A Viela Santa Maria escrita por Noah Marmallade


Capítulo 1
Capítulo Único




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O menino andava ligeiramente pelas ruas estreitas do vilarejo. O céu acinzentado ameaçava cair com a força dos deuses olímpicos a qualquer momento. A rua, forrada de paralelepípedos irregulares e desconfortáveis para os pés descalços, estendia-se como uma cobra morta até onde os olhos podem alcançar o fenecimento. E um muro tão grande, tão cinza, tão pichado, espremendo claustrofobicamente quem pela viela passasse. A criança andava apressada.


Já não mais havia nenhuma alma viva naquele local desolado. Todos já haviam se trancafiado em suas casas aconchegantes, prudentemente. Nos últimos dias, haviam ocorrido muitos relatos de crianças desaparecidas. Não era muito ajuizado um menino de dez anos passear livremente por aquela viela tão oculta num fim de tarde, ainda mais sozinho. Que culpa ele tinha se fora para aquela pequena loja de doces gastar os últimos trocados que tinha e dormira no banco da praça, já de barriga cheia, e acordara pela indigestão?


Não pegava aquela passagem normalmente. Era muito perigosa, muito escondida… mas o menino pensou que, se era tão perigosa, nem os bandidos iriam ficar lá, criando um belo paradoxo. Pensou nisso para ter coragem de entrar na Viela Santa Maria, de passar pelos altos portões de ferro e metal que estavam sempre abertos. Por que eles existiam?


Melhor dizendo, nunca pegou aquela viela na sua vida. Mas havia um só caminho reto, sem curvas ou aberturas para outras ruas, e saía bem pertinho de sua casa. Calculara que levaria apenas vinte e dois minutos para chegar em casa, contra quarenta e um do caminho normal, e se corresse, levaria apenas dezenove minutos. O menino não podia se arriscar a chegar em casa atrasado. Não mais.


Passos e passos. Pisos e pisos. A chuva já começara a cair, só alguns respingos que logo transformar-se-iam em grandes gotas d’água. Apertara o passo. Aos onze minutos de caminhada, passou por uma vitrine. Não era uma vitrine qualquer. Era a vitrine mais bonita que já vira em sua vida. Havia um fundo de cetim vermelho vivo para decorar. A frente do vermelho-sangue, plataformas de papelão decoradas em vermelho e dourado sustentavam brinquedos. Ah, brinquedos. Não… ele iria brincar uma semana e jogar fora, como sempre fazia. Não podia pedi-los para seus pais. Mas… mas… mas! Um pequeno boneco de madeira amarela, de cabeça achatada (o que deveria ser um capacete), braços e pernas finas, de corda, um corpo roliço e com um brasão vermelho estampado. Era o boneco. Ele o queria.


Não sabia por quê. Era apenas um boneco estúpido, de madeira, sem nenhum atrativo. Tinha farpas que machucá-lo-iam. Provavelmente, nem ficava em pé sozinho. Que utilidade o maldito boneco de madeira poderia ter? O menino não fazia ideia, mas queria o boneco. Mas… não tinha o preço. A plaquinha estava vazia, sem nada escrito. As outras, cheios de brinquedos bonitos, tinham os preços. “CC$ 54,00”. “CC$ 31,98”. “CC$ 92,35”. “CC$ 152,68”. Mas o boneco… aquele boneco horroroso de madeira… simplesmente não tinha. A coisa que o menino mais queria em todo o mundo e em toda a sua vida… não tinha preço.


Não, não podia ser.


Olhou para o grande relógio da capela que jazia poderosa do outro lado do vilarejo. Mesmo tão longe, o ângulo em que o menino estava dava para ver perfeitamente a hora no grande círculo dourado, mesmo que sua baixa estatura permitisse que os prédios se agigantassem mais do que pareciam. O garoto era baixinho sim, mas isso ele não admitia.


Calculou que, se entrasse na loja e perguntasse o preço do boneco, perderia aproximadamente dois minutos, além do tempo em que já estava parado ali, olhando o boneco na vitrine. Tudo bem, daria tempo de chegar em casa antes de seus pais.


Empurrou a porta. Aquele sininho que toca quando alguém entra fez o seu trabalho. Dentro da loja de brinquedos, mais brinquedos. Todas as paredes eram completamente forradas em vermelho. Havia caixas e mais caixas decoradas em dourado espalhadas pela pequena loja. Todas atulhadas de brinquedos. Pôde ver a vitrine. O boneco de madeira cobiçado lá estava, descansando em paz. Conteve-se ao desejo de pegá-lo.


Andou até o balcão. Havia uma pequena boneca de pano lá, com olhos que se mexiam. Fez um enorme esforço para alcançar seu topo e tocar a sineta, mas o fez. Nos fundos da loja, um barulho se formou. O menino olhou distraído para as paredes. Dezenas de prateleiras atarracadas as paredes cobriam o vermelho. Nestas prateleiras, centenas de bonecos com grandes olhos dançantes descansavam sinistramente. Dançantes porque se mexiam. Deve ser um desses bonecos cujos olhos se mexem, pensou a criança. Igual a boneca.


A porta que ligava a parte da frente com os fundos foi aberta. De lá, saiu um velho senhor de cerca de noventa anos… noventa e dois, calculou o menino. Andava de bengala, com as costas inclinadas, com uma corcunda protuberante formando-se nelas. Possuía o rosto muito enrugado, com linhas de expressão que indicavam que tinha muita história para contar. Era muito baixo, com estatura entre 1,50 e 1,60. Seu andar era meio cambaleante, meio estreito, andava meio que de lado, como um caranguejo.


