Rumo ao Fundo do Abismo escrita por SlipperySanity


Capítulo 1
Honrando a família


Notas iniciais do capítulo

Este texto é inteiramente em homenagem a Dane, uma das — se não a — garotas mais lindas do universo. Obrigado por tudo. A estória foi proposta por ela, pois eu sei absolutamente nada sobre The GazettE, então não estranhem coisas nada a ver e detalhes falsos. Era, primeiramente, para ser uma one-shot, mas como o capítulo estava muito grande, eu resolvi dividi-lo em duas partes. Não sei quando postarei a outra. Preguiça não ajuda. Boa leitura!



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Rumo ao fundo do abismo,

por

 Slippery Sanity

Agosto, 19 2010

 

 

 

 


        Ele mal podia ver o sol reverberando acima das grandes árvores no caminho, mas podia sentir os raios quentes acariciando sua pele. Fechou os olhos, sentindo a brisa decorrer uma mão carinhosa em seus cabelos, afastando os fios molhados de suor e revelando seu rosto machucado. Uma cortina de sangue estendia-se, cruzando sua bochecha esquerda e planando como uma crosta de sujeira.

 

        Torceu os lábios no que parecia tudo, menos um sorriso. Precisava de um banho. Era difícil quando não tinha alguém para comandá-lo, alguém para lhe instigar e se preocupar. Por mais sinceras que suas promessas de independência fossem, a falta que seus pais faziam não poderia ser tão facilmente ignorada.

 

        Deu mais alguns passos acintosos, ultrapassando seu desejo de jogar-se à grama e recolher sua existência. Mas ele não possuía mais controle, pensou, cambaleando. Simplesmente devia fechar os olhos e esquecer que o mundo existia.

 

        Era tão fácil, tão fácil quando ele só precisava pensar em lições de casa, seus relacionamentos extracurriculares e como exatamente humilharia os outros alunos no próximo dia. Não, ele não podia mais, pois o — seja amaldiçoado — filho daqueles desgraçados tinha despedaçado sua vida e sumido com seu orgulho. Evanescera-se. E agora ele tinha um pai atrás das grades, uma mãe foragida e um corpo vazio emanando dor. Não tão surpreendentemente, ele não se importava. Achava que seus pais tinham de pagar. Nunca tinha sido um relacionamento cheio de amor, afinal, e nenhum arrependimento flutuava entre eles.

 

        Mas o pior não era isso. O pior era o que ele não tinha. Sua mansão, sua fortuna, seu conforto e, pelos deuses, sua cama! Ela nunca tinha sido tão necessária.

 

        Encostou-se num banco, os pés queimando. Um homem passou ao seu lado, caminhando, a camiseta embebida em suor. Estava centrado no cachorro que levava pela coleira, até desviar os olhos para ele e apressar os passos, seus olhos arregalados. “Isso, vá”, pensou.“Idiota.” Perguntou-se quão horrível ele estava, quase chegando ao epítome do pânico.

 

         Gargalhou, o som arranhando sua garganta com um gosto amargo.

 

         Ele estava com fome. Ele tinha que comer. Por que diabos ninguém vinha a seu resgate? Desgraçados —

 

         Oh. Ele ainda tinha o celular, constatou, pegando o objeto de sua calça surrada e castigando os botões desesperadamente. Como era o número? Argh, foda-se, ele os tinha na agenda. A agenda, a agenda... ele passou nome a nome rapidamente, até achar o que precisava. Ou o que ele podia ligar.

 

        Fuyuki Delmond.

 

         Tia Fuyuki Delmond. Certo, sua mãe o espancaria por chamá-la assim, como tinha feito aos seus sete anos. Mas era o que lhe restava. Ela tinha sido afastada da família por desfazer-se de seu sobrenome e não casar-se com um japonês da alta sociedade — mesmo que não formalmente, porque não havia “renegados” entre nos Matsumotos, seria uma vergonha.

 

         E, agora, bem... eles eram uma vergonha. Presos por desviarem dinheiro. Sinceramente, Takanori já estava farto de honrar a família e receber nada em troca além de um olhar gélido. Sua vida estava apenas esperando por ele.

 

         Ele pensou, pensou, apertou o celular, discou, apagou, pensou novamente. No fim acabou com o aparelho acoplado à orelha, esperando os tus intervalados acabarem.

 

         Acabaram.

 

         — Alô — uma voz feminina entoou. — Quem fala?

 

         Certo. Era fácil. Tinha de ser fácil. “É o seu sobrinho que nunca falou mais do que oi para você em dezessete anos de vida”, exatamente. Não.

 

         — Eu, ahm... — ele começou.

 

         — Sim?

 

         Ruki coçou a cabeça, agoniado.

 

         — É o, é... Takanori.

 

         Ele esperou a mulher falar algo como “vá se foder, idiota” ou um comentário desdenhoso e detalhado sobre como ele voltara à parte sem glória da família com o rabo entre as pernas. Foi apenas o contrário. A mulher cantarolou docemente:

 

         — Certo. Onde você está?

 

         Obviamente ela sabia o que tinha acontecido. Quem não sabia, afinal? Estava em todos os jornais.

