A Senhora da Montanha escrita por Josiane Veiga


Capítulo 7
Capítulo 7




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A Senhora da Montanha

Capítulo VII

Por Josiane Veiga

O apartamento no centro de Madri era amplo, claro e luxuoso. Ficava de frente a uma praça pouco conhecida, o que era positivo, pois dava, além de segurança, mais privacidade ao casal que ali residia.

No entanto, naquela manhã amena, o sol parecia escurecido e o lugar parecia uma prisão. Micaela andava de um lado para outro, pisando firme no chão e ecoando os sons do salto alto no piso de madeira lustrada. O tempo parecia não passar e uma sensação de raiva tomava conta do coração da loira bem vestida.

Um espelho enorme estava pendurado de um lado da parede. Sem perceber Micaela foi até ele e se observou. Nunca foi vaidosa, mas tinha que admitir que era uma bela mulher, charmosa e com excelente gosto para acessórios. As roupas de tecido eram compradas por Maire, sua esposa, ativista e bióloga, que fazia questão de pegar os tecidos ecologicamente corretos. Eram um casal estranho, mas que se respeitava muito.

Mesmo assim, naquele momento Mic (como ela era conhecida) não sentia a menor vontade de meditar em coisas fúteis. O coração estava carregado de ansiedade e quando a campainha tocou, ela não pode segurar um suspiro de alivio. Correu até a porta e quando abriu, avistou a figura de um moreno alto.

-Está atrasado a dois dias!

-Os aeroportos do Brasil estão um caos! Assim que consegui um vôo, vim direto para cá! Não vai me convidar para entrar?

Mic saiu da porta e Mauricio entrou carregando uma mala, que foi depositada ao lado do sofá. Sem constrangimentos ele praticamente se jogou numa poltrona e sorriu.

-O fuso horário um dia vai me matar! – murmurou.

-Sei que está cansado, mas precisamos conversar – Micaela falou firme.

Mauricio levantou os olhos para ela.

-E Maire?

-Está trabalhando.

-Então nós dois estamos sozinhos no apartamento, com apenas um metro e algumas roupas nos separando? – brincou.

Mic revirou os olhos e quase riu. Antigamente Mauricio havia vivido uma paixão pelas duas mulheres, mas ela imaginava que aquilo estava morto e enterrado. Ele era uma pessoa maravilhosa e a amizade deles floresceu e fortaleceu com o passar dos anos.

-Estou preocupada... – Mic começou.

-Com Live – Mauricio a interrompeu.

O olhar do brasileiro era totalmente compreensivo e Micaela sentiu-se uma tola. Não gostava de demonstrar sentimentos, mas não podia evitar.

Sem saída sentou-se no sofá frontal a poltrona que Mau estava. Arqueou as costas e uniu as duas mãos brancas, tentando encontrar as melhores palavras.

-No início fui contra a idéia da Maire em adotar Live. Não queria uma filha adotiva, não só pelo fato de não ser acostumada a crianças, mas principalmente porque não conseguia ver o que duas mulheres homossexuais poderiam oferecer a uma menina hindu?! E Live estava entrando na adolescência quando os papéis com a guarda dela foram entregues a Maire. Eu já podia me ver acordada a noite, esperando ela voltar drogada de alguma festa “rave”.

Mauricio segurou a risada imaginando a cena e omitiu qualquer comentário, tentando deixar Micaela livre para confidenciar.

-Mas Live nunca me deu preocupações. Foi a melhor filha que eu poderia sonhar e eu a amei cada dia desde o momento que pus meus olhos nela.

-Eu sei Mic...

-Agora ela está lá, do outro lado do mundo enfrentando uma guerra que não é dela!

-Live é hindu! Se os próprios hindus não batalharem pela liberdade dos “intocáveis”, quem fará isso?

-Não quero que minha filha seja um mártir!

-Ninguém vai matá-la, Mic! O povo hindu não seria violento com alguém de casta.

-Isso não me importa! Ontem um tal de Sabal ou coisa assim me ligou falando que Live enfrentou uma multidão alvoroçada para salvar uma garotinha!

Mau sentou-se um pouco mais para frente na poltrona e pegou as mãos da amiga entre as suas.

