Diario de um Semideus 2 - As Portas da Morte escrita por H Lounie


Capítulo 15
A princesa do gelo




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No momento em que abri os olhos percebi que havia algo realmente errado ali. Estava frio na cidade do sol e do calor. Ventos gelados atravessavam meu corpo e me faziam tremer. Eu já não tinha mais o abraço protetor de Nico a minha volta, aparentemente a comida que Luke havia trazido agora estava rodopiando no ar, com todo aquele vento. Olhei para o lugar onde havia deixado o carro de papai e ele não estava mais lá. Estava torcendo para que Apolo o tivesse levado.

Ao me levantar percebi um peso extra na pequena mochila que levava comigo. O presente de papai. Levou mais alguns segundos para que eu processasse o que estava acontecendo em minha frente.

A primeira coisa que percebi foi que meus companheiros de missão lutavam contra aquele vento. A segundo coisa que percebi foi que aquilo não eram simples ventos, eram ventus, espíritos da tempestade. Haviam rostos no meio daquelas espirais negras de vento, formas e até sorrisos brilhantes e assustadores.

– Anemois. – Não foi mais que um sussurro, mas o espírito mais proximo pareceu ouvir. Abandonou a luta com Luke e veio até mim, soltando uma gargalhada que mais se parecia com um tornando levantando um carro e o desintegrando.

– Estou tão feliz por tê-la encontrado semideusa, minha senhora ficará mais do que satisfeita. – Os olhos da criatura pareciam relâmpagos enquanto eles focavam em mim. O cheiro de ozônio enchia o ar e quando dei por mim, estava sendo levantada e carregada pela brisa gelada. Em algum momento enquanto era carregada para cima, ouvi os protestos altos dos outros lá em baixo, senti meus olhos fecharem e apaguei, enquanto era levava para o norte pelos ventus.

Naquele estado de entorpecimento, eu ouvia vozes distantes. Não sabia dizer se eram Luke e os outros gritando ou se eram os espíritos conversando, porém eu não conseguia distinguir uma palavra se quer. Havia vozes demais se misturando em minha mente, sussurrando coisas, como se me dissessem o que fazer.

Havia também uma imagem de uma mulher fugindo com uma criança nos braços, uma mulher linda, que cantava baixinho, com uma voz que eu jurava conhecer. Não se preocupe minha pequena, eu vou proteger você, cantarolava a mulher, aninhando mais ainda a criança nos braços. Então Apolo surgia na frente dela e tomava a criança de seus braços e a levava-a na direção oposta a que ela antes seguia, a cena então mudava, surgia uma mulher morena, alta, com olhos verdes brilhantes, aquela que em nada se parecia comigo, mas que eu sabia ser minha mãe. Ela pegava a criança dos braços de Apolo e sorria, mas no fundo ainda parecia triste com algo. Eu vou proteger você, dizia ela para a criança. Em seguida surgia a imagem de algo que eu tinha guardado na memória, minha mãe sorrindo, mas mesmo assim triste, como quando pegou aquela criança no colo, parada ao lado de meu pai que sorria para mim, nas escadarias em Delfos. Por fim, a mão de um homem estendia uma maçã em minha direção. É exatamente você quem vai quebrar esta prisão, dizia a mesma voz que cantava para a criança, a voz que eu conhecia. Você é uma conseqüência do amor, dizia a voz de Apolo. Com uma condição, quando chegar a hora, vou pedir que traga algo para mim. Um precioso amuleto. Sussurrava a voz de Hécate. E a imagem voltava a se repetir desde o inicio...

– Acordem-na inúteis. Não pedi que os espíritos a trouxessem para que ela ficasse aí, desacordada.

– Mais irmã, nós...

– Agora.

Duas pessoas se aproximaram de mim, movimento-se com passadas desajeitadas e barulhentas.

– Ei, garota! – Disse um deles, baixinho.