 

          — Centro da cidade, num parque ao lado do Paladar Mexicano. — Respondeu, confuso. Este era um restaurante conhecido por seus pratos incomuns e bem temperados. Não era freqüentado pelos turistas, mas muito apreciado pela clientela local.

 

         — Estamos indo. Não saia daí.

 

         Ruki estranhou o uso do plural, mas resolveu não dar atenção.

 

 

         Bem, ele deveria ter dado atenção. Quando o carro negro chegou, após uma infinita hora e meia de espera, a primeira coisa em que ele reparou não foi a porta arranhada ou o pneu careca, mas o garoto que estava no banco do motorista. Ele deveria ter sua idade, mas logo descartou a possibilidade. Como estaria dirigindo, então? Ele tinha de ter dezoito anos ou mais. Burlar as leis não parecia uma coisa comum na rotina destas pessoas. “Bem, na dos meus pais era”, concluiu amargamente.

 

         A segunda coisa que percebeu, ao entrar no veículo e receber um olhar piedoso de sua tia — Fuyuki, de Fuyuki; ele não tinha o direito de chamá-la assim —, foi que o rapaz estava com um cigarro preso aos dedos. E então a obviedade de que ele precisava desesperadamente de nicotina em seu organismo pesou em suas costas.

 

         Ele não podia ser tão cara-de-pau a ponto de clamar pela ajuda de familiares que mal conhecia mais um cigarro. Maldito vício. Atingiu-lhe o fato de que eles não tinham um porquê para ajudá-lo, mas o estavam fazendo. Ruki não tinha contato com pessoas gentis.

 

         Um cutucão em suas costelas o tirou dos devaneios, e a próxima coisa a sua frente foi um par de olhos grandes e brilhantes. Uma garotinha o observava apreensivamente, em curiosidade genuína. Ela era linda, com seu cabelo caindo em cascata pelo rosto bochechudo — agora rubro. Uma versão jovem da mulher que estava no banco da frente. Ruki perguntou-se como não tinha se apercebido da presença quando entrou no automóvel.

 

         — Olá, garotinha — ele disse nervosamente. Crianças não. — Qual o seu nome?

 

         Era profundamente irritante que ele precisasse perguntar isso. Porra, a menina era sua parenta! Ruki nunca tinha pensado realmente em como o tratamento que seus parentes davam a esse lado da família era injusto. Agora o soco de anos em negligência tinha atingido seu peito, e o ar ficou brevemente nulo.

 

         Sua pequena prima pareceu refletir se ele era nobre o suficiente para conhecê-la, e então as linhas rosadas que eram seus lábios curvaram-se e orbes negros sorriram para si. Era tão caloroso.

 

         — Aiko — ela disse simplesmente, a voz tilintando como o canto de uma fênix comemorando o fim de uma guerra.

 

         Ruki a achou absurdamente agradável e murmurou um “Ruki” em cumprimento.

 

         — Hideki — a menina disse, minutos depois —, vai demorar?

 

         Hideki, o rapaz que conduzia a direção do carro, bufou.

 

         — Sim, vai, vai demorar.

 

         Eles estavam caminhando a uma parte afastada do centro da cidade, onde ele estava acostumado. Ali as ruas eram adornadas com lírios, asfódelos e orquídeas violetas que flutuavam à paisagem e pareciam sair de lugares inexistentes. As casas eram todas iguais — tendo como diferença apenas a cor das paredes — e, apesar de não tão grandes como a que ele tinha morado, pareciam aconchegantes.

 

         O silêncio mórbido os abateu por todo o caminho, separados por barulhos ritmados do rapaz batucando no painel e comentários descontentes de Aiko, que não queria esperar mais e cruzara os braços com um bico enorme. Logo a velocidade diminuiu, e Ruki sabia que estavam perto de seu objetivo. Pararam ao lado de uma árvore simples, cortada em formato de círculo, com folhas verde-oliva.

 

         O imóvel era como todos os outros, observou enquanto Fuyuku pegava as chaves e abria o portão de madeira. Tinha uma coloração azul-bebê suave ao olhar. Ele colocou as mãos no bolso, acompanhando-os desconfortavelmente enquanto adentravam na casa. Ruki definitivamente não sentia-se em um lar aqui. Não pelo lugar, não pelas pessoas, mas por ele, por sua família e tudo o que haviam feito para excluí-los.

 

         O jardim era lindo, apesar de pequeno: canteiros floridos separados por um caminho de pedras que levava até a entrada da casa. Ele esperou o cumprimento, não querendo ser mal-educado.

 

         — Você é bem-vindo a nossa casa — Fuyuki afirmou enfim.

         Então Ruki tirou seu tênis e pisou no assoalho de madeira.

 

         Fuyuki sentou-se numa poltrona e apontou o sofá para ele, que prontamente atendeu ao pedido, silencioso. Ela suspirou, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha teimosamente, e começou:

 

         — Eu sei o que aconteceu. Eu quero que você fique aqui até completar seus dezoito anos e ter direito às posses que lhe foram deixadas. Somos seus — ela pausou — parentes mais próximos.

