Donna Koe De, Donna Kotoba De? escrita por Anna H


Capítulo 7
Orderly-Chaos




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Era cedo quando o despertador me arrancou da cama, libertando Shinya da prisão de meus braços. Eu tropecei pelos jornais e revistas espalhados pelo chão do quarto e deslizei através da sala até a cozinha, de onde o som irritante vinha, com pressa para desligá-lo.

Quando finalmente o alarme cessou, meus olhos correram pela porta aberta do quarto. Ele não havia acordado. Inevitavelmente, um sorriso se desenhou em meu rosto, e nada que eu fizesse poderia reprimi-lo. Finalmente eu podia encará-lo sem me preocupar se ia parecer doentio.

Eu me aproximei devagar, tomando cuidado com os passos para não pisar em nada, até me encontrar ajoelhado perante a cama, o rosto apoiado nas costas das mãos próximo ao dele, próximo o suficiente para sentir sua respiração calma acariciar minha pele. Meus olhos não se mantinham quietos, resvalavam todo seu rosto delicado, enchendo-me do desejo de voltar para a cama e abraçar o corpo frágil e vulnerável ao frio que logo lhe tomaria.

A idéia de um dia me acostumar com ele era completamente inconcebível. Não importaria por quanto tempo eu fitasse aquela face, eu jamais me cansaria dela, admirá-la-ia todos os dias e jamais seria o suficiente. Dentro de todo seu silêncio, ele era deslumbrante e eu estava aqui apenas para ser deslumbrado por ele.

Shinya moveu-se, exalando o ar com força, seu rosto formando uma careta enquanto mudava a posição do pescoço. Travesseiro ruim. Então ele relaxou e eu sorri, levantando-me contra vontade.

Tranquei-me no banheiro enquanto tomava banho, e, quando saí, encontrei-o sentado no colchão, parecendo confuso. Eu não havia demorado tanto, nem feito barulho. Ele olhava para os lados, ainda estranhando acordar no meio de um furacão. Até que finalmente me viu. Os lábios se curvaram levemente para cima, as maçãs do rosto ganhando um tom vermelho imperceptível demais para qualquer outro notar. Os olhos dele sustentaram os meus por um tempo sem limites enquanto eu via minha cabeça se esvaziar de todo o resto e encher-se do marrom escuro das íris dele. Se o teto desabasse, eu não veria.

Então eu baixei o olhar, percebendo que minhas roupas folgadas ficavam grandes até nele. Aí eu me perguntei de onde diabos elas teriam saído. Provavelmente de algum presente do meu pai, ele sempre acreditou que um dia eu cresceria. Hm, quanto desapontamento.

Quando finalmente a minha mente voltou ao meu quartinho apertado, Shinya estava me olhando com uma cara que parecia assustada. Só então percebi que eu provavelmente estava mesmo assustando-o ao encará-lo daquela forma enquanto divagava. Desviei os olhos e dei um meio sorriso de desculpas e, segurando a toalha enrolada em minha cintura, dirigi-me ao armário para procurar o que vestir, caso houvesse alguma roupa que não estivesse esperando ser levada para a lavanderia.

Havia roupas até demais, mas nenhuma... usável. Todas amassadas ao limite. Shinya ofegou atrás de mim – ele provavelmente havia visualizado os bolos de tecido jogados em cima das gavetas e cabides. Eu ri baixo, puxando as blusas para o chão atrás de uma que miraculosamente estivesse dobrada. Ele ofegou outra vez e eu imaginei o tamanho de seus olhos arregalados de pavor.

- Com medo do Bicho-Papão? – soltei, o sorriso irreprimível estampado na minha cara.

Ele bateu no meu ombro no exato momento em que o dito milagre aconteceu. Era branca, com um desenho de um peixe morto nas costas. E era a última. Eu precisava ir à lavanderia urgentemente. Puxei o resto da roupa sem prestar atenção e a vesti rapidamente. Faltava quinze minutos para as sete da manhã.

Joguei-me na cama com os braços atrás da cabeça, suspirando com desânimo. Shinya debruçou-se sobre mim, os olhos perguntando-me o que era.

- Eu não quero ir. – respondi, bocejando. Ele rolou os olhos e levantou-se, afastando-se para a cozinha. Eu fui logo atrás.

“Deixe de ser preguiçoso, Tooru.” – ele escreveu no caderno sobre o balcão.

- Não é você quem tem que agüentar um monte de idiotas o dia inteiro, shh! – eu repliquei enquanto olhava a geladeira vazia. – Você só tem que não ser carregado por aquele monte de cachorros. – E uma bola de papel acertou meu rosto.

“Copos.”

- Só eu bebo nisso aqui, para quê copos? – deixei a caixa do suco de laranja sobre o balcão enquanto buscava um copo.

“É falta de educação beber da caixa, e nojento. E não tem só você nessa casa agora, caso não tenha notado.”

