O Vazio do Vício escrita por luananana


Capítulo 1
O vazio do vício




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    Aquele toque personalizado ecoou na sala bagunçada e vazia de Bert McCracken. Há algum tempo, a moradia era um lugar onde ele poderia encontrar o amor e descansar em seus braços, mas agora só existe a sua própria respiração ricocheteando nas paredes, gritando-lhe o quanto sozinho ele está.

    Depois das roupas sujas que estavam no sofá serem atiradas, às pressas, ao chão e o cinzeiro ter virado no móvel, causando um estrago irreparável (há tempos fumava mais de dois maços por dia, precisava daquela nicotina para sentir que ainda estava vivo), o celular fora encontrado e o nome em seu visor confirmou aquele frio na barriga e atiçou toda a vivacidade azul de seus olhos tristes. Tentando controlar o desespero e a ansiedade na voz, atendeu afoito:

- Alô.

- Ah, Bert! Tudo bem com você? Estava correndo? – a confirmação de que sua tentativa de controle havia falhado. Mais uma vez.

- O quê? Ah... não! Não estava correndo, não. Estou bem sim e você, Gerard? – McCracken, pouco a pouco, começava a equilibrar sua respiração e ansiedade.

- Bem também – um silêncio constrangedor atordoou o sentido de ambos. Tossindo fraco, Arthur resolveu cortar o ar com a sua voz um tanto quanto fanhosa e sem jeito:

- Hm... Você me mandou um sms me pedindo para ligar assim que possível, achei que tivesse acontecido algo.

    Robert demorou dois segundos inteiros para processar a informação e arranjar uma desculpa por ter mandado a mensagem de texto, mas lembrou-se que do outro lado da linha era o Gerard. Despiu-se de todas as suas máscaras e frases prontas, declarando a verdade em um suspiro baixo:

- Eu só estava sentindo falta de ouvir a sua voz, Gee.

    Arthur fechou os olhos fortemente, sabia que aquilo era sincero, mas...

- Ah, sim! É bom falar com você outra vez, Bert. – disse em um tom distante, deixando transparecer o receio em sua voz - Então, o que tem feito?

- O mesmo de sempre, não mudei nada.  E você, Gerard? – Bert preparou-se para deitar no sofá e esbravejou baixo contra as cinzas e pontas de cigarro. Foi recolhendo tudo com a mão e deslizando para dentro do cinzeiro.

- Nós vamos começar o fim da turnê. Agora será: The Black Parade is Dead. – um tom altamente profissional soou pelo aparelho, como se Gerard estivesse conversando com seu empresário.

  Agora deitado no sofá e acendendo um cigarro, Bert sentia-se mais à vontade na conversa e nem notou a falta de entusiasmo do outro.

– Começar o fim? – riu alto e sem notar, com esse único gesto, havia “desarmado” Gerard, e a resposta veio quase amigável, se não fosse...

– Sim, algumas coisas começam para terminar, não é mesmo? – Way mordeu fortemente o canto de seu lábio inferior, mas não estava arrependido das suas palavras. Já Bert... Este sentiu uma pequena pontada no peito e, atordoado, sentou-se no sofá; chamou a atenção do outro, não queria que a conversa tomasse esse rumo:

– Gerard...

– O que foi? Não disse nada demais... Enfim. – Balançando a cabeça como se estivesse afastando pensamentos ruins, Gerard procurou pelo seu cigarro nos bolsos da jaqueta jeans, era o último. Precisava comparar outro maço o mais rápido possível (há tempos fumava mais de dois maços por dia, precisava daquela nicotina para sentir que ainda estava vivo).

– ‘Tá, ok.

– Eu preciso desligar, Bert. – com o isqueiro que ganhara do loiro, encostou o fogo na ponta e puxou o ar pelo filtro, despertando todas as toxinas enroladas naquele papel branco.

- Ah, não vai, não! Você nunca me liga! Deixa eu te contar um pouco dos meus dias! – Robert denunciou o seu desespero, precisava manter contato com Gerard. Era totalmente inaceitável que a conversa terminasse deste modo, além do quê, ele ainda tinha quatro cigarros para o fim daquele maço e seria nessa conversa que eles seriam consumidos! Acreditava fielmente que no fim dela já não precisaria mais de tanta nicotina entrando em seus pulmões e ativando a adrenalina para tranqüilizar o seu corpo.

- Você acabou de dizer que não mudou em nada.  Então, vai me contar o quê? - Way soltou a fumaça para cima lentamente. Era evidente que não desligaria agora (não conseguiria fazer tal ato). Encostou o seu corpo no parapeito da janela de seu apartamento, vislumbrava a paisagem pacata de New Jersey. Estava anoitecendo e apenas alguns raios de sol eram vistos no final do horizonte, a noite ia dominando apressadamente a passagem.

