Uma Estranha Missão escrita por Carlos Abraham Duarte


Capítulo 3
Intermezzo


Notas iniciais do capítulo

Em ópera e teatro em geral, "intermezzo", ou "intermédio", é um trecho que serve de transição entre dois atos ou duas cenas, ou um divertimento secundário - tipo danças, declamações etc - que costumava ser apresentado, antigamente, no palco, durante os intervalos de uma peça, ou,ainda, um pequeno filme que se apresenta no intervalo de um espetáculo.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/97713/chapter/3

Aeroporto Intercontinental George Bush, Houston, Texas.

De sua poltrona junto à janela do avião, Kaguyahime Kurayama - aliás, Hirumi Kamiya, segundo constava em seu passaporte - via a pista de aterrissagem se aproximar cada vez mais. O avião, um imenso Airbus A320-200 a serviço da All Nippon Airways, estava perdendo altitude. Pousariam em questão de minutos. Eram dez horas da manhã, hora local.

"América, chegamos... De novo", ela refletiu.

Não era a primeira vez que a bela e fatal youkai-gato atravessava o oceano para o Novo Mundo. Não seria a primeira vez que pisaria terras americanas no desempenho de uma missão. Como ninja mercenária e assassina de aluguel, seu trabalho a conduzira aos prodígios e à brilhante miséria de Nova Iorque, Los Angeles, San Francisco, Chicago, Washington, Detroit, Toronto, Vancouver, Ciudad México, Caracas, Bogotá, Buenos Aires, Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro. Sempre os grandes centros onde o poder se concentra. Era lá que ela encontrava seus alvos, suas vítimas. Desta vez, não. Esta missão, este serviço era completamente diferente dos anteriores. Seu próximo "alvo" a ser erradicado se achava num lugar chamado Angel Falls, uma pequena cidade típica do sudeste do Texas: pacata, tediosa, misteriosa... Um pequeno paraíso. E um polo de atração de fenômenos paranaturais (embora nada que se comparasse à famigerada "Boca do Inferno" que havia em Cleveland, uma porta induzida para dimensões demoníacas); dizia-se que, depois do pôr do sol, os cidadãos mundanos davam lugar a toda uma plêiade de indivíduos dotados de habilidades paranormais e seres estranhos e apavorantes oriundos "de fora", extraplanares, como se existisse uma cidade dentro da cidade, uma Angel Falls à noite, proibida para os habitantes diurnos. Kaguyahime recebera da Liga das Sombras a missão de neutralizar os mais bem dotados desses seres, anjos e demônios, bruxas e híbridos mutantes que poderiam atrair atenções indesejadas para a área. Uma missão perigosíssima, muito mais do que qualquer outra, mas MUITO bem paga; e isso era tudo o que importava.

– Senhores passageiros, apertem os cintos e deixem as poltronas como estavam antes - disse a encantadora aeromoça, num inglês com sotaque nipônico.

O avião pousou, taxiando com facilidade na pista. Kaguyahime desembarcou e caminhou em direção à barreira do aeroporto com passos rápidos e decididos. Entregou seu passaporte ao agente alfandegário uniformizado, que carimbou um visto de turista e disse, cortês:

– Espero que aproveite sua estada nos Estados Unidos da América, Ms. Kamiya.

Kaguyahime agradeceu e dirigiu-se para a esteira de bagagens, sentou-se diante da mesma e esperou pacientemente que sua mala aparecesse. Enquanto esperava, com o olhar vazio e o semblante impassível, pôs-se a refletir.

Hirumi Kamiya. Essa sou eu. Sim, ela sabia perfeitamente que aparência tinha, aos olhos obscurecidos daqueles seres humanos "tapados", por conta do feitiço de kitsune que usava como camuflagem: uma jovem e linda moça japonesa de vinte e três anos, 1,70m de altura e um corpo roliço, belos seios firmes, redondos, pernas longas e pulsos finos, tez amorenada, e um rosto oval com grandes olhos castanhos amendoados, e longos cabelos da cor do azeviche, com as pontas onduladas, que desciam até o meio de suas costas. Suas roupas eram discretas: vestido lilás curto, indo até a altura dos joelhos, blazer preto aberto, meia-calça transparente, e sapatos de salto alto, tudo bastante simples, suave e sutil, visando atrair o mínimo possível da atenção de terceiros - especialmente de inimigos em potencial. Os lábios macios e suaves estavam pincelados de batom rosa-claro, sua única maquiagem, que só fazia realçar o ar meigo e fresco de seu rosto.