– Nada bom, nada bom. Mais desses semideus, papai não vai gostar. O que Quine está pensando? E poxa vida, essa é ainda mais bonita do que a que esteve aqui ha poucos dias.

– Sim, sim, como esquecer a jovem Piper de Afrodite, ela parecia tão perfeita montada naquele dragão de bronze gigante. – Ao ouvir o nome de Piper, comecei prestar mais atenção conversa. Ela havia saído em missão com Jason e Leo, estavam viajando no dragão de bronze - Tão adorável. Ei, talvez Quione nos deixe ficar com essa depois que ela terminar o que quer que vá fazer.

– Isso depende, eu prefiro ela viva. Pense só nas possibilidades. Poderíamos dividir. Você fica com ela nas segundas, quartas e sextas, eu fico nos outros dias.

– Ei, eu prefiro os fins de semana! Acho melhor...

– É melhor que não estejam falando sério. Sabe, não sou dessas aí. – Disse, sentando em... gelo? Aquilo era realmente frio, mas o que me incomodou mais não foi o lugar gelado, mas a aparência das criaturas que estavam tentando decidir quem passaria o fim de semana comigo.

Os dois garotos eram enormes e tinham cabelos brancos e assas – isso mesmo, assas – roxas, como plumas. O mais alto e mais assustador sorriu, havia vários dentes faltando.

– Eu sou Calais. – Disse ele, como se eu tivesse perguntado. – E esse é meu irmão Zetes.

Olhei para o tal Zetes e não pude conter o riso. O garoto, além do sério problema de acne, se vestia como um figurão do rock dos anos oitenta.

– Então, onde eu estou?

Zetes deu um empurrão em Calais e segurou em minhas costas, ajudando-me a ficar em pé.

– Como Cal disse, eu sou Zetes, mas você broto, pode me chamar do que quiser.

– Talvez eu te chame de idiota. Alguém vai dizer onde eu estou?

– Pode chamar, sem problema algum, nós boréades somos um povo muito romântico, de qualquer jeito.

– Espere, boréades? Então quer dizer que...

– Vocês está no reino de Boréas, semideusa. – Virei na direção da voz, era a mesma que havia mandado me acordar.

– Quem é você? – Disse, alto demais ao que me pareceu, uma vez que minha voz ecoou pelas paredes.

– Silêncio garota! Você não vai querer que meu pai ouça que você está aqui.

– E por que não?

Com um sinal com as mãos, ela ordenou que os dois garotos desajeitados saíssem. Eles acenaram e piscaram várias vezes, mas eu estava concentrada na mulher pálida e linda em minha frente. Ela parecia um tipo de princesa, com longos cabelos negros, lábios avermelhados, olhos cor de chocolate e a pela branca como a neve.

– Por quê? – Começou ela. – Porque eu disse a Éolo que seria melhor que todos os semideuses morressem. E como meu pai trabalha para Éolo, é o que ele estava fazendo. Matando semideuses.

– O que? E por que você faria isso? – Na mesma hora pensei em Piper que provavelmente havia estado ali, talvez estivesse morta agora. Jason e Leo também. – Piper e os outros estão mortos? E os meus amigos, onde eles estão?

Então a preocupação realmente tomou conta de mim. Luke, Annabeth e Nico não estavam comigo.

– Não se preocupe com a filha de Afrodite e os outros. Meu pai às vezes é tão... Argh. Quanto a seus amigos, Luke está os guiando para o templo de Hécate, em Nova York, segundo as instruções que dei a ele, e disse para que não se preocupasse com você. Mas voltando ao assunto, o importante agora não é o porquê eu ordenei a Éolo que matasse todos vocês semideuses nojentos, a questão é o porquê eu te trouxe aqui, não acha?

– Eu ia chegar nisso. Era minha próxima pergunta.

– Sei o que procura. – Disse ela depois de alguns instantes de silêncio.

– E? – Eu não sabia bem do que ela estava falando, então resolvi não arriscar.

