Malora escrita por Crica


Capítulo 5
Capítulo 5




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Alguns minutos mais tarde, Dean e Glória estacionavam a caminhonete da fazenda diante de um prédio antigo de apartamentos, próximo à universidade. Ela destrancou a porta de entrada e subiram dois andares até a porta onde se via B5 em caracteres de ferro. Entraram no pequeno mas aconchegante apartamento. Montanhas de livros antigos, papelada com anotações e fitas K7 de um pequeno gravador espalhavam-se sobre uma mesa no canto oposto à porta principal. Glória apontou o sofá e dirigiu-se à pequena cozinha que ficava atrás de um balcão. Ligou a cafeteira e voltou para junto do rapaz, trazendo consigo uma caixa de papelão contendo álbuns de fotos antigas e recortes de jornais com anotações presas por clips de papel. Passaram então a verificar uma a uma, lendo atentamente os detalhes. No meio dos recortes, Dean encontrou um artigo noticiando a morte de um fazendeiro influente da década de 70. Um comentário a respeito de mortes macabras chamou-lhe a atenção. Separou-o para pesquisar maiores detalhes mais tarde.

-O que foi? –Glória estranhou o fato de o rapaz estar farejando o ar como um perdigueiro.

-Que cheiro é esse? – inspirou profundamente.

-Café? – ela sorriu meio constrangida.

-Não...parecem flores...ou...ervas...- inspirou novamente, segurando o ar.

-Ah... são os dois, na verdade.

-Muito bom... você fez a mistura?

-É uma receita antiga – confirmou – algumas senhoras da vila produzem esses aromas com flores silvestres e ervas misturadas a óleos de cereais. – respondeu revirando a caixa de fotos.

-Essas misturas geralmente são usadas como proteção. Outras são para encantamentos...

-Eu sei, mas não acredito muito nessas coisas, não. – Glória levantou os olhos e cruzou com os do rapaz que a observavam. – Quer um café? –levantou afastando-se.

Ele aceitou e recebeu sua caneca de café fresco.

Glória permaneceu de pé, mantendo uma distância segura. Estava bastante desconfortável e não sabia bem como entrar no assunto, mas precisava saber quem era a pessoa que mexia tanto com seu equilíbrio.

-Vocês fazem isso há muito tempo?

-O quê?- ele fitou-a por trás da caneca tomando um gole grande.

-Esse negócio de caçadas sobrenaturais. Isso é sério mesmo? Vocês não estavam brincando comigo?

-Não. Caçamos desde muito jovens, com o nosso pai. E não fique constrangida. Já estamos acostumados com essa cara que fazem...- Dean sorriu - por isso, na maioria das vezes, fazemos o nosso trabalho e ficamos calados a respeito.

-Entendo.- ela brincava com a caneca de café, rolando-a entre as mãos. – Isso me assusta.

-Sabe, às vezes, o medo é a única coisa capaz de ...- seus olhos se perderam no chão por alguns instantes - ... deixa pra lá. - mas logo estava de volta e num sorrisinho desconcertado, retomou sua busca.

Dean levantou alguns recortes e encontrou uma matéria sobre a morte de um padre poucos dias antes do tal fazendeiro dos anos 70. No mesmo recorte falava-se também do desaparecimento da uma jovem de nome Consuelo. Comparou as reportagens e apanhou o celular.

-Sam...Achei.

-Fala aí.

-Tem dois artigos aqui de setembro de 72, registrando as mortes de um fazendeiro cheio da grana e um padre. Ambos sem os olhos e achados nas proximidades da igreja. Tem uma garota desaparecida também.

-Tá. Deixa comigo. Vou descobrir se tem algo relevante nos registros dos jornais e da igreja nessa época.

-Certo. Estou voltando.

-É melhor não, Dean. Já passa da meia-noite e aquela coisa pode estar por aí.Vê se arruma onde ficar. Ou melhor... fica por aí mesmo. Garanto que a Glória te arruma um cantinho no sofá...

-Não enche, Sammy. Vê se dorme um pouco. Você está vendo coisas.- desligou.

-Algum problema? – A moça aproximou-se e sentou numa grande almofada à frente do sofá.

-Não, tudo bem. Esse meu irmão que é um pé no saco.- Dean estava sem jeito (isso é possível?) – Bem... já está meio tarde.... Será que dava pra...

-Claro, sem problema.- ela o interrompeu - vou pegar umas roupas limpas pra você.

Glória retornou com lençóis e travesseiros, juntou o material que haviam espalhado pelo chão e guardou tudo na mesma caixa. Recolheu as canecas de café.

-Posso usar o seu banheiro? – levantou-se, tirando a jaqueta.