Pouquíssimas criaturas, humanas ou não, sabiam o quanto essa aparência de fragilidade e delicadeza era enganosa. Bela e fera! Ela era ambas. Ela, a melhor espiã, ninja e assassina profissional de dois mundos, o dos humanos e o dos youkais. Nenhuma Mata Hari, nenhum Richard Sorge podia comparar-se a ela, tampouco Miyamoto Musashi ou Jiraiya, porquanto cada um deles não tivera mais que uma única mísera vida humana para aperfeiçoar suas artes e habilidades, ao passo que ela, Kaguyahime Kurayama, uma youkai, dedicara três ou quatro séculos, o equivalente a muitas vidas humanas, para aprender e se aprimorar em todas as formas concebíveis de iludir, incapacitar, aleijar e matar um homem, valendo-se para isso tanto da magia youkai quanto dos avanços tecnológicos no mundo dos humanos (pelos quais os youkais em geral sentiam inato desprezo).

Ela pensou em Shinoda-san, o chefão da Yakuza que a contratara para eliminar Hiroshi Tendo, candidato ao governo de Tóquio pelo Partido Liberal. Kenichi Shinoda estava morto, igualmente morto; ela o matara, por sua vez, a mando de um oyabun rival, antes de viajar para os Estados Unidos. E, sob a falsa identidade de repórter freelancer, vendera - por e-mail - a matéria do assassinato, com exclusividade, para alguns dos maiores jornais do Japão, assim como fizera, dias antes, com o furo jornalístico da morte "misteriosa" de Hiroshi-san. "Sim, eu os mato, depois noticio, e em ambos os casos, eu ganho. É disso que tenho vivido nas últimas décadas. E por que não? Humanos matam humanos o tempo todo, é da natureza deles. Bem, tanto melhor pra mim", ela sentenciou mentalmente, com um sorrisinho malevolente. "Eu uso sua própria tecnologia contra eles, que trucidaram minha família, minha tribo, há muitos séculos, eles que, com sua ganância e insensibilidade, seu industrialismo sujo, vêm destruindo nossa Terra - nossa Mãe - há mais de cem anos. É por isso que os mato. E, com o que me pagam, ajudo a salvar o Planeta e lutar contra a destruição gradativa da Mãe-Terra. Que ironia!"

Kaguyahime tinha motivos de sobra para odiar os humanos. Sua raça, os Laguz, feras negras sobrenaturais semelhantes a grandes gatos ou panteras, eram considerados youseis, ou seja, youkais ligados à natureza e aos espíritos da natureza. Eles, os youseis, contavam-se entre os últimos protetores da Terra e suas criaturas fantásticas, seres a um só tempo materiais e espirituais, sendo esse dom uma dádiva divina. Do Kami-sama, de todos os kamis. Os seres humanos, materialistas como são, romperam com o restante da Criação, declararam guerra contra a natureza, dizimaram as plantas e os animais. Kaguyahime quase chegava a simpatizar com os ideais da Fairy Tale, a organização terrorista youkai que tinha como objetivo específico extirpar os humanos da face do planeta.

Kaguyahime concluiu suas divagações ociosas no exato momento em que a esteira principiou a expelir as bagagens dos passageiros do seu voo. Por fim apareceu sua mala; ela a recolheu e seguiu direto para a alfândega. Sem dizer uma palavra, deixou que os novos detectores de raios-T do aeroporto escaneassem sua bagagem. Tidos como a última palavra em matéria de alta tecnologia, funcionavam na faixa de teraherz compreendida entre os raios infravermelhos e as micro-ondas, fazendo o mesmo trabalho que os detectores que usam raios-X, mas sem emitir radiação prejudicial à saúde. Tolos! A bela youkai felina sorriu mentalmente. Ninguém da segurança do aeroporto seria capaz de imaginar que tanto sua bagagem quanto ela própria contavam com a proteção de camadas de metamaterial que agiam como bloqueadores para faixa de teraherz, inviabilizando os detectores e tornando o que carregava nos bolsos da roupa e na mala invisível para os mesmos. Tratava-se de um aperfeiçoamento de uma técnica desenvolvida recentemente pela equipe do Dr. Cheng Sun, da Universidade Northwestern de Illinois, e inda em fase experimental, mas que havia sido roubada por espiões ninjas do clã Lin Kuei, debaixo dos narizes dos pesquisadores.

