A Senhora da Montanha escrita por Josiane Veiga


Capítulo 5
Capítulo 5




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A Senhora das Montanhas

Capítulo V

Por Josiane Veiga

Uma semana havia se passado deste o jantar malfadado com Nicolas. Apesar de Live não ter tido muito tempo para chorar a falta de interesse do espanhol nela, seu coração permanecia pesado, por ele a ter descartado.

Suspirando, a morena limpou o suor da testa. Estava um dia bastante quente no povoado, mas ela não podia parar para descansar. O centro de estudos Kamadeva estava praticamente pronto, e ela já havia conseguido ajuda de um grupo cristão de Nova Delhi para dar prosseguimento ao projeto.

Lembrando-se do encontro que teve com o Sr. Hari Ramji, líder dos missionários cristãos na Índia, Live sorriu. Ele foi muito amável e lhe apresentou a vários voluntários que iriam ajudá-la. Naquela semana, Live conheceu dois professores que dariam aulas as crianças, uma jovem instrumentalista, que ensinaria música e um rapaz adolescente, que ficaria incumbido de fazer aquelas crianças adentrarem no mundo virtual.

Live saiu do sol carregando uma caixa e entrou dentro do armazém. Bom, não poderia mais ser chamado de armazém, pois já era um centro de estudos. A pintura verde das paredes, os ventiladores no teto, as divisórias claras... tudo demonstrava que aquele lugar seria um local de reinicio para muitas pessoas.

-Olá.

Virando-se em direção a porta, Live observou Iravan, o jovem adolescente que daria aulas de informática no seu centro.

-Oi, chegou adiantado. As aulas só começam semana que vem.

O rapaz, que aparentava uns dezoito anos, sorriu para ela.

-Eu sei, srta. Kamadeva. Na verdade, moro próximo daqui e a vi chegando. Pensei em vir ajudá-la.

Live não tinha muita certeza se devia aceitar a ajuda ou não, já que apesar de algumas coisas serem liberais na Índia, um rapaz e uma moça, solteiros, ficarem sozinhos talvez não fosse visto com bons olhos.

Ora, mas ela já não havia até jantado com Nicolas sem se importar com comentários? Sorriu para Iravan e disse:

-Muito obrigada. Poderia pegar uma caixa que ficou no jipe para mim?

Ele saiu correndo porta afora para realizar a tarefa. Iravan era cristão e ajudava em trabalhos missionários no seu país. Quando Live falara ao Sr. Ramji que gostaria de ensinar informática, ele imediatamente sugerira o jovem. Ela aceitara de pronto. Quando o conheceu, um dia depois, simpatizara instantaneamente.

Quando o jovem voltou, ela pediu para auxilia-la a montar os computadores. A sala de informática ficava a esquerda e os dois permaneceram horas rindo e configurando as maquinas. Filha de Micaela, Live acabou conhecendo muito de software e hardware, mas nunca pensou que seus conhecimentos fossem ser úteis.

Iravan saiu para buscar água gelada para eles, e Live permaneceu na tarefa. Apesar dos ventiladores dentro da sala, o calor estava insuportável, então Live retirou a túnica e ficou apenas com uma regata branca. A roupa era escandalosa para uma mulher hindu, mas não conseguiria usar uma roupa mais formal e mais quente, trabalhando ao mesmo tempo. Jeans e regata eram as roupas mais confortáveis do mundo e ela torceu para que Iravan não a recriminasse quando voltasse com a água.

-Com licença...

A voz a fez saltar da cadeira. Live então olhou para a porta de entrada da sala de informática e encarou Nicolas. Já fazia uma semana que não o via, mas parecia séculos. Ele estava mais lindo do que antes, usando uma camisa manga curta, e também suava.

“Ele era humano!”, ela quase gritou, ao ver que ele também tinha reações como ela, que sentia calor e transpirava.

Num primeiro impulso quase levou as mãos aos cabelos, tentando arrumar os fios que escapavam do coque, mas conseguiu se controlar. O que importava se ela estava com uma aparência desleixada? Viera até o lugarejo para trabalhar e não para um desfile de moda ou uma festa!

-O que deseja?

Tentou aparentar frieza, mas foi difícil. Durante toda a semana pensou nele, no seu beijo arrepiante e em como se despediram. Quis entender o porque dele a ter tratado mal, praticamente a expulsando de sua casa, e buscou rever cada detalhe, procurando explicações que justificassem a atitude. Como não encontrou nada, aguardou que ele aparecesse. Nos primeiros dias, olhava ao redor ao primeiro som de moto tentando ver Nick vindo até ela e à noite, atenta a qualquer pequeno barulho vindo do lado de fora da mansão. Mas ele não apareceu. E agora, no momento em que ela já estava começando a enterrar aquela louca atração, ele surgia.

