Sexo, Escola e Rock And Roll escrita por Fernanda Lima


Capítulo 23
Confidências - II; A Dor que Une


Notas iniciais do capítulo

* Versão de Jack McMiller *



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Meados de junho, época de provas, tempo fechado, frio de 3 °C. As condições perfeitas para se ficar pensando em férias na praia.

- Jackie, vem cá. - Minha namorada que aparentemente não sentia frio me chamou para o que parecia ser uma conferência no canto da sala. - O Allen já arrumou uma casa para nós ficarmos, bem na frente da praia. É numa cidadezinha de pescadores, portanto, sem distrações.

- E foi incrivelmente barata. A baixa temporada faz milagres. - Ele olhava animado para o cartão de crédito com mais dinheiro do que nós quatro teríamos juntos.

Sem que pudéssemos responder, o sinal tocou, e o professor de física entrou na sala, com uma pilha de provas corrigidas. Olhares de preocupação, tristeza profunda e desistência da vida se espalharam pela população local. Felizmente, para animar-nos, o "Cabra", como era chamado por sua barbicha, resolveu comentar nossos resultados antes da verdade final.

- Estou muito decepcionado com vocês. Depois de todas as atividades que fizemos, não conseguiram desenvolver raciocínios simples na hora da prova, que muitas vezes fizeram durante a aula. Não façam isso, a prova deve ser realizada com atenção e boa vontade. Bem, deixe-me entregá-las a vocês, então.

Depois de nomes de pessoas cujas caras pareciam não mudar mesmo depois de 5 anos, veio a vez de Sabrina. Eu me preocupava, pois ela realmente tinha uma falha no processo educacional. Mesmo aprendendo rápido, a inteligência não cobria anos de déficit na aprendizagem.

- Senhorita, precisamos falar em particular depois da aula. - O olhar do Cabra era repreensivo, e logo cogitei algumas hipóteses. Dentre elas, uma recuperação nas férias de inverno. Bem na época de nossa viagem.

-x-x-x-x-x-x-x-x-x-

Esperávamos pelo retorno de Sabrina na cantina. Depois de uns 15 minutos, ela desceu as escadas, com um ar pensativo. - O que ele disse? - Interrompemos nosso assunto pouco importante para ouvir o que ela teria a dizer, que de alguma forma poderia prejudicar nossos planos.

- Ele está um pouco preocupado comigo, já que minhas notas não estão realmente boas em nenhuma matéria. Então, recebi uma proposta do colégio depois de uma espécie de análise social.

- Proposta? - Maria perguntou, visivelmente ansiosa.

- Sim. Veem aquelas janelas no terceiro andar? - Olhamos todos para onde ela apontava.

- É um corredor que fica sempre fechado. Nunca fomos lá. O que tem isso?

- São apartamentos. O coordenador me disse que alguns investidores, pais de alunos - Olhamos para Allen, inconscientemente. - privatizaram parte da escola, e construíram algumas estruturas aqui que não existiam antes. Ele me propôs vir morar em um deles, junto com algum outro aluno que pudesse me acompanhar nos estudos. Eu ficaria sob os cuidados dos responsáveis pela escola e receberia alguns benefícios e mantimentos.

Nos entreolhamos, já que nunca havíamos ouvido falar de algo como aquilo.

- Sabrina, isso é bastante estranho, mas é interessante. Não sabia que alunos podiam morar na escola.

- Eu também não, apesar de sempre ter achado aqui bastante diferente. - Tive que concordar com Bel. Era uma escola pública realmente anormal.

- Pois é, é bem estranho mesmo. Mas já me apresentaram os nomes de alguns dos alunos que estão em condições parecidas com as minhas, para que possamos morar juntos. Conhecem uma tal de Julia Gardet?

- Julia Gardet? Ela é uma baixinha, gordinha, de cabelo meio loiro que estuda na sala ao lado da coordenação. Ouvi falar que está tendo problemas com a família e que queria se mudar.

- Pois é, também ouvi isso. É bem comum nos colégios públicos que as pessoas tenham vidas meio transtornadas. Pensando assim, o ambiente fica meio pesado, até. Allen abaixou a cabeça, um pouco constrangido por não se incluir naquele grupo.

- Mas... você vai fazer recuperação no meio do ano?

Ela assentiu.

- E os nossos planos? - Maria deu um passo para frente, chateada.

- Não se preocupe. As provas só começam no fim da segunda semana de julho. O problema é que terei de estudar bastante antes, então talvez os ensaios fiquem comprometidos.

Estávamos todos pensando a mesma coisa.

- Bom, vamos aproveitar que estaremos sem muito o que fazer mesmo e estudar com você, como fizemos na sua casa, lembra? Aí, quando estivermos cansados dos livros, ensaiamos. Aliamos o útil ao agradável.

Ela olhava para baixo, ainda pensativa. Bel olhou bem para o seu rosto, dizendo:

- Você quer nos contar mais alguma coisa? - Os olhos vigilantes de minha morena desafiavam qualquer segredo.

Sabrina, enfim, sentou-se. Sua boca se mexia, na iminência de alguma fala, mas o som só saiu depois de vários segundos.

- Desculpe, é um pouco dramático. Só andei pensando um pouco no quanto minha vida mudou ao longo dos anos. E não foram tantos assim.

- O que você quer dizer? - Maria nos encarou, acariciando o braço de Sabrina. Era algo sério, e ela aparentemente não queria nos contar.

- Eu não sei se é o melhor momento para dizer isso... não quero deixá-los preocupados.

- Você pode falar. Penso que uma hora ou outra o assunto chegaria.