-Claro. Fica bem ali. – a moça apontou a porta de correr.

Dean entrou no minúsculo banheiro e fechou a porta. Parou diante da pia e jogou água fria no rosto repetidas vezes. Olhou-se no espelho e pensou com seus botões “Juízo, Dean Winchester. Juízo que essa não é pro seu bico.Não vá fazer besteira.” Sentiu a atividade abaixo da linha do equador e tratou de molhar o rosto mais uma vez.

Quando voltou para a sala, percebeu que Glória já havia preparado o sofá e se recolhido. A porta do quarto estava fechada, mas podia ver o facho de luz por baixo dela. Apagou as luzes, deixando apenas as pequenas velas coloridas acesas sobre uma mesinha rústica. Retirou a camisa e colocou-a sobre a almofada, soltou o cinto. Empurrou o par de botas para o canto e deitou-se, puxando a colcha sobre o corpo.

No quarto, Glória rolava na cama sem conseguir dormir. Rememorava os acontecimentos do fim de semana e a aventura inusitada com os rapazes. Seus pensamentos, vira-e-mexe encontravam o olhar de Dean, fazendo-a suar. Atirou o lençol para o lado. Não havia posição confortável ou sinal de que o sono viria. Levantou-se e vestiu um robe curto num tom de azul claríssimo. Sua mão tocou a maçaneta da porta, mas hesitou. Um passo atrás, tombou a cabeça de encontro à madeira da porta e inspirou . Olhou ao redor e abriu a porta, convicta. Caminhou até a mesa no fundo da sala e apanhou o livro aberto sobre os outros. Ao voltar-se, percebeu que o rapaz  ajeitava-se no sofá e foi até ele, sem fazer barulho. Ajoelhou-se, sentando-se sobre as próprias pernas ao lado dele e ficou ali, observando-o como quem registra cada detalhe, cada tom, todas as linhas. Conseguia ficar ainda mais bonito, assim tranqüilo e relaxado. A tentação de beijá-lo era quase irresistível. Aproximou-se ainda mais, quase roçando seus lábios aos dele. Desistiu. Sorriu e levantou-se com cuidado, tomando a direção da cozinha.

Diante da geladeira antiga, com um copo d’água nas mãos, percebeu o calor da respiração dele por trás de si. Dean já a tinha envolvido, trazendo-a de encontro ao peito.

Por alguns instantes, ambos imóveis.

Dean acariciava com o rosto os cabelos soltos, levemente encaracolados da moça, inspirando profundamente o aroma delicado que deles exalava.

Todos os seus sentidos estavam inebriados, alagados de uma sensação avassaladora. Ela não resistiu e voltou-se. Respiravam o mesmo ar. Quase podiam enxergar através dos olhos um do outro. A proximidade era um convite ao inevitável.

Os lábios entreabertos acharam-se num beijo suave e doce , que crescia, quente, profundo e úmido, levando-os onde os dois queriam estar há muito tempo.


***

No final da tarde de Terça-feira, Dean e Glória voltaram ao hotel.
Ela dirigiu-se aos fundos do prédio, onde ficava a cozinha e as dependências dos empregados. Ele seguiu para o quarto. Sobre a mesa, várias folhas impressas e o caderninho de anotações do irmão. Sam esteve bastante ocupado, pelo jeito. Mas onde estaria agora?

Dean revirava a papelada quando o mais moço entrou.

-Onde você se meteu, Sam? Estava ficando preocupado.

-Fui devolver o livro de registros da igreja antes que alguém desse pela falta dele. – sentou-se na beira da cama, diante do irmão. Sorriu exibindo as duas covinhas laterais com um jeito moleque. – E aí? Tudo bem?

-Claro. Por que não estaria? – o outro levantou a vista, fazendo-se de desentendido.

-Você esteve com a Glória até agora?- Sam tinha uma curiosidade quase infantil –Quero dizer...errr... você sabe... vocês...

-Desembucha logo, Sammy.

-Vocês se acertaram, afinal?

-Meu Deus do Céu, Sam... você é pior do que uma mãe. Cara, você não vai querer os detalhes, vai?

-Qual é Dean? Vocês sumiram desde ontem à noite.

-Tá bom! Quer saber? Nós passamos a noite juntos, ela preparou o café a manhã, eu a levei até o trabalho e depois almoçamos juntos. É isso. Satisfeito?

-Uau! Dean Winchester, você está namorando?!

-Ah, não enche, Sam. Você sabe muito bem que a gente não fica tempo suficiente em lugar nenhum pra namorar.

-Mas pra quem costuma transar e dar o fora antes de amanhecer, passar o dia inteiro junto, é quase um compromisso.