O velho chegou ao balcão, apoiando-se nele. Pegou a boneca de pano e a colocou em um baú grande atrás do balcão. O assustador foi que os olhos da boneca ficaram olhando para o menino toda hora, até que desapareceu no balcão. Usava óculos de meia-lua que escorregavam por seu rosto todo o tempo, forçando-o a ajeitá-lo sempre. O menino inclinou a cabeça para o lado, interessado. O velho inclinou-se para frente, tentando focalizar a criança.


— O que venho a poder fazer por ti, criança? — indagou o velho. Possuía uma voz grossa e forte, mesmo com a idade avançada.


— Hei de querer saber qual o preço do boneco de madeira exposto no mostruário, senhor.


Os olhos pretos do velho brilharam enigmaticamente. Ele se endireitou em relação à posição. Pegou a bengala que estava encostada no balcão forrado com um belo lençol vermelho e voltou a se apoiar nela. Ele era muito mais alto do que parecia. Olhou discretamente para a vitrine forrada. Voltou o olhar para a criança.


— Exposto no mostruário? — O menino assentiu. — É gratuito.


— Gratuito? De que modo? — perguntou ingenuamente.


— Não há preço. O boneco é gratuito.


O menino ficou confuso. Não tinha preço, era verdade. A plaquinha estava em branco. Mas ele iria levar o boneco assim? Sem mais nem menos? Seus pais poderiam achar que o roubou. Não tinha motivo, mas pais são pais. Sempre serão, por toda a eternidade. Indefinidamente. Ah! Diria que o comprou com seus últimos trocados! Claro. Gastou-os em doces. Seus pais jamais iriam descobrir.


Não gostava de mentir, mas era preciso. Neste momento, era preciso.


— Pegá-lo-ei para ti.


Só havia um em toda a loja. Aquele da vitrine. Era preciso se esgueirar bem para não derrubar toda a construção do mostruário.


— Tu achas que consegue?


— Sim, criança.


O velho realmente era mais alto do que parecia. Esgueirou-se pelo tecido vermelho e, sem tocar nele, arrancou o boneco da vitrine antes que caísse com todo o seu peso nela. Segurou o boneco na frente da face do garoto. Os olhos infantis brilhavam de excitação, mas antes que as mãos do menino se apossassem do pequeno boneco, o velho o pôs mais alto.


— Espere, criança — disse ele, pondo o brinquedo em cima do balcão. Ele não ficava em pé, mas ficava sentado. Foi assim que o velho o pôs. — Embrulhá-lo-ei antes de entregar a ti. — Dirigiu-se de volta a porta dos fundos. — Não… haja de tocar no brinquedo. Jamais.


O velho entrou nos fundos pela porta, fechando-a em seguida. O menino ficou silencioso na loja, a olhar para o boneco. Só então percebeu que os olhos postiços eram azuis, não se mexiam, eram parados. Mortos. Não combinava muito… ficava meio estranho. Podia arrancá-los mais tarde e desenhar olhos que combinassem melhor. Quando percebeu, estava com os dedos a nove centímetros e meio do brinquedo. Retraiu a mão imediatamente. O velho dissera para não tocar.


Mas por quê?


Era apenas um toque… um pequeno toque… para sentir sua textura… saber como seria segurá-lo… de que modo seria brincar com ele… a provável sensação de arrancar aqueles olhos postiços e desenhar novos… como seria deliciosamente excitante mentir para seus pais sobre como arrumara aquele pequeno boneco… era tudo muito perigoso. E excitante. Mas, para começar, o menino precisava tocar nele.


Saber como ele era.


Olhou para a porta dos fundos para ter certeza de que o velho não estava vindo. Não estava. Foi aproximando mais e mais suas mãos… precisava senti-lo. Estava a dois centímetros do toque de seus dedos com o peito do boneco, bem no meio do brasão. Olhava a todo tempo para a porta, pronto para se retrair caso ela abrisse. Não abria. Finalmente, tocou no boneco.


O que ocorreu a seguir foi tão estranho.


O menino nunca mais foi visto.


Um certo tempo depois, uma menina de oito ou nove anos estava passando pela Viela Santa Maria quando viu uma pequena boneca de pano na vitrine. Mas não havia preço. Entrou na loja e perguntou o preço ao velho. É gratuito, dissera ele. Pegou a boneca de pano e a pôs no balcão, sentada. Dizendo que ia pegar um embrulho nos fundos. A menina estava quase tocando na boneca quando viu um pequeno boneco de madeira amarela, de cabeça achatada no que deveria ser o capacete, e um brasão no peito. Os olhos se mexiam loucamente.


O velho voltou pouco depois de ter entrado, desculpando-se a menina. Pegou o boneco e o colocou dentro do baú. Os olhos agora vivos do brinquedo olhavam para a garota o tempo todo. Ela ficou estarrecida com eles, mas mesmo com isso, tocou na boneca quando o velho voltou aos fundos. Os olhos mortos da boneca adquiriram vida e a menina desapareceu para sempre.


Um boneco de madeira e uma boneca de pano. Um menino e uma menina desaparecidos. Brinquedos não adquirem vida, ora essa.


Eles roubam almas e as trancam em seu interior.


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