– A vingança, claro! É tão doce, não é mesmo? Sei que está contra os deuses.

Fiquei incrivelmente aliviada quando ela não mencionou o amuleto de Hera, nem o pacto com Hécate.

– Continuo na mesma, por que não vai direto ao ponto?

A mulher me olhou com frieza, como se ela própria fosse feita do gelo da sala.

– Sabe quem eu sou? – Perguntou ela.

– Uma boréade? Aura ou Quione?

– Quione, a deusa do gelo.

Ficamos em silêncio por alguns instantes. Imaginei que Quione estivesse esperando uma reverência ou algo do tipo, mas ela que esperasse sentada.

– E então? – Incentivei-a.

– E então estamos juntas nessa, minha querida. A terra está se reerguendo, os sete irão ressurgir. E depois de tanto tempo, os malditos deuses irão pagar.

– Você é uma deusa. – Falei para ela, indicando o obvio.

– Você entendeu. Estou falando deles. Desde a Grécia... As ilhas deles eram tão quentes, nunca havia espaço para nós. Quem liga para Quione? Quem ao menos sabe que ela existe? Ninguém! Zeus, Hera, Poseidon e aquele irritando do seu pai...

Fiquei realmente tentada em perguntar quando foi que meu pai a havia perseguido, mas decidi deixar passar. Queria continuar ouvindo o que ela tinha a dizer, continuar fingindo que abraçava a sua causa, continuar fingindo que também odiava os deuses.

– Entendo.

– Para mim é fácil sussurrar coisas, palavras leves e frias, como as brisas do inverno, que simplesmente invadem a mente. Eu fiz Éolo pensar que deve matar semideuses, que eles eram a maior causa de seus problemas, que eles libertaram os espíritos da tempestade. Eu incentivei Hera a sair e cair na armadilha da terra e eu... Eu fiz Zeus fechar o Olimpo.

As brisas geladas sopravam de um lado para o outro. Tive que respirar fundo várias vezes antes de falar, uma tentativa quase inútil de esconder o meu desespero.

– Isso é bem, nossa... Eu nem sei o que dizer.

– Incrível, não acha?

– E está me contando tudo isso por...?

– Confio em você. E tenho uma missão para você. Na verdade, já temos tudo certo, mas pode haver erros, então é sempre bom ter uma segunda opção e...

– Quione, nous avons vu et que vous ne me dites pas? Bienvenu. - Saudou um homem que parecia vestido em neve, surgindo no topo de uma escada. Visita? Eu era uma visita? - Je suis Boreas, le Roi. Et vous?

Olhei para Quione, que parecia tão surpresa quanto eu.

– Papa c'est ...

Fui até a frente de Bóreas e depois de uma breve reverência, me apresentei.

– Votre Majesté. Je suis Lyra.

– Você fala francês? – Perguntou Quione, assustada.

– Não, por quê?

– Você acabou de falar.

Vous parlez français? Très bien! Outra filha de Afrodite?

– Não majestade, sou filha de Apolo.

– Ah, pensei que fosse, filhos de Afrodite naturalmente falam francês, que é a língua do amor. Mas o que faz aqui?

Eu ia falar, mas fui interrompida por Quione.

– Ela se perdeu papai, Zetes acabou a encontrando e trazendo-a aqui. Mas pode deixar, pouparei qualquer trabalho, eu mesmo me encarregarei de cuidar dela. – Ela piscou para o pai.

Bóreas sorriu com pena para mim, mas assentiu para que Quione prosseguisse com o que quer que fosse.

– Por que ele fala francês e não inglês? – Perguntei a Quione, quando nos afastamos de Bóreas que continuava a me observar com interesse.

– Ele fala a língua do seu país hospedeiro.

– Não estamos nos Estados Unidos? – Perguntei assustada.

– Não, estamos no Canadá, mas precisamente em Quebec.

– Que tal me explicar essa história de matar semideuses?