-Tá legal, Sammy. Pense o que quiser. Agora pare de encher a paciência e diz o que descobriu.

-Certo. Não está mais aqui quem falou - Sam aproximou-se do irmão e puxou uma cadeira, exibindo os relatórios e notícias encontrados - Veja: Se compararmos as datas dos crimes e possíveis aparições com os registros da igreja, vemos que há sempre a chegada de um padre e seu desaparecimento ou morte. O primeiro registro desse tipo é de 1907 e algumas semanas antes de o padre sumir, uma jovem paroquiana se matou.

-Ela bem pode ser a tal da malora, se realmente teve um caso com o padre, na época.

-E o pior é que não temos como conferir. Além do mais, não se tem registro da sua sepultura...

-Porque suicidas não podem ser sepultados em solo sagrado.

-Pois é. – o caçula batucava na mesa com uma caneta.

-Bem, se o espírito se vinga e vai embora, não temos mais problemas. O padre Tomás já era.

-Não é bem assim. O padre Tomás está morto, mas há outro padre na igreja agora.

-Mas já? – Dean espantou-se

-É. Dessa vez mandaram uma dupla. E o tal do padre Gerald só não virou panqueca nas patas da mula assombrada porque estava participando de um seminário em outro estado. Ele chegou hoje cedo e parece que ficou bem abalado com as notícias.

-Não é pra menos. Então, vamos fazer a festa hoje à noite? – Dean retirou uma faca de prata do bolso. – Novinha em folha e devidamente lavada com água benta.

***

À noite, Dean e Sam posicionaram-se em meio aos arbustos da pracinha que ficava bem em frente a igreja. Ninguém à vista. A população estava bastante assustada e parecia que não muito disposta a arriscar-se.

Quase meia-noite.

O som de um motor chamou a atenção dos rapazes. Uma caminhonete conhecida dobrou a esquina e estacionou diante da igreja. Glória desceu e, como não viu ninguém, tirou o celular do bolso e ligou. O telefone de Dean tocou no meio do mato. Ela seguiu o som.

-Tenho que lembrar de diminuir o volume dessa porcaria quando caçamos. – dirigiu-se à moça – O que você veio fazer aqui? Não te disse que era perigoso?

-Se vocês vão pegar aquela coisa, eu vou ajudar. Não tem viva alma por aí. Se ninguém aparecer, ela não vai atacar.

-Ela tem razão, Dean.- Sam ponderou - Temos que pegá-la antes que mate o outro padre e suma de novo.

-Está certo. – Dean puxou a garota pela mão. – Nós vamos dar uma volta pra chamar a atenção e você, Sam, vê se acha um lugar pra cair em cima do bicho. Está com a faca aí ?

-Estou. Mas e você ? Vai enfrentar a coisa desarmado? Está doido?

-Isso ajuda? – Glória acenou com outra faca.- Não sou boba, Dean. Estávamos juntos quando comprou a faca, lembra? – Completou respondendo ao olhar surpreso do rapaz.

-E não esqueçam: se não conseguirem feri-la ou se isso não funcionar, deitem com o rosto virado para o chão e escondam as mãos. – Sam recomendou – E não olhem nos olhos dela de jeito nenhum, ok?

Dean e Glória concordaram com um gesto e saíram para a rua, passeando sem tirar os olhos do caminho. Ele segurou firmemente as mãos trêmulas da moça e lançou-lhe um olhar by Clint Estwood : “vai ficar tudo bem”. Continuaram caminhando pela praça.Um vento frio soprou e até os grilos se calaram. Ouviram um choro sofrido ao longe que crescia com o aproximar do galope. Estavam congelados. Atrás dos dois, um relincho apavorante e o calor do hálito de um animal apavorante, com as patas dianteiras em riste, os olhos vermelhos flamejantes e a fumaça a sair-lhe pelas ventas. Sam saiu do meio das sombras e cravou a faca no lombo do animal que, ferido, voltou-se para ele, atingindo-o com os cascos. Tonto pelo golpe, caiu.

-SAM!!! O ROSTO! - Dean gritou apavorado ao ver o irmão caído.

