A Senhora da Montanha escrita por Josiane Veiga


Capítulo 6
Capítulo 6




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A Senhora das Montanhas

Capítulo VI

Por Josiane Veiga

Nota da Autora: A história que Live vai presenciar neste capítulo foi baseado em fatos reais. O jovem Paul Raj teve seu irmão sendo submetido a métodos de tortura apenas por pular no jardim do vizinho (que pertencia a uma casta superior). A Fonte desta história esta no site Buzznet pelo título “ A incrível historia do garoto que não podia ser tocado”, escrito por João Scarpelini.

O sol já começava a se esconder no poente quando a última criança saiu do Centro de Estudos Kamadeva naquela sexta à tarde. Live fechou a porta e passou a chave. Ouviu o barulho típico que Nicolas fazia quando estava guardando seus instrumentos de trabalho, e então tomou coragem e foi até ele.

A porta da sala de pintura estava aberta, e a jovem morena observou por alguns instantes os quadros pintados pelas crianças. Tinha que admitir que Nicolas era um excelente professor, não só talentoso, mas atencioso com seus pequenos alunos.

Mas não era a hora para admirar o trabalho do espanhol. Tossindo, Live conseguiu chamar a atenção dele. Nicolas virou-se em direção a ela e seu olhar se tornou interrogativo.

-O que deseja?

Ele nem esperou ela responder e voltou a guardar os pincéis. Total falta de interesse pelo que fosse que ela lhe viera falar! Live segurou a vontade de pular no pescoço dele, e ergueu a cabeça. Não perderia o controle na frente daquele arrogante por nada do mundo!

-Gostaria de pedir que não viesse mais dar aulas!

Nicolas levantou os olhos para ela na mesma hora. Live até havia planejado falar de outra forma, mas não conseguiu encontrar as palavras certas, então resolveu ser o mais sincera possível.

-E posso saber o porquê? – ele perguntou.

O som da voz dele saiu claramente irado. As pupilas dos olhos verdes de Nicolas se alargaram e ela, pela primeira vez desde que o conheceu, o viu em fúria.

-O Centro é meu! E não quero mais você aqui e pronto.

Sentiu-se infantil, mas estava tão zangada com ele que não conseguia segurar as palavras.

-Isso não é motivo! –ele levantou a voz.

-É motivo para mim. “Eu” criei o Centro e faço dele o que “eu” quiser! E não quero você aqui! Se a sua preocupação é as crianças, fique tranqüilo que encontrarei outro professor de artes.

Nicolas então começou a caminhar em direção e ela. Live se assustou com o controle que ele estava demonstrando. Parecia um tigre, num andar lento e os olhos fixos na presa. Ela também começou a andar, mas para trás, temerosa pelo que pudesse acontecer.

Então suas costas se chocaram contra a parede fria. Percebeu que Nicolas parou a sua frente, levantou os dois braços e pousou as mãos contra a parede, uma de cada lado, próximo a seu rosto. Estava prensada na parede por aquele espanhol sedutor.

-O que está fazendo? – perguntou Live sentindo vontade de correr dali.

-Você é imatura, irresponsável e não é nada do que eu pensei que fosse!

-Como se atreve a falar comigo desta forma?

O rosto da aquariana ficou rubro de raiva. Mas ela era Live Kamadeva, e não demonstraria sua ira tão claramente! Então tentou respirar pausadamente tentando se controlar.

Nicolas passou a língua pelo lábio inferior e continuou:

-Eu pensei que fosse alguém tentando ajudar o próximo, mas você não passa de uma criança mimada tentando mostrar que não é como suas amigas fúteis. Mero engano, você é pior que elas. Está tentando me tirar do projeto porque esta com ciúmes de mim!

-Ciúmes? De você? – ela desdenhou.

-Está sim! Mal consegue me olhar porque estou saindo com Samantha e não pode fazer nada para impedir.

Live riu sarcástica.

-Está brincando comigo? Por que eu iria querer impedir você de sair com alguma mulher?

Ele se aproximou mais dela, deixando o corpo muito próximo. O ar começou a faltar para a morena.

-Assuma que é verdade... – ele disse baixo.

Live sabia que não poderia mentir. Não assim, tão próxima a ele e tremendo numa ânsia desconhecida.

-Não nego que me incomoda, mas por motivos diferentes dos quais falou. A Índia não é a Espanha! Não quero que meu Centro fique prejudicado porque você não consegue manter as mãos longe da professora de música!

Os olhos dele a estreitaram. Live percebeu que começou a suar frio. Quase saltou ao sentir os dedos de Nicolas no seu queixo e sua voz rouca próxima ao ouvido.