– Eu fiz Éolo acreditar que graças aos semideuses ele está tendo que trabalhar tanto para capturar todos os espíritos da tempestade que estão soltos por aí, desde a prisão de Tífon. Mas meu pai não sabe disso, ele acredita ser uma ordem direta do próprio Éolo, por isso não queria que ele visse você aqui. – Falou ela em um fôlego só.

Quione lembrava um pouco minha mãe, mas só fisicamente, pois a frieza dela era visível a distância. A neve é bonita de longe, mas de perto é fria e desagradável e Harriet não era assim. E isso me fez pensar que não via minha mãe há muito tempo.

– O que foi? – Perguntou ela.

– Não é nada, você só... me lembrou um pouco de minha mãe.

– Sua mãe? – A deusa soltou uma gargalhada. – Não, eu acho que não.

– E quanto a missão? – Falei, ignorando a reação exagerada de Quione. – O que é?

– Não há tempo. Meu pai está nos observando. – Ela sorriu para o pai. – Zetes! Leve está aqui.

Zetes apareceu sorrindo, pegando a minha mão.

– Posso ficar com ela?

– Não, apenas leve-a até o mais perto que puder do templo de Hécate, em Chinatown, Nova York. E seja rápido. E Lyra, esteja atenta.

Zetes já me puxava para fora e Quione se afastava, mas eu ainda não entendia nada.

– Espere, você me trouxe aqui para nada? E o que vou dizer aos meus amigos? Oi, me atrasei um pouco, mas estou aqui?

– Ainda está noite, Porfírio, o gigante criado para derrotar Zeus se reerguerá com a ajuda de Gaia. Se Jason, Leo e Piper falharem, Hera terá sua força tomada por ele, e a guerra irá começar. Você é nossa segunda opção, se as coisas não derem certo, você deve deter Piper McLean. Tudo acontecerá na casa dos lobos, parque estadual Jack London, em sonoma valley, Califórnia.

– E como farei para chegar lá?

– Peça ao seu amigo filho de Hades, ele jamais negaria algo a você.

A deusa sorriu e virou-se, andando até seu pai.

– E então broto, vamos?

Zetes me tomou nos braços, saindo por uma enorme porta. Disparamos pelo céu gelado do Quebec e voamos pelo que pareceu minutos.

– Sabe, você poderia ser mais esperta. – Falou Zetes de repente, apertando-me ainda mais no seu abraço.

O som de suas asas batendo era irritante, eu tinha que me esforçar para poder ouvir suas palavras.

– Ah é? E por quê?

– Por nada não.

Depois de algum tempo, começamos a descer.

– Já chegamos à Nova York? – Perguntei.

– Não, mas quero lhe mostrar uma coisa. – Respondeu-me sorridente.

A descida foi um pouco mais turbulenta que o caminho todo em si. Zetes serpenteou entre árvores e acabou por parar em uma clareira. No centro dela, havia um lago e ao lado direito do lago, uma gruta com uma cascata de água servindo de porta. Em um dos lados do lago havia apenas rosas vermelhas, do outro, apenas narcisos. Sem duvida o lugar mais incrível que eu vi.

– Onde estamos? – Aquele lugar parecia transbordar magia, e isso me levou a acreditar que talvez ali ficasse o templo de Hécate, mas aquilo não parecia Chinatown, nem de longe.

– Na divisa entre o Canadá e os Estados Unidos. Os mortais chamam de região dos grandes lagos. Mas veja, este lago por exemplo, é o lago de Hermafrodito. Já ouviu falar em Hermafrodito?