Minha garganta fez um som parecido com um rosnado e eu pousei os copos com um pouco mais de força do que o necessário.

- Você é irritante assim mesmo ou só faz isso porque acha engraçado me deixar louco?

Ele riu levemente.

“Mais o segundo que o primeiro."

- Argh! – eu servi os dois copos de suco e deslizei um deles para perto de Shinya. Ele continuava rindo, a respiração entrecortada enquanto seu peito se agitava e o sorriso iluminava minha cozinha fúnebre. Era difícil sentir raiva com aquilo. Rolei os olhos e bebi tudo de uma vez, enquanto ele bebericava lentamente o seu.

- Você se importa de comer em outro lugar? Não há nada suficiente para você aí. – eu já estava na sala, puxando meu tênis de debaixo do sofá enquanto falava. O som da geladeira sendo aberta outra vez passou pela casa e logo ele estava sentado ao meu lado, com uma maçã na mão esquerda enquanto escrevia com a outra.

“Não esqueça de guardar de volta o que tirar do refrigerador. E eu não preciso de muita coisa, só isso está bom. Tira o pé de cima do sofá!”

- Certo. E, certeza? Parece muito pouco, eu realmente tenho medo de que os cachorros o arrastem. E o sofá nem é seu! Eu piso no meu sofá se eu quiser! – terminei esfregando a sola do tênis na borda da almofada.

Shinya rolou os olhos e os cobriu com uma mão. Uma palavra se formou em seus lábios mudos.

Criança

- Obsessivo.

Ele ergueu as costas do pulso para mim, como da primeira vez que eu o havia visto.

- A culpa é sua, sabia? E não me faça essa cara de surpresa. – eu me levantei, peguei a jaqueta sobre a mesa e me encaminhei até a porta. – Tem uma chave extra debaixo do microondas, se quiser pegar.

Ele me encarou

- É, debaixo do microondas. Até... Shin. – eu desviei ao dizer o apelido. Não era algo que ele tivesse me permitido ainda, mas eu gostava de como soava. E saí para o hall curto. Na verdade, tudo naquele edifício era minúsculo. Desde ao número de andares à altura dos degraus da escada.

Shinya parou na porta por um tempo, até que eu chegasse na metade do primeiro lance de escadas, então ele limpou a garganta.

- Você está bem? – ele me olhava com uma certa frieza que eu não conseguia explicar. A expressão dura e os braços cruzados sobre o peito o faziam parecer raivoso. O que eu havia feito errado? Fôra o apelido? Ele não havia gostado? Certo, não aconteceria outra vez. – Shinya, o que é? – perguntei, subindo alguns degraus.

Ele bufou e bateu a porta atrás de si, deixando-me parado no meio do corredor olhando para a madeira branca que nos separava.

- Ham... Tenha um bom dia..? – eu falei alto para ser escutado dentro do apartamento, esperando que aquilo o acalmasse um pouco.

- Então… Eu posso tirar a tarde de sexta e o sábado de folga?

- Para quê mesmo? Eu não estava prestando atenção quando você começou a falar. – Niikura me respondeu sem nem ao menos levantar a cabeça do papel onde rabiscava algum desenho. Eu senti meu sangue ferver por um instante, mas acalmei-me antes de explodir a minha quase nula chance de ter dois dias e meio longe do escritório.

- Porque eu estou de mudança e preciso de uns dias livres pra ajeitar tudo no lugar novo, ou a pessoa com quem vou dividir vai enlouquecer com a bagunça.

- Vai morar com sua avó, então? – ele continuou, inclinando o rosto para a direita a fim de visualizar melhor o que estava fazendo.

- ... Não.

- Vai pr’um albergue?

- ... Não.

- Vai virar mendigo?

- Não!

- Então vai morar com quem? Ou você tá só tentando me enrolar pra ter uns dias de folga a mais?

- Com um amigo maníaco de organização. – eu respondi, lembrando da imagem cômica de Shinya olhando meu armário, o que me deu uma pontada por relembrar que ele batera a porta na minha cara. A porta do meu próprio apartamento.

- Hm. – ele encostou-se na cadeira ainda sem olhar pra mim. – Acho que se você me trouxer um café eu posso pensar no seu caso.

Eu rolei os olhos e conti um suspiro de irritação, murmurando um simples “claro” ao me virar em direção à porta.

- Comentaram comigo que você... apareceu marcado, um dia desses. Você está saindo com alguém?

Era tudo o que eu precisava para o dia perfeito: Kaoru me perguntando da minha vida sexual.

- Estou.

- Elea(1) é bonita?

- ... Incrivelmente.

- Nunca a vi por aqui.

- Nunca veio aqui.

- Oh.

- Quer o café agora?

- Não, para depois de amanhã, na verdade.

- Ham, eu vou indo pega-lo, então. – eu murmurei, minha paciência com ele já se dissolvendo. O Hara estava fora da sala, provavelmente esperando para fazer algum comentário estúpido, mas ao contrário disso, ele apenas passou direto por mim, voando para dentro do escritório.