-Você acredite ou não, só existe uma mulher que não consigo deixar minhas mãos longes, e ela não é Samantha...

Tão logo ele disse isso, pareceu se arrepender. O dedo que apertava seu queixo, abandonou a pele quente e Nicolas deu um passo para trás.

-Você tem razão, é ridículo pensar que estaria com ciúmes de Samantha. Não há nem comparação da mulher que ela é com você. – falou sem piedade – A bela francesa não parece uma freira do século passado e não sai correndo após receber um beijo, muito pelo contrário, ela é segura de si para proporcionar muito mais a um homem do que uma indiana criada por duas lésbicas!

Durante alguns segundos Live parecer engolir aquelas palavras, mas ao ouvi-lo falar de suas mães, ela não resistiu e lhe esbofeteou. Se Nicolas resolvesse brigar agora, iria ter um belo oponente, pois a jovem não estava para brincadeira. Nunca, em toda a sua vida, recebeu tamanha ofensa.

Mas quando ele ergueu o rosto, além da face vermelha, a única coisa que ele demonstrou foi surpresa pela atitude dela. Era óbvio! Um espanhol nunca esperaria que uma mulher tivesse coragem de o agredir. Ah, uma pena que ele não reagisse, pois Live poderia lhe demonstrar o que aprendeu nas aulas de boxe!

-Lamento, mas vai ter que esperar até o final do mês para “me demitir” – ele disse categórico – estou no meio de um trabalho com as crianças e algumas delas estão demonstrando muito talento para a pintura e não vou atrapalhar meu projeto de arte porque você não sabe controlar seus hormônios.

As palavras dele foram, inexplicavelmente, ditas muito calmamente, como se estivessem conversando sobre o tempo. Live nem pensou em retrucar, pois colocava os estudos dos pequenos em primeiro lugar, mas sentiu vontade de mandá-lo catar coquinho!

O silêncio dela fez com que ele voltasse a recolher o resto do seu material. Quando terminou a tarefa, passou por ela, sem se despedir.

(((((ºººººº)))))

A escuridão dentro do Centro de Estudos era intensa. Há muito tempo o sol já havia ido embora, mas Live continuava parada, sentada em um canto da sala de pinturas, remoendo as palavras de Nicolas Velaz, ditas a pouco mais de duas horas.

Ela não se permitiu chorar pelo que considerava uma besteira. Também prometeu não perder o sono por causa da opinião do espanhol sobre si. Então por que doía tanto?

Live era jovem, bonita e independente. Solitária também, mas esta característica nunca a entristeceu, ao contrário, sempre se considerou uma privilegiada por não temer a solidão. Mesmo assim, após conhecer Nick, queria viver algo diferente. Ingenuamente acreditou que ele fosse a pessoa certa para ela. Mas ele não era! E não era apenas o fato de o pintor ser extremamente bonito e inalcansável, mas também existia o preconceito que ele demonstrava com suas mães.

Baixando a fronte, observou os seios (ou a falta deles!) sobre a blusa justa. A saia também cobria as pernas totalmente. Não era muito baixa, mas também não tinha a altura de nenhum modelo. Excêntrica a descreveria muito melhor do que excitante.

A bela francesa não parece uma freira do século passado...”

Era o que ela aparentava? Uma Freira? Estava certo que não se vestia para seduzir e sim para se cobrir. Não gostava de artifícios tolos para chamar a atenção dos homens! Queria encontrar um grande amor! Alguém sensível que enxergasse mais que um pedaço de carne.

Para que sofrer pelo que não tem solução?

-Senhorita Kamadeva!

A voz de Iravan vinha da parte externa do centro e parecia urgente. Num salto, Live colocou-se de pé e foi ter com o jovem. Encontro-o impaciente e nervoso, torcendo as mãos e falando tão rapidamente que ela não conseguia entender.

-Se acalme! – ela gritou. Quando ele pareceu tomar fôlego, mais branda, a mulher perguntou – o que aconteceu?

-Estava indo até sua casa, mas vi seu jipe parado aqui na frente...

-Iria até minha casa para quê?

-É Taj!

Taj era uma intocável que vivia em um povoado próximo ao Centro. Uma menina magricela, de grandes olhos assustados e não aparentava mais que seis anos, quando na verdade tinha dez. Live a conheceu pelos cristãos que a levaram ao Centro de Estudos e simpatizou-se instantaneamente com a criança.

-O que houve com ela?

Iravan saiu correndo em direção ao povoado de Taj e Live foi atrás a pé, esquecendo-se do jipe. Quando chegou próxima a casa da pequena, notou um certo tumulto perto a uma grande árvore. Já imaginando o que estava acontecendo, temeu se aproximar. Mas não tinha escolha!