Assenti uma vez, eu já tinha ouvido falar em Hermafrodito, filho de Hermes e Afrodite. Ele estava em uma floresta quando encontrou Salmacis, uma Náiade, em sua morada numa lagoa. A Náiade se apaixonou por ele, e tentou seduzi-lo, mas foi rejeitada. Quando pensou que ela havia ido embora, Hermafrodito entrou nas águas vazias do lago. Salmacis então saiu de trás de uma árvore e mergulhou, enlaçando o moço e beijando-o violentamente. Enquanto ele lutava para desvencilhar-se, ela pediu aos deuses para nunca mais separá-los. Seu desejo foi concedido, e seus corpos se misturaram numa forma inter sexual. Essa história sempre me chamou atenção e eu sempre me lembrava dela quando sentia ciúmes demais de alguém que considerava meu.

– Esta é, como posso dizer? A versão americana da lagoa, isso. Sabia que Hermafrodito, envergonhado, amaldiçoou o lago de forma que todo aquele que se banhar em suas águas será igualmente transmutado?

– Não, isso eu não sabia, mas por que me trouxe aqui?

– Oras, porque é um lugar bonito. Bonito e romântico.

– Olha Zetes, eu não acho que...

– Shhhh, não diga nada. – Ele colocou um dedo sobre meus lábios. – Vê essas rosas vermelhas?

– Sim, são muito bonitas.

– Já ouviu falar que Afrodite era apaixonada por Adônis?

– Sim, e Ares, como amante de Afrodite, ao saber da traição da deusa decidiu atacar Adônis enviando um javali para matá-lo. O animal deu um único golpe fatal em Adônis, e o sangue que jorrou se transformou em uma anêmona. – comecei a andar por entre as rosas, seguindo próxima a margem da lagoa, sentindo arranhões por meus braços. - Afrodite, que corria por entre as silvas para socorrer o seu amante, acabou por ferir-se nos espinhos das rosas e o sangue que escorreu de suas feridas tingiu as rosas brancas de vermelho. – Terminei a pequena narração, fitando com interesse o espelho que água que se formava na entrada da gruta.

– E as mesmas rosas agora enfeitam a margem dessa lagoa de águas cristalinas. E esse escudo de água, que funciona como um perfeito espelho, dizem que é o espelho de Afrodite. Onde ela olha pelo filho e pelo amante. Mas na realidade ele esconde a caverna de Eco, a deusa se apiedou da pobre ninfa apaixonada e agora guarda sua caverna.

– Eco, a ninfa? – Perguntei curiosa.
– Conhece essa história também? – Ele sorriu, mostrando os dentes tortos.

– Sim, minha mãe costumava me contar essa história. Ela sempre me falava sobre a importância da verdade e da fala, que eu sempre deveria prezar isso e disse que eu sempre seria uma grande voz, que eu seria ouvida e que as pessoas me obedeceriam sempre, que era assim que as coisas seriam para mim.

Sorri ao lembrar-me de minha mãe. Apesar de discordar do ponto de vista dela, uma vez que achava que o maior defeito de Eco era falar demais, eu sempre lembrava de seu conselho. Repassei mentalmente a história de Eco e Narciso, junto com a de Hermafrodito, era uma das minhas favoritas. Fechei os olhos, imaginando-me no meio da cena. Eco distraindo a deusa Hera, enquanto Zeus tinha encontros amorosos com outras ninfas e mortais. Hera descobrindo o ardil e punindo a pobre ninfa tirando-lhe o dom da fala e condenando-a a repetir apenas as palavras que ouvia dos outros. Narciso, o rapaz mais bonito e mais insensível ao amor de todos os tempo deixando a ninfa apaixonada. Eco, com dificuldade, declarando seu amor como tantas outras haviam feito e ficando desesperada ao ser rejeitada, depois começando a definhar até o belo corpo desaparecer e por fim restar apenas a sua voz. Ah, o amor é sempre tão injusto. Sorri ao imaginar as demais ninfas revoltadas, clamando por vingança e sendo atendidas por Nêmesis. Então, abaixando-me perto do lago, imaginei Narciso fazendo o mesmo, contemplando a superfície da água e apaixonando-se por seu próprio reflexo. E então o fim dele.

Abri meus olhos observando meu próprio reflexo. Eu parecia exausta e frustrada.