"Eu uso a própria tecnologia dos humanos contra eles", ela pensou satisfeita. Foi assim que seus isntrumentos de trabalho - chakram geminado de Luz e Trevas, dois katares e um sortimento de shurikens, todos forjados em "bronze sagrado", katana de mithril, junto com um Orbe de quartzo e cristais feitos para manipular armas e energia astral, além de um videofone celular "atômico", que utiliza os múons ao invés das ondas eletromagnéticas - passaram despercebidos pelos rigorosos controles de segurança do segundo maior aeroporto do Texas - e sem gastar mana ou youki para tanto, nem um erg de energia mágica.

Ao atravessar o portão de saída, Kaguyahime não tinha quaisquer dúvidas sobre qual seria sua primeira tarefa em Houston: localizar seu contato, elo de ligação entre ela e seu misterioso empregador da Liga das Sombras. Não sabia se seria homem ou demônio. Deu uma circulada pelo setor de desembarque, procurando "sentir" a energia espiritual, o padrão vibratório imperante no lugar. Nada de youki ou jyaki. Nenhuma energia sinistra ou maligna.

Foi quando viu uma estranha figura de indiano, imóvel nas sombras ao longe. Alto, magro, tez escura cor de azeitona e barba negra até o peito. Vestia um terno marrom-escuro de tweed com colete e um turbante azul-claro de gaze leve, de três voltas, enrolado na cabeça. Um sikh, talvez? Ele olhava fixamente em sua direção com um par de olhos escuros muito vivos e penetrantes, que pareciam observar através de uma distância astronômica por detrás do rosto impassível que nem uma máscara. Mais do que observar, transpassavam. Pareceu a Kaguyahime que perscrutavam dentro dela - sua mente, sua alma.

Seria ele o seu contato? Ao analisar-lhe a aura, Kaguyahime constatou, para sua surpresa, que aquele homem possuía um campo biopsicoenergético diferente de tudo que ela conhecia. "Não é o youki dos demônios de Makai, nem o reiki dos humanos de Ningenkai, muito menos o tenki dos anjos de Tengoku", ela ponderou consigo mesma. "É como se fosse uma energia vital a qual não estou acostumada..."

Uma suspeita horripilante surgiu na mente da youkai. Cyrus Abrahams, um homem vindo de outra linha temporal - praticamente um Universo alternativo ou "paralelo" - , tinha contado a ela acerca dos "infiltrados", de uma raça de seres inteligentes oriundos de fora do planeta Terra, extraterrestres, que não passavam de supercérebros gelatinosos incorpóreos capazes de se apoderarem de corpos terráqueos para usar como hospedeiros, entrando pelas vias nasais e aniquilando-lhes o cérebro original. Invasores de corpos!

E se o indiano fosse um deles? Afinal, já "possuíam" Bill Gates e Colin Powell, entre outros hospedeiros humanos, se se der crédito às revelações de Abrahams. E se agora estivessem atrás de "possuir" o corpo preternatural de um youkai, o dela, por exemplo?

Todavia, a figura misteriosa de turbante e barba negra sumiu nas sombras tão abruptamente como havia surgido. Kaguyahime nem se dignou em ir ao seu encalço.

Em apenas alguns minutos, o contato de Kaguyahime deu-se a conhecer no setor de desembarque lotado. Apresentou-se como Sam Leukowitz - seria seu verdadeiro nome? Kaguyahime tinha suas dúvidas - e era um homem taciturno, magro e alto, aparentando uns trinta e tantos anos, de pele pálida, cabelos castanhos ondulados e olhos castanho-claros. O terno cinza e camisa preta que trajava pareciam tão soturnos e pouco comunicativos quanto sua aparência física. "Se esse cara é um demônio ocidental, então sabe esconder seu youki muito bem, fazendo-se passar por humano, pra evitar ser detectado", concluiu a youkai, que falhara em rastrear a aura de energia sinistra do sujeito no meio da multidão humana.

