Capturado

''Ah, anda, não é assim tão r...''

'' Cale a boca'' Rosnei, sem um pingo de paciência '' ou, eu juro, eu vou...''

'' Vai o que? Me bater?'' A voz de Ian nunca tinha soado tão irritante para mim como soava agora. '' Você está usando o meu corpo, gênio.'' Eu o ignorei, sabendo que ele só estava tentando me distrair para que eu não conseguisse me lembrar da rota que tínhamos tomado para vir até ali. Ian suspirou ''Olha, se você me der a chance de explicar...''

'' Você vai mentir para mim de novo'' Cortei.

'' E se eu prometer não mentir?''

''Eu não confio em você'' Droga, por que o deserto tinha que ser tão igual? Nada diferia o chão que eu pisava do que estava a um quilometro à minha frente, ou o que eu tinha acabado de deixar para trás. Eu podia andar em círculos por horas, sem nem notar.

Uma onda de excitação subiu pela minha garganta assim que a última frase saltou nos meus pensamentos e eu grunhi, incomodado.

'' Desculpe'' Disse Ian ''Foi automático.''

''Tanto faz para mim.'' Disse, em uma tentativa de encerrar o assunto: a última coisa que eu queria no momento era entrar em uma discussão sem sentido com Ian. Pelo menos por aquele dia, o que eu mais queria era o silêncio.

Uma leve hesitação veio de Ian e percebi que ele queria me dizer alguma coisa que não tinha certeza se deveria dizer. Aquilo para mim estava muito bom, contanto que ele decidisse em silêncio.

Claro que eu deveria saber que ele se decidiria por falar.

'' Então, qual é o plano para agora?''

Não me incomodei em responder, apenas deixei que as imagens fluíssem pela minha mente.

'' Onde foi parar aquela história sobre Peg poder se machucar se nós chamássemos os buscadores?'' Senti uma nota de irritação mal contida na voz de meu hospedeiro.

'' Para o inferno junto com a idéia de que Peg tinha qualquer coisa boa dentro dela'' Retruquei.

'' Peg é uma das melhores pessoas que eu já conheci'' Murmurou Ian na defensiva.

'' Isso é porque você é humano, seus valores são todos tortos. ''

'' Se os meus valores são tortos, os seus também são: Nós temos idéias parecidas. ''

''Eu não acho que uma pessoa como Peg seja boa. ''

'' Isso é porque você não a conhece. ''

'' Bom para mim''

Ian ficou em silêncio por um momento, irritado.

'' Eu juro que não sei como você consegue defende-la. '' Bufei.

Não houve resposta e eu bufei para a teimosia de meu hospedeiro. Ian sabia ser bem cabeçudo de vez em quando.

- SOCORRO! – O grito raspou na minha garganta, sem qualquer autorização da minha parte, e ecoou por todo o deserto.

'' O que é que você pensa que está fazendo?'' Rosnei, mas Ian não estava mais me ouvindo.

- ESTAMOS AQUI, SOCORRO!

'' Ian, cale a boca!''

'' Não''

- SOCORRO!

 Apliquei toda a minha força de vontade em cima de Ian e consegui, finalmente, que sua quarta tentativa de produzir um grito passasse pela minha garganta com a intensidade de um gemido.

''O que é que você pensa que está fazendo? Não tem ninguém para te ouvir aqui!''

Ian arfou e tentou traficar mais um grito clandestino pela minha garganta, mas conseguiu o mesmo gemidinho fraco da tentativa anterior.

'' Ian, você enlouqueceu? Pra quem você está pedindo socorro, para a areia? Para as pedras? Pra quem?''

Já dizia um ditado humano que nada é mais perigoso que um homem que não tem nada a perder e, embora eu sempre o tenha achado um tanto vago (como alguém poderia chegar a um ponto em que não tem nada para perder?), nunca havia presenciado aquela sensação pessoalmente.

Até aquele dia.

Era incrível; Eu já tinha ouvido falar que os humanos, quando perceberam a nossa presença, fizeram rebeliões e reclamaram toneladas, pois diziam que nós roubaríamos sua liberdade. Para nós, almas, isso era visto com tanta importância quanto a critica de uma criança à uma equação mecânica, porque nós sabíamos que humanos não tinham a menor idéia do que era ser livre.

Eles achavam que eram livres por poderem construir suas vidas em um intrincado equilíbrio social, em que o conceito de ''sucesso'' era único e praticamente imutável; não importava o quanto uma pessoa era feliz, ela sempre seria vista como um fracasso que vive as margens do sistema se não tivesse riquezas, poderes ou influências, quaisquer que fossem elas. ¹

Mas essa minha certeza foi obrigada a se modificar quando eu senti nas minhas próprias células a liberdade que Ian estava sentindo nas dele.

Sem preocupações, sem remorsos, sem inseguranças, sem raciocínio; Era única e exclusivamente um ato. Um ato de quem não tinha nada a perder com ele. Eu consegui mapear seus pensamentos e conclui que seus gritos eram nada mais do que uma última medida de desespero, uma esperança vã e infundada, um apelo à divindade a qual ele acreditava, um pedido de ajuda a quem estivesse ouvindo, fosse quem fosse.

E naquele momento minha raiva desapareceu e deu espaço à pena.

'' Ian, não tem ninguém ouvindo, é sério'' Eu coloquei tanta gentileza quanto eu consegui em meu tom, mas senti sua presença se encolhendo em desesperança mesmo assim.

'' Ian, olha...'' Click.

Eu franzi as sobrancelhas, interrompendo o que ia falar. Aquele som não era da paisagem, era? Dentro da minha cabeça, Ian arfou e eu senti meu sangue se misturar com uma dose cavalar de serotonina² quando a esperança voltou a encher a parte de consciência que Ian ainda possuía.   

Eu estava completamente confuso. Como um estalido, um som fraco como o de um gatilho sendo acionado, podia surtir esse efeito sobre...

Eu me virei rapidamente, assim que eu entendi o que deveria estar acontecendo e me deparei com o cano metálico de um revólver apontado diretamente para o meu pulmão, ironicamente onde o tiro do Buscador tinha acertado antes. Por detrás dele, o homem que segurava a arma e mais uma mulher com um facão de caça.

- Nem pense em fugir.