Belle, tu ne trouves pas? Bonito, você não acha? – Falou Zetes, olhando para meu reflexo ao lado do seu na água.

Peut-être pas tant. Talvez nem tanto.

Vous parlez français? Que interessante.

Dei um leve empurrão em seu braço e voltei meu olhar para a água. Estava pronta para pedir que seguíssemos viagem quando percebi uma coisa. Além de minha imagem parecia que eu podia ver um par de olhos tristes e até um pouco esperançosos olhando para mim do fundo do lago.

– Mas o que? – O que quer que fosse parecia se aproximar. – O que é isso?

Assim que a criatura emergiu da água, Zete puxou sua espada, lançando-se para trás.

– Tão bonita. – Disse uma voz antiga como o mundo e triste como uma despedida. Tinha o corpo completamente coberto por algas e restos de pano.

– Ará! – Berrou Zetes. – Eu sabia que ela o faria sair Hermafrodito. Quanto tempo, não? Você lembra de mim e do que me fez?

– Zetes, o filho de Boréas. – Disse o homem, ainda sem tirar os olhos de mim.

Eu o olhava com uma mescla de admiração e receio. Ele tinha um rosto bonito, mas o corpo, isso eu não sabia dizer, não havia sequer uma parte visível.

– Hermafrodito? – Perguntei tímida, ele deu um leve sorriso e assentiu.

– OLHE PARA MIM QUANDO EU FALO COM VOCÊ MALDITO! – Gritou Zetes.

– O que acontece por aqui? – Falou um homem com uma voz firme e alta.

Olhei na direção de onde vinha a voz. Sobre a caverna de Eco, um homem vestido com uma armadura grega completa nos olhava com desprezo.

O homem preparou-se para descer, mas for surpreendido por algo ou alguém que o atacou por trás.

– Aquiles, até que enfim eu o encontrei. – Disse uma voz que eu conhecia. Será que era mesmo...?

Os dois começaram a lutar e em segundos caíram de cima da caverna sobre o campo de narcisos do outro lado da lagoa.

– SKY!- Gritei e ouvi meu grito ser repetido por alguém de dentro da caverna.

O grito pareceu distrair o garoto jovem e bonito que lutava para segurar o guerreiro grego. Ele olhou em minha direção e o guerreiro aproveitou o momento para derrubá-lo. Angustiada, comecei a tomar o caminho para o outro lado da lagoa, na esperança de ajudar o príncipe do mar. Senti o mais leve dos toques em minha mão, um toque feminino, e ao tentar me esquivar, vi o sorriso de Hermafrodito sumir e algo que identifiquei como raiva surgir em seus olhos.

– NÃO, VOCÊ NÃO VAI LEVÁ-LA COMO LEVOU A MINHA LOLA! – Zetes vinha correndo atrás de nós.

– Lola? – Perguntei, mas senti na mesma hora que não devia ter feito isso.

Zetes saltou sobre Hermafrodito e os dois caíram no lago. O filho de Bóreas se debatia na água, enquanto tentava impedir que Hermafrodito voltasse para perto de mim.

– Devolve minha lola, minha namorada! - gritava ele.

Contornei o lago, observando a imagem de Zetes se desfazer e algo estranho começar a se envolver em seu corpo.

– A maldição. – Sussurrei.

Hermafrodito soltou-se e saiu outra vez do lago, andando até mim com uma calma admirável, o sorriso voltando ao seu rosto. Sky parecia ter retomado o controle da briga, segurava o guerreiro pelos braços.

– Sky, jogue-o na lago.

O garoto me olhou assustado, mas decidiu fazer o que eu disse. Quando ele virou o guerreiro para empurrá-lo, pude ver que havia um colar no pescoço do guerreiro, um colar com uma chave presa nele.

‘Use a chave, destranque a porta.’ Disse meu pai. ‘Aquiles só tem parte do amuleto de Hera’.