- Exatamente! Isso significa que eu continuo precisando de você. – confessou Bert em um suspiro fraco. Inclinou-se um pouco para frente, apoiando o cotovelo um pouco acima dos joelhos e a cabeça em sua mão guardiã do cigarro (se não tivesse tanta habilidade com o tabaco, teria queimado alguns fios de seu cabelo loiro).

    Gerard alterou o tom da voz assim que processou a informação e, de repente, viu-se absorto em um misto de tristeza e raiva. Saudade e rancor.

– Precisa para quê, Bert? Você nunca precisou realmente de mim. – sentenciou sem arrependimento algum. Sempre ouvir as mesmas palavras, carregadas de desculpas, súplicas e promessas, o desgastava demais.

– Isso não é verdade! Você sabe que eu te amo. – coçou a cabeça com as pontas dos dedos, tragando o cigarro com força em seguida.

- Sei? – Gerard lhe respondeu sarcástico, a paciência ia se esvaindo à medida que a fumaça de sua pequena porção de tabaco desaparecia no céu cinza-azulado.

- Sabe sim! Não importa com quantas pessoas eu transe, eu nunca vou deixar de te amar. – o desespero presente na voz de Bert não causava mais efeitos no moreno.

- Você se escutou agora? – Way bateu o punho no vidro trincado de sua janela, não o quebrando definitivamente por pouco. Falta de vergonha na cara era algo que McCracken não tinha definitivamente.

- Ah, Gerard! Eu posso rodar o mundo, mas no final eu sempre volto para você! Não amo ninguém mais! Eu só quero sair com outras pessoas, mas preciso realmente de você. – amassou a ponta do cigarro em seu cinzeiro cheio e acendeu outro rapidamente, o nervosismo tomava conta de todo o seu corpo.

- Para quê, Bert?

- Eu não consigo ficar só com você, Arth! Eu não presto! Eu só não... Eu não consigo, entende?

- Não. – Mesmo sendo chamado pelo apelido carinhoso, a fúria era tanta que isso não provocara o menor apaziguamento. Aliás, aquilo tudo estava deixando-o cada vez mais sem rumo.

- Mesmo quando estávamos juntos, eu saia com outras pessoas e isso nunca interferiu na nossa relação. – contou Bert casualmente, se arrependendo três milésimos de segundos depois - Olha eu me entregando...

- Interferiu sim. Me doía pensar que outras mãos estavam percorrendo o seu corpo, Robert. E ainda dói!

- Não me chama de Robert. Eu não gosto, você sabe.

- Me desculpe. – percebendo o erro imenso que foi responder o chamado de Bert, ao invés de ignorá-lo. Gerard queria encerrar a discussão ali e se esquecer de todas as palavras trocadas nesses cinco minutos.

- Como você teve a informação de que eu saia com outras pessoas? – McCracken perguntou receoso, jamais lhe ocorreu que Way sabia de todas as suas escapadas extraconjugais, além, é claro, daquelas que ele mesmo confessava.

- Não importa, Bert. Nos conhecemos há dois anos e vivíamos grudados um no outro! Quando você vai perceber que eu sei tudo sobre você, e não preciso de nenhum detetive para isso? E olha só! Você mesmo acabou de dizer que estava se entregando. Então não importa.

- Mas eu sempre voltei para você!

- É. – Gerard respondeu tão seco quanto as folhas de outono que caiam das árvores, agora fracamente iluminadas pela luz prateada da lua. O silêncio prevaleceu por longos segundos, tudo o que se ouvia era o trago baixinho de ambos, denunciando o vício de um para o outro.

    Robert deitou-se no chão frio da sala. Em vão, procurava no teto alguma saída. Fechou os olhos e apertou-os com um pouco de força, deixando a sua voz rouca e fraca finalmente explicar o porquê de toda essa conversa:

- Eu quero voltar para você, Gerard. Eu te amo!

- Para de dizer que me ama. – foi quase uma súplica, seguida de uma lágrima fina que logo fora tirada do rosto pelas costas de sua mão.

- Mas eu amo mesmo, caralho! Você quer que eu faça o quê? Não dá para tirar você de mim! – a angústia acentuava cada sílaba e a verdade se fazia presente nas suaves palavras seguintes - Eu te amo muito. Eu te amo tanto, Gerard. Eu te amo demais!