Glória ficou paralisada pelo terror. Não conseguia mover um músculo sequer. Dean tomou-lhe a faca de prata e partiu para cima da malora, em socorro do irmão. Porém, a assombração enfurecida, acertou-o no peito com um coice que o fez voar até o outro lado da calçada, inconsciente. Sam voltou-se para o chão, escondendo o rosto e as mãos. A mula então seguiu na direção da moça que estava de pé no meio da rua, com os olhos arregalados e o corpo todo tremendo. Em meio ao silêncio da noite, o som dos cascos de encontro ao asfalto era assustador. O animal dirigia-se a Glória devagar, bufando calor e quando estava bem próximo, empinou-se nas patas traseiras ameaçadoramente, fazendo a garota gritar com toda a força de seus pulmões. Sam levantou-se cambaleante, limpando o sangue que corria de sua testa e tentou ajudá-la, segurando os arreios da malora, mas, mais uma vez foi arremessado longe. A jovem agarrou os freios que se prendiam á boca do animal, mas não conseguia soltá-los. O calor era forte e quanto mais ela puxava, mais quente se tornavam, até que a cabeça do animal incendiou-se por completo, ferindo-lhe as mãos. Do outro lado da rua, Dean voltava a si  e, com a visão um tanto embaçada, assistiu ao momento em que Glória puxou os freios com toda a sua força do meio das labaredas. A malora aquietou-se e foi, pouco a pouco, tomando a forma de uma mulher morena, translúcida, de expressão melancólica que, finalmente, desapareceu.

Sam sentou-se na calçada, exausto, apertando o corte que ainda sangrava.

Dean caminhou até a garota ainda estática. Tirou-lhe os arreios da mão e atirou-os longe. Os dois abraçaram-se e permaneceram assim por algum tempo.

 

***

Na manhã seguinte, os irmãos receberam um chamado do mecânico informando-lhes que  os reparos no carro estavam prontos. Era chegada a hora de retomar a estrada. Arrumaram a bagagem e no meio da tarde fecharam a conta na hospedaria. O avô de Glória afastou a mão de Sam que segurava o cartão de crédito  e, num sorriso largo e simpático, deixou claro que as despesas adicionais seriam por conta da casa. Nem era necessário explicar porque.Aquele  era um homem justo e sabia perfeitamente que nenhum dinheiro pagaria o favor que os meninos prestaram à  sua  comunidade.

 

Do lado de fora, alguns minutos mais tarde, Dean arremessava as mochilas dentro do carro.

 

Samuel passou pela porta principal e atravessou a varanda acompanhado pelo velho Fernando. Apertou-lhe as mãos e foi calorosamente abraçado pelo outro.

 

-Tenho uma coisa aqui para você, meu rapaz. – Dom Fernando entregou a Dean um pedaço de papel dobrado. – Minha neta é avessa à despedidas.

 

Dean leu o conteúdo, dobrou novamente o bilhete e guardou-o no bolso da camisa. Ofereceu a mão ao senhor à sua frente e, em retribuição,recebeu um grande abraço apertado. Dirigiu-se ao banco do carona.

 

Já na estrada,o mais jovem estranhava o silêncio do irmão.


-Tudo bem? – Samuel quis saber.

-Só meio dolorido - Dean apalpava o peito – aquela coisa tinha um coice e tanto. Não sei como não quebrei as costelas.

-Não é disso que eu estou falando. – fitou-o  de lado.

-Está certo, Sammy. – Dean olhava a estrada. – Você parece que está lendo mentes agora. Tenho que tomar cuidado com você, cara.

 

O caçula deu-lhe outra olhadela decisiva.

 

-Vai ficar tudo bem. – Dean encerrou o assunto

-Sabe, Dean? Você deveria casar com ela... – encarou o irmão que respondeu, em silêncio, com uma expressão toda sua. – Estou falando sério, cara. Pensa bem : ela sabe quem somos, o que fazemos e não fugiu apavorada nem nos chamou de loucos. E tem que admitir que a garota tem coragem... Qual é? ...Não vai dizer nada?

-Não. – Dean achava graça da insistência do irmão.

-Vai dizer que não gosta dela? Que foi só mais uma transa? Você não me engana...

-Vamos combinar assim, Sammy, quando essa porcaria toda acabar, vamos à Nova Iorque pra você pegar a Sarah e voltamos. Faremos um casamento duplo: eu e a Glória, você e a Sarah, ham?

-Tá aí. Boa idéia. Um emprego decente, uma casinha branca com flores no jardim e as crianças correndo...

-Meninos correndo, Sammy, meninos.

-Por que só meninos ? Meninas são lindas... e são bem legais, Dean.

-É, mas elas crescem e os caras vão começar a aparecer... e partir pra cima delas com aquelas mãos cheias de dedos... e toda aquela conversa mole... sabe como é...

-Tem razão... vamos acabar tendo que caçar os sujeitos. Isso não vai dar certo... Posso até ver você atiçando a shotgun no ar e os caras correndo apavorados!-Sam divertia-se com seu devaneio.- Você tem razão.Só meninos... é melhor.


-Eu sempre tenho.Fechado, então. Agora cala a boca e dirige.

 



FIM


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