– Espere, esse colar. Eu preciso dele. Pegue-o para mim.

O guerreiro, que devia mesmo ser Aquilo, levou sua mão até o colar, protegendo-o, enquanto que com a outra tentava se defender de Sky.

Hermafrodito corria os olhos de mim para briga e quando finalmente chegou perto, me segurou com as duas mãos e ameaçava me levar para a lagoa.

– Tão bonita. – Repetiu. – Não é justo que eu deva viver assim, não é? A culpa não foi minha. Venha comigo aqui, Salmacis não vai se importar, ela é parte de mim agora, ela entende.

– Hermafrodito, ajude-o! – Implorei. – Esse guerreiro é um homem mal. Aquela chave é minha. Ajude Sky a levá-lo para a sua lagoa.

Ele me olhou com uma sobrancelha levantada, como se ponderasse meu pedido, mas por fim, mesmo parecendo relutante, fez o que eu pedi.

Hermafrodito segurou Aquiles pelas mãos enquanto Sky puxava o colar de seu pescoço. O filho de Hermes mergulhou na lagoa, levando Aquiles com ele. Zetes continuava a gritar maldições, e quando viu que Hermafrodito estava outra vez na água, lançou-se sobre ele e Aquiles e os três começaram uma luta na água.

– Sky, temos que sair daqui. – Disse para o príncipe. Ele me olhava completamente paralisado, como se não entendesse o que estava acontecendo, o que de fato deveria ser verdade, uma vez que ele acreditava que eu ainda estava morta.

– Linda garota, volte para mim! – Lamentou Hermafrodito.

– Lyra, diga a Calais que eu estou aqui! – Gritou Zetes, lançando-se sobre Aquiles. – Devolva a minha Lola Hermafrodito!

Sky ainda estava parado, então puxei-o pela mão, correndo pela floresta até estar a uma distância que considerei segura. Assim que paramos, Sky fez algo que me surpreendeu. Me tomou em um abraço inesperado, partindo para um beijo quase violento. Porque Nico não era assim tão receptivo como ele?

– Sky, espere... Eu... – Lutei para me desvencilhar dele, até por fim conseguir.

– Lyra, me desculpe, tenho estado tão mal pelo que fiz e agora, como isso é possível? Eu não...

– Calma, calma.

Olhando para ele de tão perto, pude perceber muitas diferenças. Seus cabelos estavam um pouco mais longos e com pontas mais desiguais. Sua pele parecia queimada de sol, o que indicava que ele estava andando muito na superfície ultimamente. Sua roupa estava suja e com alguns rasgos. E ele estava ainda mais perfeito.

– Isso é uma longa história. – Disse em meio a um suspiro, enquanto admirava seu corpo. – Mas o que faz aqui?

– Estive procurando Aquiles desde que voltou, ordem do mestre Tritão. Embora eu ache que isso foi uma ordem de Poseidon. Quando voltou? – Ele passou as mãos por meu rosto, sorrindo enquanto fazia.

– Há algum tempo, nem sei ao certo. Caramba, agora eu não tenho como chegar a Chinatown.

– Por que quer ir a Chinatown?

– Preciso chegar ao templo de Hécate o mais rápido que puder, acho que meus amigos estão com problemas.

– Chinatown, isso é um pouco longe. Mas acho que posso resolver o problema.

Sky assoviou e um enorme pássaro apareceu por entre as árvores. Quando chegou mais perto percebi que não era um pássaro.

– Um grifo? Você tem um grifo. Pensei que eles pertencessem a Zeus.

– Foi um presente da esposa do lorde dos céus. Acho que ela não gostava muito de você.

– Sim ela não gostava de mim e ... Ei, você ganhou um presente por me matar? - Aquilo soou tão estranho.

Sky riu.

– Admita, você não recusaria um presente desses e mais, eu precisava dele para seguir Aquiles.

Ele estendeu a mão, incentivando-me a subir no grifo.


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