Os gritos da menina chegaram ao seu ouvido como um pedido de socorro. Sem sentir as pernas, Live correu até lá, empurrando as pessoas. Enfim, quando avistou a criança de longos cabelos negros, quase chorou.

Amarrada em uma árvore, a menina gritava aparentando dor, e as suas pernas estavam cobertas de formigas vermelhas e grandes. Assustada, Live tentou se aproximar, mas foi impedida por uma mulher enorme. Era a sra. Vanalika, esposa de um poderoso agricultor do local.

-O que esta acontecendo aqui? – Live gritou para a mulher.

Chocada reparou que a mulher tinha um saco de açúcar nas mãos, e atirava nas pernas da criança para que os insetos se alvoroçassem sobre a pele sensível.

-Por Vishnu! – gritou a hindi, espantada com tamanha crueldade – O que esta fazendo?

-Esta fedelha invadiu meu jardim de rosas está tarde e ousou se aproximar da minha horta.

-Ela roubou algo? Eu a reembolsarei... – disse Live, antecipando-se a outra.

-Não roubou nada, mas não me interessa! Está suja não pode se aproximar de nós!

Impressionada com tamanha injustiça, Live empurrou a mulher com força. Alguns intocáveis que haviam se convertido ao cristianismo e ao budismo se aproximaram para defendê-la caso fosse necessário. Os outros, baixaram o rosto com medo e os demais, pertencentes às castas locais, sentiram-se ultrajados quando viram a neta de Kamadeva levantar a criança, retirando as formigas do corpo pequeno e a carregar no colo.

-Você não pode fazer isso! – gritou a mulher irada.

-Tente me impedir! Vou chamar a polícia.

-Já chamei, srta. – falou baixo Iravan – e eles disseram que não devemos nos meter nas tradições.

Live abriu a boca estupefata.

-Mas o preconceito as castas não devia mais existir...

-A lei só vale no papel – disse Iravan tocando seu ombro.

A aquariana sentiu vontade de chorar, mas segurou-se. Era, afinal de contas, uma guardiã, uma guerreira que há quase uma década atrás lutara, ainda criança, contra demônios poderosos. Não seria uma mulher gorda que a impediria de salvar uma menina aflita.

-Saia da minha frente sua louca, ou eu juro que enfiarei essas formigas na sua boca gorda e retorcida!

Os olhos da mulher se arregalaram, mas ela não esboçou nenhuma reação. Um riso alto chegou aos ouvidos de Live e ela se irritou mais. Quem ousava rir num momento daqueles? Virou-se em direção ao engraçadinho, mas surpresa viu Nicolas Velaz a sua frente.

-Fico feliz que eu não sou o único a ser vítima da sua TPM! – ele ainda ria.

Com aquele andar de felino, ele se aproximou dela e pegou Taj do seu colo.

-Desculpe professor, não pude ir na sua aula hoje... – a menina falou choramingando.

Aquilo cortou o coração dos dois adultos. Nicolas olhou Live e ela notou que ele ficou sensibilizado pela situação.

-Tudo bem, Taj. Semana que vem você repõe a aula perdida.

Saindo do tumulto, Nicolas, Live, Iravan e Taj começaram a caminhar em direção onde morava a menina. Uma senhora humilde os aguardava na porta. Consternada por tamanha miséria ao seu redor, Live encarou a mulher.

-Boa noite. Taj é sua filha?

-Minha neta. Os pais de Taj morreram há anos atrás vítima de cólera.

Uma doença com cura e que poderia ser evitada se houvessem mais respeito do governo por aquelas pessoas.

-Senhorita Kamadeva – disse a mulher respeitosamente – já está fazendo muito dando estudo as crianças, mas se continuar a se meter nos castigos que os membros de castas dão a nós, ira se complicar. Muitos poderão querer se vingar da srta.

-Não temo a eles – respondeu Live sincera.

-Gostamos de você e não queremos que se prejudique por nossa causa. Nossas crianças brincam na lama com os porcos, lavamos nossas roupas no esgoto, nem direito à água do poço comunitário nós temos. Sempre foi assim... E sempre será.

Nicolas que estava em silêncio, não resistiu.

-Não sou Hindu, mas acho que posso me pronunciar. Ghandi não pensava assim e o povo devia batalhar pelos ideais dele!

A senhora não teve coragem de replicar. Vendo que a conversa findava-se ali, Nicolas pediu licença e colocou a menina para dentro da cabana coberta por uma lona velha. Sem que Live o percebesse retirou a carteira do bolso e colocou algumas notas nas mãos da idosa.