-Live é uma guardiã treinada – disse confiante – ela sabe se cuidar! Você devia ter orgulho dela!

-Eu tenho! Por Deus, eu tenho muito orgulho! – a guardiã de gêmeos sorriu – mas ao mesmo tempo, sinto medo... – como se lembrasse de algo, voltou a atenção ao homem a sua frente – tentei ligar para ela ontem à noite, e a voz dela estava muito triste...

-A pressão deve ser grande...

-Não foi pelo tumulto! Eu conheço a minha filha! É aquele pintor! Ele a está fazendo sofrer...

-Como você pode ter tanta certeza? Ela me deixou claro que não tem nada com ele.

-Mau, ela está apaixonada! Posso não estar lá para ver seus olhos, mas sinto pelo tom de sua voz! Pela primeira vez depois... - a voz de Micaela interrompeu-se bruscamente.

-Depois...?

O clima se tornou palpavelmente tenso.

-Existe algo que eu não sei, Mic?

A loira observou os olhos escuros do amigo.

-Quando Live tinha doze anos, durante a guerra dos guardiões com os youkais, ela teve seu primeiro amor.

-Como assim teve seu primeiro amor? Ninguém me fala nada nesta família!

Se Mau não estivesse de fato zangado, Mic teria rido, afinal, ele não era da família. Ou seria?

-O menino morreu durante um ataque de um Youkai. Ele morreu tentando salva-la! Desde então, nunca mais falamos no assunto, mas nunca havia visto Live se apaixonar. Na verdade, não esperava que isso fosse acontecer...

-Bom... um dia ela teria que superar a dor pela perda do primeiro namoradinho.

-Mas ela precisa de alguém sensível que cuide dela e que compreenda que ela não é uma moça comum! E mesmo longe, eu sinto no meu coração que ele a esta magoando.

-Mic...

-E se, de fato, ele a estiver magoando...

-Mic... você precisa deixar Live crescer!

A voz de recriminação era tão clara que Micaela se assustou.

-O que quer dizer?

-Que você é super protetora! Live não é mais uma garotinha que chorava a morte da mãe biológica e a falta de amor do pai! Ela já é uma mulher!

Mauricio viu Micaela se levantando do sofá e indo até a janela. Ela parecia meditar no que ele falara. Contra a luz vinda de fora, Micaela resplandecia. Os anos pareciam que não haviam passado para ela. Os cabelos loiros estavão um pouco mais compridos do que quando ele a conheceu, mas a personalidade forte era a mesma. Mauricio sabia que a geminiana não demonstrava sentimentos para as outras pessoas, mas ele era do rol da exceção. Sem ao menos notar, aproximou-se de Micaela e a abraçou por trás encostando o queixo no topo da cabeça dela.

-Pra mim ela será sempre a minha menina... – a ouviu dizer baixinho.

-Eu sei...

-Não vai rir de mim?

-Claro que não, eu sinto o mesmo! Vamos fazer um trato? Se o tal pintor realmente estiver a magoando, nós dois daremos uns bons socos nele!

Ouvindo a amiga rir, enfim, Mau se tranqüilizou.

ººººººººº

Se Samantha a olhasse de novo com aquele jeito esnobe, ela iria perder a compostura. O fato de Live reconhecer que estava prestes a saltar por cima da mesa e meter a mão na ruiva que soltava risinhos secretos enquanto mexia em papeis na sala dos professores, não alterava sua reação.

Queria saber se controlar como Maire! Queria ser fria e fingir que não sentia nada ao ver Nicolas Velaz se encontrar com a francesa! Mas não conseguia. Era inevitável chorar ao ver os dois juntos, conversando como se ela não existisse. E a arrogância da outra, como neste momento, irradiando felicidade dentro da sala, a machucava demais.

Desde quando tinha se tornado alguém que sentia inveja da felicidade dos outros?

A verdade crua a chocou. Não era simplesmente inveja porque Samantha estava namorando e ela não e sim ciúmes porque o namorado da francesa era Nicolas. O único homem que abalou realmente as suas estruturas.