 

         — Não será um incômodo? — Ele  não podia deixar de perguntar.

 

         — Não, não será um incômodo. Você é bem-vindo, eu já disse.

 

         Ela levantou-se do sofá, agachando-se à sua frente e olhando em seus olhos:

 

         — Eu não ligo para o que fizeram para mim. No fim foi inútil, não foi?

 

         Então Fuyuku o abraçou, indicando o banheiro para ele com um “você precisa de um banho, garoto”, e Ruki obedeceu, subindo as escadas para o segundo andar com os ombros baixos. Só ele sabia o quanto precisava daquelas palavras, daquele abraço; era quase injusto que Fuyuku não fosse cruel. Ela deveria ser.

 

         Ele chegou ao corredor, reparando no rapaz — Hideki, não era? — encostado à parede.

 

         — Tsc, tsc — ele disse, entregando-lhe um cigarro. Vendo seu olhar surpreso, ele abanou com as mãos: — Era óbvio, com você me encarando a cada momento.

 

         O lado ruim era que seu vício fora descoberto logo cedo. Ele não sabia como sua tia — como Fuyuku reagiria a isso, mas ela não parecia incomodar-se com o filho. O lado bom era que Hideki não tinha reparado o outro motivo dos olhares, o quanto seus olhos viravam-se famintos a seus lábios carnudos e seus olhos castanhos no espelho retrovisor. Ele era realmente bonito.

 

         — Obrigado — disse simplesmente, colocando o cigarro na boca após o garoto tê-lo acendido.

 

         Sorriu.

 

         — Não foi nada. Shiroyama Matsumoto, de qualquer forma — ele estendeu sua mão, e Ruki apertou-a, olhando de relance para uma aliança prateada que usava.

 

         Espere... seu nome não era Hideki? E por que ele usava o nome de solteira de sua mãe?

 

         — Quantos nomes você tem?

 

         — O suficiente — o outro falou, divertido —, mas você pode me chamar de Aoi, ou Yuu. Ou o que você preferir.

 

         — Certo — disse, acrescentando: — Aoi. Por que você não usa o sobrenome do seu pai? Não vi ele até agora, aliás.

 

         Os olhos de Aoi perderam o brilho freqüente, e seus músculos ficaram tensos. Ele arqueou as costas, dando de ombros:

 

         — Resolvemos não usá-lo quando meu pai — ele disse amargurado — fugiu.

 

         — Sinto muito.

 

         — Eu não.

 

         Ruki deu um sorriso nervoso, considerando sua gafe e a falta de sensibilidade do garoto. Logo perguntou o que devia desde o começo:

 

         — Você tem algumas roupas para me emprestar? Quero dizer, com o calor do momento e tudo, eu não pensei em fazer uma mala de última hora. Amanhã eu volto em casa e pego minhas coisas.

 

         Aoi assentiu com a cabeça, rumando a uma das quatro portas que havia no corredor    . Ruki parou na porta, apoiando-se no batente e observando-o agachar-se a uma das gavetas, pegar cuecas, rumar para o guarda-roupa e pegar uma calça de moletom. Estava frio e não faria sentido usar calça jeans dentro de casa. Era desconfortável. Aoi jogou para ele as peças, pegando uma camiseta e jogando de novo.

 

         — Obrigado.

 

         — Disponha. Acho que você vai dormir aqui comigo, mesmo — Aoi deu de ombros, um sorriso malicioso nascendo em seu rosto. — Espero que não se incomode.

 

         — Ah, não... de jeito nenhum — Ruki respondeu, girando em seus calcanhares e balançando a cabeça para o “você vai dormir aqui comigo”.

Ele abriu a porta do banheiro e ouviu um grito a tempo:

 

         — Tem toalhas limpas no armário!

 

         Ele olhou-se no espelho, consternado. Olhos o observaram de volta, olheiras profundas sulcadas a seu redor. A linha de sangue seco ainda estava lá, acima do arranhão de ódio que ele mesmo se tinha presenteado. O cabelo era quase um ninho, e apontava para todos os lados. Deu uma última tragada no cigarro e jogou-o no lixo.

 

         Revirou os olhos, irritado, rumando ao chuveiro e girando a torneira. A água bateu em suas costas e ele não resistiu a um gemido de satisfação. Aproveitou-se dos shampoos, sabonetes e lufadas de espuma que ali estavam. Era um momento seu, e ele precisava tanto daquilo.  

 

         Após terminar, Ruki procurou no tal armário, que não ficava longe do box. Ele podia alcançá-lo esticando os braços; assim ele não alagaria o chão. Achou várias toalhas coloridas dobradas. Todas de rosto. Maldição. Ele teria que chamar alguém para trazer uma toalha para ele, e teria de ser Aoi, porque ele era um garoto, e então seria inconveniente, e... se Ruki não quisesse molhar o banheiro inteiro, o garoto o veria nu. “Oh, não”, reclamou consigo mesmo. “Hoje não!”

 


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Notas finais do capítulo

Reviews, sim? Agradeceria. Espero que tenham apreciado. Até o segundo capítulo, então.



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