-O centro está muito bom! –ele balbuciou.

-Obrigada.

Ele olhou uma cadeira, esperando que ela lhe convidasse a sentar. Como Live nada disse, resolveu falar:

-Vim me oferecer para ajudá-la.

-O quê?

Notando a postura ereta de Nick, Live percebeu que ele não iria embora sem falar o que viera para dizer. Suspirou e, sem escolha, o convidou a sentar-se. Nicolas aceitou a cadeira e começou a se explicar:

-Eu soube que a vaga para artes plásticas não foi preenchida. Pensei bastante e resolvi que posso ajudar.

-Não vou atrapalhar seu trabalho? –ela perguntou maquiavélica.

Live dizia a si mesma que ele devia repensar realmente na proposta. Estava na Índia a trabalho e não poderia deixar suas obras para ajudar uma socióloga com crianças. Mas ao mesmo tempo torcia para que ele resolvesse ficar do seu lado. Que sentimentos conflitantes!

-Eu nunca fiz nada por ninguém. – ele confessou.

A aquariana ficou lívida com a declaração. Poucas pessoas se importavam com suas atitudes perante o mundo. A maioria reclamava, por exemplo, que a terra estava sendo devastada, mas não paravam de atirar lixo nas ruas.

-Cresci num lar rico, fui mimado a vida toda – ele contou – sempre tive tudo que eu quis! Muitas vezes, durante a faculdade passava por mendigos nas ruas, mas desprezava-os por serem pobres. E no fundo nunca me senti culpado. Tanto é que quando vim para a Índia, reparei nos “intocáveis”, mas não fiz nada para ajuda-los. Quando você fala em ajudar as pessoas, seus olhos brilham... Então pensei que talvez eu pudesse auxiliar de alguma forma e sentir a mesma emoção!

Não queria ama-lo! Não podia se apaixonar por alguém como ele! Mas ouvir Nicolas falando daquela forma a fez fraquejar... novamente!

Não! Precisava ser forte! Ele nem por um momento falou que gostaria de ajudar para ficar próximo a ela ou para fazê-la feliz. O interesse dele era apenas aplacar a culpa que devia sentir por ser alguém egoísta.

-Não sei se é uma boa idéia... O que você entende de crianças?

-Nada.

-Então...

-Bom, um dia eu serei pai, não? Portanto acho que posso aprender a gostar de crianças desde agora.

Um bebê de cabelos negros e olhos verdes apareceu na mente de Live. Balançando a cabeça, ela afastou a imagem.

-Está bem. Você pode dar aulas que dia?

-Você escolhe.

-As sextas à tarde, está bem?

-Excelente.

Quando Nicolas levantou-se, ela sentiu um desejo enorme de se atirar nos braços dele, mas apenas o acompanhou até a porta. Iravan vinha com uma jarra com água gelada de encontro a eles, mas até Nicolas sair do centro, ela mal conseguia respirar, quanto mais beber!

-A srta. está bem? – perguntou o jovem a encarando.

-Estou ótima. O rapaz que saiu daqui também dará aulas as crianças –ela contou.

-É mesmo? –ele parecia surpreso – ele é professor?

-É pintor! Vai ensinar artes plásticas. Acho que poderemos usar a sala dos fundos como sala de pintura. O que acha?

-Boa idéia. – Iravan pareceu mais animado.

E os dois saíram a realizar mais tarefas.

((((ºººººº))))

Um mês depois...

Live sorriu ao ver uma turma de crianças vindo até o centro com o uniforme que ela conseguira. Satisfeita, notou que a primeira parte do projeto estava dando certo. Foi difícil convencer aos pais dos pequenos sobre a seriedade do seu centro de estudos, mas aos poucos eles foram permitindo que as crianças começassem a freqüentar as aulas.

A jovem socióloga também conseguiu uma casa ao lado do centro para servir de refeitório. Com a ajuda de alguns monges budistas foi providenciado uma ajuda governamental para a alimentação dos pequenos. Enfim... o que parecia impossível estava se realizando. Era muito pouco, verdade, mas já a deixava bastante feliz.

Samantha, a jovem que ensinava música às crianças saiu da sua sala. Era uma ruiva alta, com um corpo fenomenal. Filha de missionários franceses, ela trabalhava nos projetos dos pais, mais por comodismo do que por amor. Não era uma pessoa má, mas não via muitas vantagens em ensinar a crianças que, segundo ela, jamais teriam um futuro. Live e ela conseguiam manter uma atitude impessoal, mas respeitosa, cada uma fazendo seu trabalho sem interferir no da outra.