-Para os remédios...

-Não precisa, usarei ungüentos naturais – ela tentou devolver.

-Se a senhora não precisar comprar remédios, pode usar o dinheiro para comprar outra coisa. Aceite por favor.

Despedindo-se da mulher, os três foram embora.

Ao passarem pelo povoado, sentiram a tensão e a raiva das pessoas. Era impressionante que o povo os odiasse por tentar salvar uma criança.

-Foi muito corajosa, srta. Kamadeva. – falou Iravan.

Sorrindo Live respondeu:

-Você que foi, pois ficou ao meu lado o tempo todo mesmo pertencendo a uma casta!

-Não pertenço mais a nenhuma casta. Sou convertido ao cristianismo há algum tempo e o meu Deus fala que devo amar a todos, até aos inimigos, pois Ele mesmo não faz acepção de pessoas.

-Eu sei. Maire e Mic, minhas mães, são cristãs.

Deixando Iravan em casa, Live e Nicolas ficaram caminhando em silêncio até o jipe. Estavam exaustos, e não encontravam assunto para conversar, já que não sentiam a menor vontade de remoer as cenas vistas durante aquele começo de noite.

-Poderia me dar uma carona?

Ela o olhou surpresa.

-E sua moto?

-Os pais de Iravan foram até minha casa pedir ajuda, e eu vim com eles. Na hora fiquei tão nervoso que nem lembrei de pegar a moto.

-Tudo bem, pode subir que eu te deixo em casa.

Ansiosa para voltar a ser amiga dele, enquanto dirigia, Live começou a tagarelar sobre alguns heróis hindus como o Dr. Ambedkar, considerado o “pai dos intocáveis”. Também intocável, Ambedkar conseguiu estudar, e através de bolsas, doutourou-se. Voltou à Índia em 1923, tornou-se líder dos "intocáveis" e, como Gandhi, mas através de propostas diferentes, lutou pela conquista de seus direitos políticos.

-Sei... – disse Nicolas rindo – e você quer ser Ambedkar de saias?

-Gostaria, não nego! Mas não tenho essa capacidade. Meu projeto é muito menos ambicioso. Quero apenas dar uma chance a essas crianças.

Nicolas fez um respeitável silêncio por alguns instantes, e então perguntou interessado:

-Por que existem as castas?

-Vou tentar explicar de uma forma que mesmo a sua mente finita compreenda – ela falou brincando – Tente imaginar uma pessoa: A cabeça (Brahmim) representa os religiosos; os braços (Veishya) são os guerreiros e militares; os joelhos (Kshathriya) representam os nobres e os ricos; os pés (Shudra) são os fazendeiros e comerciantes. A poeira sob os pés não pertence às castas, mas também tem um nome: são os párias, os chamados Intocáveis. Eles formam a escória da sociedade indiana. São considerados impuros e, por isso, ninguém ousa nem ao menos encostar neles.

-Isso é um absurdo!

-Você não é o único nesta terra que pensa assim. Muitas pessoas, até nobres e sacerdotes sabem que essa diferenciação é um absurdo, mas sentem medo de lutar para modificar a tudo isso.

Havia uma curva na estrada e Live fez uma pausa no assunto, para realizar a tarefa de conduzir o veiculo.

-Quando eu tinha dez anos, antes de ir ao Japão conhecer os... – travou a língua, pois quase iria dizer “guardiões” – antes de conhecer minhas mães adotivas... Estava andando com meu avô pelo povoado. Um senhor estava vindo na direção contrária, e assustado saiu do caminho cuidando para que nem sua sombra tocasse em mim ou em meu avô. Estranhei aquilo e indaguei ao meu avô o que estava acontecendo e ele me explicou. Na época achei engraçado e me senti importante, mas quando fui morar na Espanha, Maire me mostrou fotos dos lugares onde os intocáveis moravam e me senti muito mal.

Ela notou que Nicolas não respondeu. Mas não havia mais tempo de conversar, pois ela acabava de chegar à casa de Nicolas. Ia apertar a mão dele para se despedir, mas surpresa viu uma mulher saindo da casa dele.

Samantha!

-Nick, você demorou! Um absurdo você ter me deixado sozinha para ir ver uma fedelha!

Nick já saia do carro e olhou a ruiva a sua frente.

-Não demorei tanto assim. – disse simplesmente.

Engolindo em seco, Live ligou o motor assim que ele bateu a porta do jipe.

-Obrigado pela carona, Live. – ele falou.

-De nada.

E a resposta foi à última coisa que Live disse, pois saiu cantando os pneus da casa dele.

Ainda no caminho da própria casa, ela notou que estava chorando...

Continua...


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