Sam Leukowitz pegou a mala dela, e juntos deixaram o setor de desembarque do aeroporto. A youkai-gato teve a oportunidade de experimentar a primavera ensolarada do sudeste do Texas, com poucas nuvens e o céu muito azul. Ela e seu acompanhante tomaram o ônibus circular até o balcão da locadora Beckwith. O dono da locadora era um homem de aparência suspeita, um verdadeiro gigante de 1,96m de altura e pesando em torno de 130kg, barba por fazer e cabelos pretos compridos e ensebados. As calças camufladas e a jaqueta surrada que ele vestia insinuavam tratar-se de um veterano das Forças Especiais do Exército Americano, os temíveis "boinas verdes"; porém, aquele tipo de uniforme podia ser encontrado sem muita dificuldade em qualquer loja de roupas usadas das grandes cidades dos E.U.A. O homem, que devia ter seus quarenta e cinco anos, apresentou-se como sendo Brian Bigman Beckwith, "ou, pra encurtar, BBB."

Kaguyahime leu os pensamentos daquele humano - que olhava para ela de cima a baixo, como quem contempla um animal raro - e ficou revoltada.

"Se ousar me tocar, eu o retalharei com minhas garras", ela prometeu mentalmente.

Kaguyahime preencheu os formulários com sua identidade falsa, Hirumi Kamiya; Sam Leukowitz fez o mesmo. Ela sabia o quanto era privilegiada em relação à maioria dos youkais japoneses, que, por não terem passaporte, estavam impedidos de viajar ao exterior por causa do controle de imigração dos humanos. Ela dispunha de vários passaportes falsos, e de recursos para transformá-los em verdadeiros, como microchips.

Havia um velho Ford Crown Victoria 1994, reformado e repintado de vermelho, esperando por eles. Era nele que deveriam ir para Angel Falls.

– Aí está - disse BBB fazendo um gesto na direção do sedan e exibindo um sorriso de dentes amarelos. - É exatamente o que vocês pediram: "direto" e "rápido".

Kaguyahime olhou para Sam com ar de desgosto. - Eu poderia acrescentar mais dois adjetivos: "sujo" e "fedido". - E, em pensamento: Tal carro... Tal dono! Seu olfato de youkai era dez mil vezes mais sensível que o de um reles primata da espécie Homo sapiens.

O sorriso não se apagou do rosto barbado de BBB. - Também tem freios ABS e controle de tração, entre outros melhoramentos. E rodas de aço. Dá pra chegar a 130km/h.

Kaguyahime objetou que poderia chegar à cidadezinha por "seus próprios meios" - e em menos tempo - , mas Sam rebateu que tais eram as ordens recebidas.

– Você deve chegar a Angel Falls de modo absolutamente normal e natural - disse ele, lacônico, acendendo um cigarro. - Não queremos que "certas pessoas" descubram cedo demais quem e o que você é.

Virou-se para BBB. - Negócio fechado - disse. - Eu levo Ms. Kamiya até Angel Falls e a deixo lá, e em seguida retorno a Houston. Tudo em menos de cinco horas.

– De acordo, então - retrucou BBB, enquanto Sam punha a bagagem da moça no porta-malas do carro. - Agora, fala sério, gatinha! - murmurou ao pé do ouvido dela, com segundas intenções. - O que é que uma gata oriental como você vai fazer numa cidadezinha tacanha que nem Angel Falls? Cá pra nós, o melhor lugar do Texas pra gente se divertir é...

– Do que é que você me chamou? - Kaguyahime de pronto ergueu a mão delicada; as venenosas garras afiadas haviam saído das bainhas.

– Ei! Fica fria, gatin...

Não completou a frase.

"Malditos humanos! Odeio todos eles!", Kaguyahime praguejou mentalmente. Apesar do abismo interposto de quatrocentos anos, ainda guardava viva a lembrança horripilante dos canalhas humanos que, após seu pai e sua mãe serem assassinados pelos taijiya - exterminadores de youkais - , estupraram-na e torturaram-na durante horas e horas com requintes de crueldade...! A ela, então um filhote de youkai-pantera negra incapaz de se defender sozinha...! Gatinha... Gatinha...! Ah, os bastardos humanos a chamavam assim, neko-chan, enquanto abusavam dela... Violentaram seu corpo e sua alma...! Mesmo depois de quatro séculos, aplicar a ela aquela palavra costumava ser mortalmente perigoso, porquanto as sequelas psico-traumáticas permaneciam gravadas, indeléveis, na sua psique.

"Não se pode confiar nessa raça amaldiçoada, nem depois de quatrocentos anos!", pensou Kaguyahime, repetindo o velhíssimo aforismo youkai, suas pupilas ovais dilatadas parecendo um par de azeitonas pretas de tanta tensão. Ela e Leukowitz entraram no carro, deram a partida e saíram. Sem mais delongas.