-O gato não chegou ainda?

O “gato” era Nicolas. Desde que o conhecera, a francesa não conseguia tirar os olhos de cima dele. Na reunião realizada no último sábado antes de começarem as aulas, Nicolas e ela praticamente conversaram o tempo todo. Live ficou louca de ciúme, mas olhando para seu estereotipo sem graça e comparando-se a uma mulher daquelas, percebeu que seria até engraçado tentar concorrer.

-Ainda não... –ela disse irritada.

Se ela soubesse que seu centro fosse usado para romances, não teria aceitado Nicolas nem Samantha como professores. E que se danasse o profissionalismo!

Durante todo o último mês teve que tentar controlar a raiva do flerte descarado daqueles dois, e isso a deixou com os nervos em frangalhos, mas estava conseguindo aparentar que não ligava a minima para os romances do espanhol. Quando Nicolas apareceu, ela estava lendo um relátorio das aulas de Samantha. Ele entrou no Centro segurando o capacete e sorrindo. Seus olhos pousaram em Live e ela perdeu o fôlego. Mas então, ele olhou Samantha.

-Estava me esperando?

O que estava acontecendo? Ele parecia ansioso para mostrar a Live que Samantha era uma mulher atraente e que estava interessado nela. O que ele ganhava em humilha-la?

-Estava. Vamos tomar chá na sala dos professores?

Live olhou para o outro lado e deu as costas ao casal. Não queria que Nick percebesse seu olhar triste. Ela podia não ser bonita como Samantha, mas não era tão deselegante que não despertaria a atenção de homem nenhum. Era isso! Ela precisava de um namorado para esfregar na cara dele!

O problema era as opções! Os dois senhores que dão aulas de línguas e matemática para as crianças já eram casados, os jovens hindus da região a achavam esquisita demais e não se aproximavam. Sobrava Iravan, mas ele era muito jovem e Nick riria se a visse com ele.

De repente sentiu o ar bastante carregado. O som dos risos que o casal dava na sala dos professores era ouvido ali, na entrada e aquilo fez mal para Live. Suspirando, ela saiu do centro e começou a andar pelas ruas empoeiradas.

Live parou em frente a um armarinho e comprou sorvete. Ainda devorava a guloseima quando avistou o sacerdote Nirek Sabal.

-Boa tarde! –ela exclamou ao vê-lo se aproximando.

-Srta. Kamadeva! Como estas?

Ele estava usando suas roupas sacerdotais e parecia contente em vê-la.

-Bem. Já soube do meu Centro de Estudos?

-Sim. Fico feliz que estejas dando tudo certo.

-O senhor poderia vir nos visitar quando quiser.

O sorriso dele morreu nos lábios e pareceu sem jeito ao dizer:

-Eu não posso...

-Por quê?

-Eu gostaria de ajudar, acredite-me. Mas sou um sacerdote e não posso ter contato com as suas crianças. Nossa religião...

-Se o senhor for, as demais pessoas vão começar a aceitar. Talvez até pessoas de outras castas participem. Misturar as crianças às outras é a maneira mais fácil de destruir os preconceitos futuros.

-Não posso ir contra minha religião.

A última frase dele a desmoronou. Queria sacudi-lo e lhe dizer que ele devia deixar de ser bobo... que poderia ajudar a destruir a crendice de inferioridade dos “intocáveis”, mas viu medo nos olhos de Nirek.

-Já notei que algumas pessoas do vilarejo não me cumprimentam mais, mas tudo poderia ser facilmente contornado se o senhor me apoiasse publicamente. – ela fez uma última tentativa.

Sabal olhou por sobre os ombros dela e avistou o Centro. Algumas crianças estavam na porta e riam felizes. Seus olhos pareciam misericordiosos, mas ele ainda assim permaneceu firme em sua postura.

-Live, eu a admiro profundamente. Mas você sabia que as pessoas vão considera-la suja por se envolver com esses pequenos...

-Sou limpa! Minha alma é limpa!

-Eu sei, srta. Kamadeva! Mas não é a visão que nossa fé prega! Desculpe-me...

Live baixou a fronte. De alguma forma inexplicável ela admirava Nirek Sabal e a opinião dele contava muito para ela.

-O senhor vai deixar de falar comigo?

-Não! Mas não posso assumir algo acima das minhas forças.

Ele pousou a mão em seu ombro, a encarou, mas então se afastou. Live ainda observou o homem caminhando na direção contraria a dela por algum tempo, até vê-lo sumir no horizonte...

Continua...


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