- O que o Toshimasa foi fazer no Niikura? – Daisuke perguntou meio alarmado, pousando a caneta sobre a mesa.

- Eu lá vou saber! – eu disse seco, enquanto me apressava à cafeteria no térreo. Antes que eu o perdesse de vista, Daisuke também havia corrido para a sala de Kaoru.

A primeira coisa que pensei ao abrir a porta foi que estava no lugar errado com um segredo de fechadura igual ao meu. Mas havia algo no meio da sala que só seria encontrada dentro do meu apartamento, por isso resolvi que era seguro entrar.

Shinya estava sentado no chão da sala, sobre o tapete, com meu notebook sobre a mesa de centro. Ele olhou para mim ao ouvir o som da porta sendo aberta, mas não havia boas-vindas em seu rosto. Rapidamente, ele voltou-se para o computador. Se ele fizesse aquilo outra vez, eu poderia ter um ataque cardíaco.

Soltei as chaves em cima da mesa da cozinha e descalcei os sapatos perto do sofá. Ele me ignorou outra vez quando eu sentei às suas costas, vendo que ele jogava mahjong(2).

- Shinya...? – eu chamei seu nome após um suspiro, tentando controlar minha voz trêmula. Ele não respondeu, apenas levantou-se e foi à cozinha olhar a panela que estava no fogo. Gemi baixo e tomei outro fôlego para estabilizar a voz. – É você quem está agindo como uma criança agora, sabe? O que foi? – eu ainda estava sentado no sofá, e ele se encolheu na frente do fogão, seus ombros balançando estranhamente. – Shinya, você não está chorando, está? – agora o pânico tingiu minhas palavras, e eu não me preocupei em controlá-lo, mesmo que eu pudesse me afundar nele. – O que eu fiz, me diga!

Em dois segundos, eu estava ao lado dele, segurando-o pelos ombros enquanto sentia-me despedaçar com seu rosto rubro e limpo das lágrimas que ele insistia em não deixar cair. Eu olhei seus olhos avermelhados e mais brilhantes que o comum até que ele parou. Meu coração ia sair pela boca. O que diabos eu havia feito de tão errado?

- Isso não foi pelo ‘Shin’, foi? Huh? – uma de minhas mãos segurou seu rosto quente, acariciando-o com cuidado. Ele negou com a cabeça e meu peito ficou indeciso entre apertar ou relaxar. Deixei-lhe um beijo rápido nos lábios, perguntando outra vez – O que eu fiz?

Mas agora ele sorriu, desviando o rosto. Eu o olhei perdido, até um clique estalar em minha cabeça.

- Você queria um beijo? – perguntei, incrédulo. – Isso tudo por um beijo? E eu sou a criança aqui! – apesar disso, eu estava sorrindo para seu rosto vermelho não mais pelo choro contido.

Eu puxei seu rosto mais próximo do meu e ataquei sua boca, beijando-o quase brutalmente. Não demorou muito para que ele nos separasse, arfante.

- Ganhou seu beijo, agora?

Ele moveu os lábios rápido demais para eu entender, mas deveria ser sobre a comida demorar para ficar pronta e me arrastou de volta para o chão da sala pedindo ajuda com o jogo. Voltara a ser o meu Shinya doce.

- Ahm... Shinya? Isso quer dizer que eu posso te chamar de Shin?

Outro sorriso que eu respondi. Estava começando a estranhar a mim mesmo. Nishimura Tooru não era um ser sorridente. Não era um ser que se deixava ficar obcecado por um passeador de cães mudo. Então, quem diabos eu era agora?

Ele havia se entretido outra vez com o computador, parecendo estar indo bem o suficiente com as pedras para precisar de alguma ajuda. Então eu olhei o redor, imaginando se por acaso ele seria o novo messias, salvador, o que fosse, e havia feito um milagre sob o meu teto.

Minha casa estava organizada.

- Você saiu hoje?

Um editor de textos estava aberto, então ele apenas maximizou a janela e seus dedos deslizaram pelo teclado, a frase formando-se na tela.

“ Fui em casa pegar umas roupas e outras coisas. Tem algum problema se eu ficar aqui essa semana? Seu apartamento agradeceu bastante hoje.”

É, ele não estava mais com os sacos que eu o emprestara no domingo, mas com roupas que o vestiam direito, evidenciando seu corpo magro.

- Não saiu com os cães?

‘”Não ia dar tempo de fazer tudo antes de você chegar. E eu mereço uns dias de folga na casa do meu namorado, não mereço?”

Eu sorri.

- Você pode ficar o quanto quiser.

(1) É assim mesmo, como um erro de fala.
(2) Mahjong é um jogo de origem chinesa em que se deve retirar da forma as pedras livres iguais até que não reste nenhuma, disponível no Windows Vista – e sites de joguinhos


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Notas finais do capítulo

Eu avisei que ia demorar. ._.