. Kurumu, entretanto, já não agia como uma súcubo desde que se apaixonara por Tsukune, preferindo conquistar a afeição e o amor do seu "escolhido" em condições idênticas às de uma mulher humana, comum, normal, tendo abdicado de seus poderes de sedução holochacral.

- Kurumu-chan, você não se cansa de fazer isso sempre, todo santo dia? - indagou Moka impaciente, revirando os orbes verdes.

- O Tsukune aqui não reclama nunca - replicou Kurumu, ainda aconchegando a cabeça do jovem humano sobre os seus seios enormes; a voz dele praticamente sumira, reduzindo-se a um murmúrio quase inaudível, e, descontrolado, começou a apalpar a carne do busto avantajado da súcubo com as mãos (experimentando a rigidez dos mamilos). - Também, quem manda ficar bancando a puritana boba em vez de ir à luta, como eu faço?

- Puritana boba, eu?! - Moka, com o rosto vermelho, esteve prestes a dizer que ela e Tsukune tinham passado uma noite inteirinha juntos e até dormido na mesma cama, meses atrás. Mas preferiu se calar.

Tsukune, já livre do amplexo asfixiante de Kurumu, colocou-se entre esta e Moka. - Tudo bem, tudo bem, meninas - contemporizou, ruborizado e sorrindo meio sem jeito. - Se não agisse assim não seria a Kurumu-chan que conhecemos e amamos. Eu aceito isso.

- Tá ouvindo? - exclamou Kurumu numa alegria triunfal. - Tsukune me ama!

Foi nesse instante que uma grande bacia de bronze materializou-se em pleno ar, exatamente acima da cabeça de Kurumu. Tsukune e Moka viram o pesado utensílio mágico cair ao chão, cobrindo a súcubo e deixando um belo galo em seu cocuruto.

- Yukari-chan! - exclamaram em coro os três amigos.

- Euzinha mesma, desu! - disse a pequena majo de olhos lilases e rosto travesso, com sua voz infantil. Estava paramentada, como sempre, com suas roupas do culto das bruxas europeu (capa preta e marrom, símbolo da força telúrica, e o chapéu pontudo de aba larga, que capta energia prânica do éter cósmico, mandando-a para o chacra coronário) e, na mão direita, a indefectível vareta mágica feita de marfim e madeira de aveleira com o Selo de Salomão na extremidade e um cristal de quartzo azul. - É só eu virar as costas que essa demônia peituda já vai se agarrando com você, pobre Tsukune!

Tsukune torceu a boca numa careta habitual. Kurumu e Yukari implicavam uma com a outra rotineiramente, porém sabiam se unir num piscar de olhos quando uma delas, ou Tsukune, ou Moka, ou Mizore, corria perigo. O amor por Tsukune transformara as rivais em amigas e irmãs dispostas a arriscar a pele umas pelas outras tanto quanto pelo amado.

Um repentino sopro de vento gelado varreu o corredor e fustigou todos quantos se encontravam fora das salas de aula, fazendo-os tiritar de frio. Tsukune, Moka e suas amigas sabiam que era a marca registrada de Mizore, a garota do gelo.

- Mizore-chan...!

- Um dia - falou a yuki onna, sem entonação na voz - eu vou mostrar pra todos o elo de ligação entre Tsukune e eu. Vocês vão ver, e especialmente você, Moka-chan. - Seus longos olhos, de um azul profundo e brilhante, e o cabelo roxo-escuro cintilante contrastavam com a pele branca e lisa como a neve fresca. As meias de esqui listradas e o blusão branco folgado que vestia faziam-na parecer "estilosamente desmazelada". (Na boca, o pirulito gelado que as mulheres das neves usam para resfriar seus corpos. Chu!)

As palavras de Mizore atingiram Tsukune em cheio; foi como se uma mão gelada estivesse apertando o seu estômago. A garota youkai das neves só poderia estar se referindo à relação sexual que ela e Tsukune tiveram, na calada da madrugada, num quarto secreto na casa da família dela, no País da Neve. E o que acontecerá se a Mizore engravidar? Essa era a pergunta que não saía de sua cabeça. Significaria o fim da amizade que unia o grupo.

- Meninas, já vai começar a aula, vamos entrar? - Ele chamou-as, pegando Mizore e Kurumu pelos cotovelos, gentilmente puxando-as para o interior da sala de aula. - Moka-san, Yukari-chan, vamos nessa.

- Tsukune-san manda - disse Yukari, rindo, pegando o cotovelo de Moka. As duas entraram na sala de braços dados. - Moka-san, sabia que temos um novo professor de geografia? Ele é estrangeiro... Do Brasil!

- Não entendo - comentou casualmente um rapaz magro e não muito alto, cujos cabelos espetados exibiam uma gama desconcertante de tons de laranja, azul, verde, roxo e rosa/vermelho. - O que é que esse Aono tem pra andar cercado de tanta mulher bonita?

- Não inveje o Aono-san, é o carma dele - retrucou uma voz forte e marcante.

As palavras de admoestação saíram da boca de um homem magro e alto - cerca de 1,72m de altura - , de pele branca e nada parecido com um oriental. Seus cabelos castanho-claros encaracolados emolduravam um rosto comprido, de etnia caucasiana, onde se viam um par de olhos cor de caramelo por detrás das lentes retangulares dos óculos de aro prateado, nariz aquilino e um tanto proeminente, e lábios relativamente finos. Vestia blazer esporte fino, preto, camisa gola V, lilás-uva, calça jeans azul-escura e sapatênis marrom-tabaco. Um cordão de ouro donde pendia um Magen David, também de ouro, era visível pela abertura da camisa.

- Lino Tadeu de Oliveira Pires, mas podem me chamar de Pires-sensei - falou o desconhecido, como se estivesse se apresentando. Ele empurrou os óculos com a ponta do dedo indicador. O seu semblante tornou-se duro. - E não tolero bullying, preconceito ou qualquer forma de perseguição. E ai de quem tentar!


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Notas finais do capítulo

Aqui termina mais um capítulo. É, parece que o CARMA do Tsukune inclui (como diz a Yukari-chan num dos capítulos) "compartilhar a cama com elas todas" e "tentar fazer todas elas felizes". Será?
E eis que um novo (ou não tão novo) personagem está para entrar na história. Qual a sua real participação nos destinos de Tsukune e suas amigas?



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