Humanos... Ela odiava a todos, exceto um. Cyrus Abrahams, criptozoólogo, iniciado nos Mistérios Menores, projetor consciente, um ser humano nascido em outro Universo, um universo paralelo - e acima de tudo, o amigo dos animais, em particular dos gatos. Pois a forte amizade daquele homem com a espécie felina era notória, e comentada amiúde nos locais onde os gatos (quer fossem youkais ou normais) se congregavam. Kaguyahime pensou nele por um instante. "O único ser humano macho, da espécie Homo sapiens, que eu posso chamar de 'amigo'... e algo mais!", ela sorriu mentalmente, sem mexer os lábios.

A estrada que conduzia a Angel Falls era longa, reta e deserta. Rumavam para o sul, perto da uma da tarde, calculou Kaguyahime. Passaram por uma placa verde, onde se lia, em inglês: ANGEL FALLS - 120 KM.

– Afinal de contas, quem vocês querem que eu "delete"? - Ela interpelou Leukowitz, que guiava o automóvel. Sondou cautelosa a mente do outro, mas deu com um hipnobloco.

Sam Leukowitz tinha erguido um bloqueio volitivo isolando seus pensamentos.

– Desista, colega - disse ele, lacônico. - Telepatas melhores que você já tentaram penetrar no meu cérebro e falharam. Quanto à sua pergunta... Você vai saber na hora certa.

E pisou fundo no acelerador.

****************************************

Evergreen Hotel, Angel Falls.

O aposento não tinha sido varrido, e o pó cobria os móveis. As paredes listradas em creme, marrom e rosa faziam-no parecer, assim pensava a moça de pele escura sentada na cama forrada com um lençol azul-marinho, um grande sorvete napolitano. A TV não era a cabo - imperdoável! - e o ar condicionado vazava dentro do quarto. Da janela dando para a rua subia o barulho dos carros e dos bares, restaurantes e lojas nas imediações do hotel.

"Tudo bem", ela pensou, num laivo de bom humor. "Já encarei coisa pior, muito pior mesmo, nas cavernas das montanhas de Tora Bora, no Afeganistão, em 2001." (O então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, a contratara para eliminar sigilosamente Osama bin Laden, pouco depois dos eventos de 11 de setembro, e ela o fez. Todavia, por motivos francamente políticos, o governo estadunidense ocultou do resto do mundo o fato de que o líder supremo da Al-Qaeda fora morto em dezembro de 2001, mantendo bem vivo o espantalho da ameaça terrorista árabe-islâmica até que, em 2 de maio de 2011, armaram o palco para a morte "oficial" de Bin Laden, em Abbottabad, Paquistão, em uma impostura magistral envolvendo a JSOC, a CIA e o governo paquistanês, com o aval do novo presidente americano, Barack Obama. "No interesse supremo do American Way of Life, do sonho americano, do Império Americano", sentenciou Kaguyahime com ironia. "Os fins justificam os meios.")

Kaguyahime ocupava um quarto no segundo andar de um prédio de quatro andares, um hotel barato localizado no cruzamento da Reyes Street com Garcia Street, bem próximo do centro. Os funcionários eram pessoas prestativas. Sam Leukowitz a deixara no hotel e tratara de dar o fora, presumivelmente de volta a Houston. Antes, porém, ele entregou-lhe um pequeno dossiê lacrado (o dom da psicometria permitiu-lhe "ler" nesse dossiê os traços de youki de um poderoso Mestre do Terceiro Círculo de Mistério da Liga das Sombras), com a seguinte recomendação:

– São todos seus alvos em potencial. Estude-os.

Era o que ela fazia naquele momento. Estava concentrada na leitura da papelada em suas mãos. Sozinha no quarto do hotel, abandonara seu disfarce de humana, revertendo para a forma humanoide de mulher youkai de pele ebânea, quase negra, olhos verde-amarelados brilhantes de pupilas verticais elípticas e orelhas pontudas "élficas". Seus cabelos lisos espelhados, que de tão negros emitiam reflexos roxos ou azuis, batiam-lhe nos quadris.

"Que coisa extraordinária!", ela ponderou. "Como pode uma cidade insignificante, que sequer constitui um ponto focal de energias místicas, uma 'boca do inferno', como eles dizem neste país, concentrar tamanha quantidade de criaturas paranaturais?"