Antes que ela começasse a falar, estranhei um pouco pelo fato de Bel não saber, já que ficaram na mesma casa por uma semana. Será que houve algum problema entre as duas após o incidente da enfermaria? ¹

Sabrina suspirou fundo, falando pausadamente. - Eu andei notando que... durante a minha vida, eu, de certa forma... perdi todas as pessoas que amei.

As pessoas que haviam de almoçar lá já haviam saído. Restavam, além dos funcionários da cantina, apenas nós cinco e o silêncio aterrador entre as falas da melancólica garota loira.

- A minha mãe... meus amigos de São Paulo... meu avô... - Não estava claro para nós se ele já havia falecido, mas eu não podia deixar de pensar nisso. - A minha avó, que sempre esteve perdida para mim. Minha antiga família - Sem entender no início, depois notei que ela se referia à Sam e ao seu pai. - e alguns amigos daqui, que por algum motivo pareciam me evitar depois do que... - Ela mudou a fala de última hora. - ...depois de Sam.

Maria deitou-a em seu ombro, afagando-a.

- Não quero parecer ter pena de mim mesma. Não tenho. Sempre pensei haver uma razão para todas essas coisas. Só queria achá-la e resolver o problema, antes que perca mais alguém. - Finalmente, ela olhou para nós. Por algum motivo, um frio interno me alcançou.

- Não vamos te abandonar. E também, espero, não vai acontecer nada conosco. E também lhe ajudaremos a achar a suposta causa desse problema. - Bel era objetiva, mas seu racionalismo não era menos consolador que o carinho de Maria.

- Acho que aprendemos a te amar, Sabrina. Eu... eu não entendo o que é esse sofrimento. Me sinto constrangido por não entender, pois todos aqui têm alguma mancha em suas vidas - Olhamos para baixo, em tom de afirmação -, e não posso fazer nada. Então, se deixar que eu aprenda, prometo não te abandonar.

Bel abraçou Allen, que colocava a franja na frente dos olhos para esconder as lágrimas. Toda aquela atmosfera nos fez pensar em nossas vidas, em nosso passado. Allen tinha razão, eram mesmo grandes manchas. Bel se pronunciou, ajudando a traduzir o que sentíamos.

- Eu vim para o Brasil apenas com cinco anos... nunca deixei de sentir saudades de minha família na Itália. Era mesmo uma família enorme, e eu amava a todos como amo meus próprios pais. Desde então, só consegui visitá-los uma vez. Estava tão feliz lá que prometi a todos nunca retornar para o Brasil. Mas tive que voltar. Assim que cheguei, a primeira coisa que descobri foi que meu primo mais próximo havia sofrido um acidente. Dois dias depois de voltar. Eu podia ter estado lá, ele teria ficado em casa ao invés de sair de moto à noite, e aquilo não teria acontecido. Por apenas algumas horas, perdi uma das pessoas que mais amava, além das terras que chamo de "lar".

- Bel, você nunca me contou isso. - Eu estava surpreso, pois nunca pensei que algo assim havia acontecido com ela. Allen assentiu, sem conseguir falar. Era a vez de Maria.

- Minha família se desorganizou completamente aos meus 7 anos. Parece que desde então, as pessoas em quem eu pensava poder confiar só me decepcionam. Minha mãe era alegre, jovial, simpática. Aquele homem a transformou completamente, agora se transformou em uma megera, controladora. O meu irmão, ou meu primo, sei lá, contraiu uma doença quando viajou para o Peru há alguns anos. Ele estava realmente muito mal. Eu e minha outra irmã, ou prima, fomos pedir a ajuda de minha mãe. Ela nos olhou com desprezo, dizendo que "quem cuida de doentes tem as mãos sujas".

Sabrina a abraçou mais fortemente. Alguns minutos depois, enquanto refletíamos, os olhares se voltaram para mim. Eu não sabia o que dizer. Nunca havia me aberto com ninguém, contado o que realmente acontecia, apesar de serem meus amigos e de uma forma ou outra desconfiarem da verdade.

- Jack. Todos contaram. Não vamos deixar que continue reprimindo o que sente. - Bel me beijou. Seus lábios quentes e seus olhos brilhantes de alguma forma me deram coragem para falar. Pensei um pouco em como iria falar aquilo sem muito drama. Mas, no fim das contas, acabei por contar o que sentia realmente.

- Minha mãe... é uma prostituta. - Fui direto, mas os olhos me encaravam, inabaláveis. - Ela sempre foi. Pelo menos, tem sido por muito tempo. Me teve com um de seus "clientes", e como no fundo é uma pessoa boa, ficou comigo. Recebeu uma casa grande como herança de um parente, de forma inesperada, quando eu tinha apenas três anos. Desde então, passo todas as noites sozinho naquele lugar. Ela sempre se preocupou muito comigo, mas nunca conseguiu arranjar um emprego digno de seu caráter: nunca foi forte o suficiente para se empenhar em nada. De desgosto, se envolveu com bebida, e, penso eu, também com drogas. Insiste em tentar ser superprotetora comigo, por culpa, e não aceita que quem precisa de ajuda é ela. Não quero que piore.

Terminei de falar. Bel se abraçou em mim, deitando Allen em suas pernas. Ninguém ousou falar mais nada até a hora de irmos embora.

Alguns dizem que a dor separa, outros, que ela enlouquece, ou ainda, que fortalece. Depois desse dia, desse momento inesperado de catarse coletiva, em que até eu mesmo alcancei a coragem para falar do que me afligia, passei a pensar que, sobretudo, a dor une as pessoas.


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Notas finais do capítulo

¹ Ver cap. 18 - Problemas sempre chegam em dobro.



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