Suspirando, ela jogou os cabelos para trás. Não havia saída e Live devia estar acostumada a saber que nenhum homem se interessaria por ela. Isso incluía o próprio pai. Quantos anos já haviam se passado desde a ultima vez que ele ligara para saber de sua saúde? Nem lembrava mais...

-Esta tão pálida! – falou Samantha tomando o café e terminando de arquivar suas partituras numa pasta – ficou doente?

Tinha certeza que a francesa havia rido muito quando a viu praticamente fugindo da casa de Nicolas há três dias atrás, mas evitou demonstrar raiva ou vergonha no tom de voz.

-Estou ótima. Apenas trabalhando um pouco demais.

Após dizer isso, Live sorriu para a ruiva de maneira misteriosa. O mistério? Nenhum! Mas adorou ver a duvida nos olhos da outra.

Então era isso! As duas mulheres agora começariam uma disputa de “gato e rato”, como duas adolescentes tolas apaixonadas pelo mesmo garotinho. Ah, não mesmo! Ela era uma mulher adulta e não ficaria fazendo tipo para a outra. Se Nicolas preferia Samantha, que fizesse bom proveito!

Levantando-se, Live se encaminhou a porta, mas parou subitamente ao ver Nicolas entrar pela mesma.

Era segunda feira! O que ele estaria fazendo no Centro? Suas aulas eram as sextas...

-Bom dia Live... – ele falou devagar.

Os olhos verdes de Nicolas ficaram escuros e fixaram-se nos dela. Toda a resolução da indiana de o ignorar morreu ao se chocar com o muro estável que o espanhol era.

-Bom dia – ela respondeu – e com licença.

Assustada, ela quis sair correndo. Mas uma das mãos dele a segurou firme pelo braço.

-Nick havia ficado preocupado com você depois que saiu “cantando pneu” da casa dele sexta... – Samantha disse.

Mas de alguma forma a voz da ruiva parecia muito longe. Os olhos esverdeados da hindu não conseguiam desprender-se do rosto bonito.

-Realmente, fiquei preocupado... – a voz dele pareceu fraca, e então subitamente ele voltou ao normal – Sei que não deve ter sido fácil para você ver uma criança sofrendo...

-Não é fácil para ninguém que tem sentimentos, mas Taj esta melhor e ontem, quando fui visitá-la, o inchaço da mordida das formigas já havia praticamente sumido.

-Mas o terror psicológico pode ficar para a vida toda... –ele disse.

Samantha, como se percebesse que estava ficando de lado, levantou-se e intrometeu-se na conversa.

-Vamos falar de coisas mais alegres? Ora, o que aconteceu à menina já passou.

Live e Nicolas então desviaram seus olhares.

-Você tem razão – falou a aquariana subitamente – o que preciso fazer é agir e não relembrar. Vou procurar uma psicóloga para ajudar Taj.

-Faço questão de pagar... – Nicolas precipitou-se.

Live voltou a encara-lo.

-Agradeço muito, mas não será necessário.

-Me deixa ajudar você...

A ultima frase dele surpreendeu a ambos. Pela primeira vez desde que o conheceu, Live viu que Nicolas estava bastante envergonhado.

-Oras Nick... desse jeito Live vai achar que você esta gostando dela.

A frase de Samantha poderia ser levada na esportiva, mas as palavras estão tão cheias de veneno que não deu para ignorar.

-Não se preocupe, Samantha. Eu jamais iria confundir as palavras de Nicolas. Reconheço que uma mulher como eu jamais poderia competir com alguém como você.

Não há nem comparação da mulher que ela é com você”- Live ouviu claramente as palavras de Nick em sua mente – “A bela francesa não parece uma freira do século passado e não sai correndo após receber um beijo, muito pelo contrário, ela é segura de si para proporcionar muito mais a um homem do que uma indiana criada por duas lésbicas!”

Mais do que nunca, Live precisava fugir dali. Sentiu a garganta arder e ficou com medo de chorar na frente dos dois. Nunca foi vaidosa e jamais se angustiou por não ser uma beldade. Mas desde que ouvira as palavras mordazes, não se olhara mais no espelho.

Sem dizer mais nada, desviou do casal e saiu do Centro.

Continua...


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