- Sabe... A maioria das pessoas confunde amor e paixão. – Way sorveu da última tragada, abandonou o filtro no cinzeiro que estava em uma mesa central e deitou-se no chão frio do apartamento, os olhos perdidos no teto.

– E daí? Eu te amo, e sou apaixonado por você! – Bert declarou como uma criança incompreendida.

– Robert... – agora fora a vez de Gerard chamar a atenção, ouviu apenas um murmuro do outro lado da linha, indicando que o outro estava ouvindo, então prosseguiu – Ok, Bert. Eu vou te explicar como é estar apaixonado.

– Você é apaixonado por mim! Não vai me dizer nada que eu já saiba. – A arrogância de McCracken fez-se presente. Afinal, a única coisa que ele tinha certeza no mundo todo, era o que Gerard sentia. Certeza esta que fora lhe mostrada de vários modos: desde pequenos gestos, como datas comemorativas nunca esquecidas e um beijo mais suave depois de uma noite selvagem de sexo, até os grandiosos, como os inúmeros textos, trechos e músicas onde Bert era o único foco de Gerard.

- Cala a boca e escuta. – ouviu apenas um muxoxo.

    Fechando os olhos e dando um longo suspiro como alguém que tenta pela décima vez explicar quanto é 2 + 2 para uma criança, Gerard começou o seu monólogo:

– A paixão nos deixa embriagados, entusiasmados, exaltados. Ficamos loucos de desejo por alguém! Não olhamos os defeitos como tal, e sim como qualidades, “cego de paixão”, huh? Nos sentimos totalmente dominados pelo outro com apenas um olhar, um toque, um gesto. Perdemos a noção do resto do mundo quando estamos ao lado da pessoa pela qual nos apaixonamos, e estudos científicos dizem que a paixão pode durar, no máximo, dois anos. E quando estamos longe dessa pessoa, podemos até nos lembrar dela e sentir falta, mas se um terceiro começa a flertar com a gente, flertamos de volta e esquecemos a paixão que sentimos por um tempo...

- Eu sou perdidamente apaixonado por você, Arth. – declarou Bert como se acabasse de entender o resultado de 2 +2.

– Eu sei, Bê. Eu sei... – Gerard mordeu nervosamente o canto de seu lábio inferior e, à medida que as palavras saiam, o tom de sua voz ia esmorecendo - E então, assim que a paixão vai “passando”, deixamos de desejar o outro sexual e afetivamente com tanta intensidade. Mas ainda assim gostamos da companhia.

– Gerard, não...

– Continua me ouvindo, por favor, huh?

– Está bem. – Bert apagou o seu segundo cigarro seguido, adicionando mais esta ponta ao meio de tantas outras.

– E por vezes a paixão é confundida com o amor, e só a percebemos quando ela passa totalmente! É nesse ponto que ou a relação acaba de uma vez ou a confusão é desfeita e se descobre realmente o amor! Se for este o caso, a relação continua por meses, anos, até décadas.

– Que romântico! – ironizou McCracken, seguido de uma risada aguda. Sentou-se no chão e acendeu o seu penúltimo cigarro. Poderia fumar um maço inteiro seguidamente se o deixassem, era evidente a sua compulsão.

– Deixa a sua ironia e desdém para outra hora! – Repreendeu-o e esperou pelo silêncio que logo veio - Agora o amor, Bert... Ah!  O amor é diferente. – suspirando, Gerard sentou-se também, passou a mão suavemente pelos fios de seu cabelo e observou o céu começando a ter suas estrelas pintadas - A gente se perde nos olhos do outro, a atração não é somente física, é mais íntima. É um sentimento bem mais intenso e suave ao mesmo tempo. Assim mesmo, sabe? Cheio de paradoxos! Nós conseguimos ver o defeito do outro e isso o torna mais amado.  Porque é nos defeitos e nas qualidades que nos distinguimos e somos únicos.

- Você é o único para mim. – fora interrompido.

– Você não escuta o que fala e se contradiz com frequência. Minutos atrás, declarou que não conseguia ficar somente comigo; logo, eu não sou o único para você. – ouviu o inicio de um protesto vindo do outro e, antes que ele se manifestasse por completo, desatou a falar sonhadoramente - Mas me deixe continuar... O amor de verdade é aquela coisa de filme mesmo, bem clichê. Só o outro nos importa e fazemos de tudo para agradá-lo, perdoamos erros que jamais perdoaríamos se fossem feitos por outras pessoas. Mesmo que essa pessoa nos faça um mal imenso, nos magoando constantemente, não conseguimos se quer desejar que uma coisinha má a aconteça. Se o mundo fosse acabar em 10 minutos e só pudéssemos avisar uma pessoa, avisaríamos quem amamos! Não importa se ela não está mais junto! Não dá para controlar o amor porque ele não tem prazo de validade. E é muito mais do que uma beleza física ou uma compreensão intelectual, é tudo, entende? O amor é uma mistura de tudo! O cheiro, o abraço, o beijo, o sexo, o sorriso, o olhar, as mãos dadas e os dedos entrelaçados sem muita força, mas firmes. Porque não sufoca! Muito pelo contrário, o amor liberta! O amor te liberta para um mundo totalmente diferente! Não há uma necessidade impossível de ser preenchida como na paixão, é só saber que o outro está bem e quem ama se dá por satisfeito. Chega a ser submisso... – calou-se abruptamente.