Seus pensamentos gravitavam em torno de uma pergunta: Quem dentre eles eu devo matar? Ou todos eles?

O "terrível bandinho" que vinha incomodando seus empregadores - "botando ventilador na farofa" de cada pretenso ser maligno que dava o ar de sua desgraça, para usar uma expressão coloquial típica do Brasil, país onde ela tinha "trabalhado" mais de uma vez - consistia de alguns jovens de várias raças, sobrenaturais ou não. "Hmmm... Temos aqui um xamã que é protegido por um espírito de samurai; um vampiro ex-humano de nível D; um kitsune com duas caudas, do deus Inari; uma anjo fêmea 'rebelde' da casta dos Captare; uma líder de torcida que gosta de coisas sobrenaturais; um dhampir, meio-vampiro e meio-humano; um caçador de vampiros nascido com a força de vários homens; uma dupla de 'demônios' exilados de uma dimensão paralela; um híbrido meio-demônio e meio-humano que tem o poder de criar uma realidade 'alternativa'; um garotão americano típico, atleta, popular, com uma 'sensibilidade espiritual' acima da média."

Ela parou de ler e colocou o dossiê na mesinha de cabeceira. Não gostava de matar criaturas sobrenaturais, apesar de antipatizar fortemente com certas raças, como vampiros e ghouls ("os humanos são nossos inimigos comuns", justificava-se), mas havia um trabalho importante a ser feito e ela era antes de tudo uma profissional. E, por sinal, muito bem paga. (Já os caçadores, ou "caça-vampiros", ainda eram mais humanos do que sobrenaturais. Em sua opinião, eles em nada diferiam dos taijiya que mataram seus pais no Japão medieval. Simplesmente faziam o serviço sujo para os humanos normais, que eram fracos. Ela os mataria de consciência tranquila.)

Não obstante, havia algo de profundamente dissonante - comovente até... Humanos e ayashis, amigos e companheiros de armas? Onde ela já vira isso antes?

Amigos leais, pelejando para salvar o mundo... Enfrentando vampiros de nível E, magos negros, demônios e outras forças das (falsas) trevas... Estranhamente, traziam-lhe à lembrança um outro círculo de jovens amigos - duas irmãs vampiras, duas bruxas, uma súcubo, uma mulher das neves e um ghoul/humano - que já cruzara caminhos com ela, no País da Neve e numa pousada japonesa à beira-mar. Todos estudantes da Escola Youkai, apadrinhados por seu amigo Cyrus Abrahams, almas corajosas que não tiveram medo de enfrentar os demônios gângsteres da mortífera Fairy Tale. Jamais desconfiaram de que ela, Kaguyahime Kurayama, os observava das sombras (na forma de um gato preto). Contra sua própria vontade e todos os preconceitos, ela admitira simpatizar com aqueles jovens tão desiguais, a despeito de estarem ajudando a raça humana contra os youkais pela posse do planeta. Estaria tal situação prestes a se repetir em Angel Falls, uma pequena cidade do sudeste do Texas, nos Estados Unidos da América?

Kaguyahime não tinha pressa. Quando terminasse seu serviço em Angel Falls voltaria para o Japão e encararia sua mais nova proposta de trabalho. Sua próxima missão.

"Matar o todo-poderoso Tenmei Mikogami, o Exorcista, Diretor da Escola Youkai!"

"Nada menos que um dos três temíveis Lordes Sombrios, Mestres da Magia."

Isto poderia representar o ápice de sua carreira de assassina profissional - ou o seu fim em meio a horrores inenarráveis.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Este capítulo pode ser visto como uma espécie de "tapa-buraco", mas também funciona como uma transição para os próximos, além de discernir o perfil psicológico e as motivações de uma das personagens principais. Futuramnte teremos o encontro e eventualmente conflito entre uma assassina de aluguel youkai que odeia profundamente humanos e um taijiya humano (nascido no Brasil) treinado para odiar e matar youkais. Vamos ver no que dá!
Baseei as minhas referências a George W. Bush, Barack Obama, Bill Gates etc, em algumas teorias conspiracionistas mais em voga nos E.U.A. e na internet; o resto correu por conta da minha imaginação mesmo, pois eu adoro mesclar ficção e realidade.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Uma Estranha Missão" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.