- Então tudo isso quer dizer quê...? – Gerard conseguiu, com perfeição, enxergar Bert sentado na sua frente, erguendo a sobrancelha interrogativamente e abaixando um pouco a cabeça, como se tivesse vergonha por ter perguntado. Bert odiava quando não sabia das coisas e inventava mil histórias e jeitos de não deixar isso transparecer para outras pessoas. Mas ali, ali era o Gerard. E somente para ele afirmava não ter consciência de algo.

– Significa que a paixão vem intensa, avassaladora, mas depois passa, perde o desejo, perde a vontade. Se sobra algo, é apenas carinho. 

– E o amor? – Gerard deixou um sorriso bobo escapar dos seus lábios. Bert realmente não entenderia, assim como não entendera tantas outras coisas que ele insistia em tentar ensinar-lhe. Mas Gerard não se importava em repetir três mil vezes, ou exemplificar de três mil modos.

- O amor? – repetiu a pergunta divertidamente, voltou a fechar os olhos, e em sua face era explicito que ele estava se lembrando de algo muito bom, indescritível na verdade. - Ah... O amor não passa. Nunca passa. Se esquece das paixões. O amor é impossível de tirar da memória, passe o tempo que for.

    O silêncio instalou-se entre eles, mas, ao contrário dos outros, esse era confortável, como se acabassem de ter uma pequena epifania sobre tudo. Gerard levantou-se lentamente e voltou a se encostar no parapeito da janela. Admirando a paisagem noturna que ia se formando, afirmou mais para si do que para o loiro:

– Eu senti amor, você teve paixão.

– Gerar... – Bert nem mesmo teve fôlego ou vontade de terminar o nome. Não havia mais nada a ser dito. E, por mais que ele não tenha entendido todas as palavras, compreendeu o sentido de toda aquela conversa e até mesmo a relação tumultuada entre os dois. Estavam sentindo coisas diferentes. Era visível e nenhum dos dois tinha culpa disso.

– Bê...? - clamou baixinho, pronto para dividir o maior e mais sincero segredo do mundo.

- Hm...

- Eu te amo, Bert McCracken. Se o mundo acabasse hoje ou daqui a dez anos, eu ligaria para você. Não importa com quem esteja. - e, antes que fosse interrompido, suplicou – Não torne mais a me procurar. Apesar da distância, eu sei como você está, e isso tem me bastado. Boa noite, my blond boy sugar.

    Desligou.

    Way encostou a cabeça levemente em sua janela de vidros trincados, o olhar totalmente perdido naquele pedacinho de universo. Decidiu que não compararia mais cigarros. Fechou a janela rápido, logo após ter a sensação de que Bert estaria ali ao seu lado observando o cosmos junto dele, como haviam feito tantas outras vezes. Gerard foi arranjar alguma maneira de canalizar tudo o que estava sentindo: Foi para o seu quarto, acendeu apenas a luz do abajur, dedilhou as cordas de sua guitarra e rabiscou diversas vezes um papel destinado às suas composições e desenhos.

    Robert correu para a janela, deixando jogado o aparelho celular no meio do caminho, assim que notou o silêncio de uma ligação finalizada. Munido de seu último cigarro sentou-se no parapeito, observando o céu sem realmente prestar atenção nele, e sim em quem também estaria fazendo isso neste exato momento, conhecia Gerard como ninguém jamais seria capaz. Porque, para Bert, Gerard não precisava de meios sorrisos, óculos escuros e distanciamento; apenas para o Bert, Gerard era o Gerard real, deixando suas fraquezas amostras sem receio algum.

    Robert ficou ali durante horas apenas pensando em seu Arth, brincando distraidamente com o cigarro entre os dedos, não o acendeu. Era o último, e era a ultima lembrança que teria de sua paixão, não fumaria este. Então decidiu que amanhã pela manhã ele compraria outro maço.

The End


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Notas finais do capítulo

Obrigada a todos que lerem .-.